Hoje nasce essa coluna. Quero desejar a todos vocês que aqui chegaram boas-vindas! Nesse nosso primeiro encontro, tenho o mais difícil dos desafios a cumprir. Quero expor a vocês, da melhor forma que eu puder, qual minha pretensão aqui.
Como já previsto, essa tarefa não é fácil. A própria escrita já proporciona um grande desafio. Colocar algo no papel é se expor da maneira mais pretenciosa possível. É tornar concreto. É fazer visível. É possibilitar encontros no desencontro. É fazer do fluido algo palpável. Não é à toa que a humanidade toma corpo com ela. Escrever é possibilitar história, é tornar definitivo, é ir além de nós mesmos. Escrever, portanto, me interessa e me mobiliza, faz sentido para mim; mas também me apavora!
É com esse primeiro desabafo que eu construo, junto com vocês, o fundamento dessa coluna. Caro leitor, este espaço tem um compromisso estrutural com a vulnerabilidade. Por aqui, vamos encarar temas complexos, mas sempre com uma certa humildade atitudinal, isto é, tendo a dúvida como nossa maior aliada, preferindo pontos de interrogações e reticências a pontos finais. Afinal, já diria Jung: “se tomarmos a sério a hipótese da existência do inconsciente, logo nos daremos conta de que nossa visão de mundo não pode ser senão provisória” (OC 8/2)
Lhes escrevo inspirada pelas experiências da clínica psicológica junguiana, mas não limitada às fronteiras do consultório. Diante da complexidade da psique, é fundamental ir além, e o próprio Jung, o precursor teórico deste modo de entender Psicologia, nos incentiva neste sentido. A psique é múltipla e está em tudo. Em certo sentido, psique é tudo.
Ser junguiano é estar aberto à troca, à relação, ao intercâmbio. É buscar interconexões na interdisciplinaridade. É considerar que cada expressão humana diz um pouco sobre nós, seja ela nas artes, nas ciências, nos nossos mitos. Entendemos que a natureza humana é múltipla, e que, portanto, para melhor conhecê-la, para enxergá-la em profundidade, é necessário estar aberto.
Por aqui, meu objetivo é interconectar Direitos Humanos e Psicologia Analítica. Para esse fim, costurei minha proposta ao conceito de processo de individuação. O processo de individuação é a estrela guia da análise junguiana. Como o nome diz, é o processo tornar-se indivíduo, tornar-se quem se é, produzir diferença, ser único… em todas as peculiaridades, luzes e sombras. A um só tempo, portanto, o processo de individuação é um movimento interior e subjetivo; mas também é um processo objetivo de relação com o mundo. `
Vamos juntos pensar sobre isso. No filme Shrek, Princesa Fiona é amaldiçoada, “há um terrível feitiço sobre ela”. Ela é, de dia, uma linda e delicada princesa, mas à noite, transforma-se em ogra. Além disso, está presa em um castelo protegida por um também “terrível” dragão.
Simplificando a análise (que poderia ocupar um texto inteiro!) e convidando o leitor a ver a trama com outros olhos e mais calma, é postulado que, com beijo do amor verdadeiro, Fiona assumiria “sua verdadeira forma”. Fiona, enquanto isso não acontece, esconde uma parte de si. Tem vergonha de sua “ogritude” e lamenta sua situação. Espera, escondida, que o Outro a salve.
Ao beijar Shrek, entretanto, uma reviravolta. Sua “verdadeira forma” não é a princesinha padrão (branca, magra, passiva, educada, amorosa…) mas… uma ogra? Também não. O estereótipo de ogro (carrancudo, nojento, solitário, violento, rude…) também não lhe serve. Ela é o entrelace dos dois! É princesa-ogra! E isso que a faz especial. Ela se faz única exclusivamente na medida em que elabora a “maldição” da bruxa. Seu caminho para o “felizes para sempre” exige-a inteira e ativa em seu processo. A maldição não a deixou esquecer de um pedaço de si, que se configura no encontro com o Shrek, mas na verdade se fundamenta no encontro dela com ela mesma.
Todos nós temos nossas “maldições”. Nossa família, possíveis condições clínicas, aspectos de personalidade, curso de vida, dramas individuais, adversidades, genética… À vista disso, ao longo da jornada de nossa existência somos convocados a questionar o que vamos fazer com o que foi feito de nós, como vamos tomar as rédeas de nossa existência.
Vejam, o objetivo da individuação não é chegar em algum lugar específico e/ou moralmente aceitável, mas sim, através do diálogo com as expressões do inconsciente, os símbolos, remar em destino à ampliação de consciência, ao reconhecimento de nossos personagens internos (nossas bruxas, ogros, princesas, heróis, dragões, vilões, bobos da corte…), para que assim, eles possam parar de brigar entre si, e se constele liberdade.
O convite aqui é em direção à uma espécie de “imperfeição responsável”. Imperfeita, pois não atende ao desejo do ego, não cabe nos trilhos de uma performática e nem na métrica ideal do Outro. E Responsável por exigir implicação enquanto sujeito. E vai além do individual! Podemos pensar na individuação também em contextos coletivos, na comunidade, na nação, no globo… muitos assuntos por vir…
Hoje, finalizo minha publicação agradecendo a oportunidade de estar aqui e perguntando a quem está aí do outro lado: Coube-lhe ser nessa coluna? Faz sentido desbravar, junto comigo, esses personagens e possibilidades humanas? Se sim, vamos juntos! Sejam, mais uma vez, muito bem-vindos!
Mandou bem Milena. Parabens pelo texto.
Muito obrigada, Nilson!