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Leitores, creio que ainda não havia comentado isso por aqui, mas, antes de psicóloga, me formei bailarina clássica: sou alguém que busca por dançar, o que recentemente tem ganhado todas novas cores (CURVAS!).

Minha dança vem sofrendo uma grande reviravolta: algo do próprio clássico em mim pediu flexibilização, improviso, brincadeira… pediu até um pouco de xingamento. E por que não?

O clássico em mim, honrado e respeitado, gentilmente cedeu espaço para ser mais que ele próprio. Para ser ele também. Ser ele inclusive. Ser a partir dele.

Encarei toda a jornada que se anunciava como uma grande pesquisa psicológica: mais guiada pelo coração do que pelo cérebro, mais orientada pela intensidade do que pela frequência, eu exploraria os efeitos psíquicos de me embrenhar em outras metáforas de movimento (outros estilos de dança) e, especialmente, de deixar que meu próprio corpo falasse por si (realizar, gravar e analisar improvisações dançantes).

Pois muito bem. Venho compartilhando parte disso em minhas redes sociais, e aqui entrou em cena o efeito não previsto de minha pesquisa. Eu não sabia de antemão, mas além de internamente, minha dança reverberaria também no mundo de fora.

Meus vídeos dançantes já mobilizaram tudo quanto é afeto. São “estranhos demais”, são “ousados demais”, são “legais demais”… As súplicas diante deles, explícitas ou implícitas, são igualmente poderosas: Por favor não pare, pare por favor“…

Olharemos para isso hoje, mas para chegar lá, vamos passar por um outro ponto. Segue minha linha de raciocínio:

Como psicóloga clínica, hoje dedico grande parte de meu trabalho e estudos aos transtornos alimentares. Ao longo desse engajamento com as pacientes de TA (digo no feminino pois são elas a maioria), vou entendendo por que o tema me pegou. É trabalhando com transtornos alimentares onde a bailarina e a psicóloga em mim mais se juntam para transformar realidade – trabalhar com TA é chamar mais e mais pessoas para dançar!

No mundo do TA, estamos falando majoritariamente de mulheres-meninas (ou meninas-mulheres?) absolutamente identificadas com o que se espera que elas sejam. Absolutamente enredadas em cumprir performances e, para tal, “perfeitamente” amalgamadas em uma não-existência.

Da forma como eu vejo, trabalhar com TA é abraçar o desafio de libertar. Especialmente mulheres.

Um transtorno alimentar severo escancara o ponto mais baixo e o preço mais alto que se pode pagar em busca do que todos nós em algum grau buscamos: ser aceito ao olhar do Outro.  Ao mesmo tempo, o transtorno é, em si, uma convocação definitiva e irrevogável para um novo caminho. É a súplica de um corpo que diz “chega!” e escancara a insustentabilidade de um não existir.

Em última instância, a anoréxica, a bulímica e a paciente com TCA são bodes expiatórios de todo um sistema que, em prol de sua estabilidade, se sustenta na gestão de encarceramentos psicológicos.

Quando, em um tratamento respeitoso e especializado, vamos carinhosamente ouvindo e dando espaço para esses corpos machucados, aos poucos presenciamos também um não-existir estático e preto e branco ganhar cores, sabores e movimento.

É lindo, terrível, potente e revolucionário de acompanhar. De uma maneira que eu nem sou capaz de expor aqui.

Agora voltemos aos meus vídeos: tenho ouvido e já me peguei também, com grande frequência, fazendo a fatídica pergunta: “Ok Milena, legal que está dançando, mas por que ‘postar’ isso?”.

Diante desse questionamento, sempre uma parte de mim, encolhida e de coração partido, sussurra duvidosa de si: “e por que não postar?”

Eu sei que minha dança incomoda, fascina, inspira, escandaliza, gera estranhamento… e o faz cada vez mais à medida que amadurece. A verdade é que dançar nunca passará impune.

Meus vídeos marcam a minha trajetória. Fazem parte de minha pesquisa-ação psicológica e são também a forma que encontrei de dar espaço para que o dançante em mim seja e esteja no mundo.

Vejam, o dançar a qual me dedico hoje não tem, em si, apelo estético. Intrinsecamente não tem como objetivo ser bonito ou feio, sexy ou vulgar, “conceitual” ou “popular”, “técnico” ou “sujo”.

Intrinsecamente ele apenas é. E é isso que faz dele todo o resto aos olhos de meus interlocutores.

Dançar e colocar minha dança (torta e esquisita, – lindinha assim) para fora é maneira como, para além do consultório, subverto o que esperam de mim em prol de estimular espontaneidade, fluidez, agência e implicação subjetiva.

Pensem comigo: se dançar é dar espaço ao criativo e ao autêntico, deixando que o próprio corpo se expresse (algo tão estranho a nós pós-modernos que, por via de regra, só ganha coro quando se torna doença), a quem serve que essas expressões permaneçam sombrias?

Eu tenho consciência de que, seja para que lado for, minha dança reverbera. Meu dançar é perigoso. Especialmente porque me desamarrou e segue me desamarrando. Pior ainda! Meu dançar é perigosíssimo pois pode infectar outros desenlaces. Pode contaminar alguns outros (mesmo que poucos) a também se libertarem para a esquisitice, loucura, liberdade!

No fim do dia, seja na repulsa ou na identificação, meu dançar, assim como qualquer outro que se possibilite ser, alimenta movimentos psicológicos. É isso que faz valer a pena – mesmo que também me leve para a fogueira. Em última instância, minha dança, assim como minha atuação clínica, é minha forma de transgressão política.

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