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Nunca fui fã de sertanejo, cresci ouvindo rock (culpa do meu pai) e pop (oi mãe), me lembro das viagens com o meu pai, ouvindo Capital Inicial, Toto, Duran Duran, Tears For Fears (que são quem toca e canta a minha música favorita até hoje), e me lembro dos CD’s do Elton John, da Cher, Madonna, etc, da minha mãe. Além da influência dentro de casa, a cidade em que nasci também tinha um lado cultural muito mais puxado para o rock. Aerosmith, Gun’s N Roses, RHCP, entre outros, também, fizeram parte da minha trilha sonora na infância e adolescência, como parte da minha identidade. 

Mas no dia cinco de novembro do ano passado, ter lido sobre o acidente da Marília Mendonça, e sua morte, me fez chorar. Eu senti. 

Ela era dois anos mais velha que eu. Era mãe, filha, amiga, irmã. Eu só sabia o nome de duas de suas músicas, e as ouvia bastante. Mas eu sabia o tamanho dela como artista. Sabia o meio machista no qual ela entrou, da música sertaneja, e o quanto ela venceu isso e construiu seu castelo. E ela se foi, em um acidente de avião, trágico, que levou também mais quatro vítimas, mais quatro vidas. 

Em meio a um sentimento de pesar e de luto nacional devido ao acidente, sequencialmente, tivemos a fatalidade que ocorreu durante o show do rapper Travis Scott, no Texas, no qual ao menos oito pessoas morreram. Morreram pisoteadas. 

De 2020 para cá, os óbitos de vítimas de Covid-19 ultrapassaram 600 mil. Atualmente, na cidade em que moro, a população estimada é de 240 mil habitantes. Em comparação, isso significa que existem mais de duas cidades, como a que estou, de pessoas mortas.  

Nessas três narrativas – a de Marília, a de Travis Scott e a das vítimas de Covid – o que todas têm em comum são a forma como a mídia retratou os óbitos  

No caso de Travis Scott, eu vi a mídia divulgando, no dia 28 de dezembro do ano passado, que a Dior suspendeu por tempo indeterminado sua parceria com a Cactus Jack, marca do rapper, em respeito às vítimas da fatalidade ocorrida no festival Astroworld, nos EUA. Travis perdeu outras parcerias. Marcas como Nike e Mc’ Donald’s também se distanciaram desde o que houve durante seu show. 

Ele perdeu parcerias. E foi indiciado em vários processos. De acordo com fontes como a CNN, ao menos 58 estão em andamento. Perder dinheiro de parcerias, perder networking. Ser processado, má reputação, ganhar, perder… O peso final continua sendo o fato de que pessoas morreram pisoteadas. E a consequência disso, para o artista, seja qual for, não vai mudar os fatos, nem amenizar a dor dos familiares e amigos de quem se foi tão tragicamente. 

Perder parcerias e networking também não vai mudar a lembrança de um pai, de uma irmã, amiga, namorado ou mãe, de que aquela pessoa, especial, morreu durante o show porque pisaram em cima dela, por horas, até ela morrer. Entre as vítimas, está incluído um menino, uma criança, de 9 anos, que se chamava Ezra Blount. 

Mas a mídia não falou muito sobre Ezra. Nem sobre os demais que faleceram nesse cenário de barbárie e brutalidade. O importante, ainda, mesmo com a gravidade indubitável da tragédia, para a mídia, e, de fato, para a massa, são, muitas vezes, os número$.  

Notícias sem views não interessam o universo midiático mercadológico. E me choca que, indo de acordo com a demanda massiva de leitores, a mídia saiba que atender ao interesse de uma maioria é, de fato, falar sobre os número$, as parceria$ e o networking, em detrimento da (falta de) humanidade da situação. Em todas essas histórias, qual é o lado humano de cada contexto?  

Marília Mendonça teve o privilégio de ter vivido uma história de vida em que número$ importavam; ela os tinha, e, no mundo em que vivemos, isso abriu portas para que ela tivesse sua vida reconhecida, sua falta sentida e seu lado humano contado, depois de seu acidente – depois de partir. Olharam para Léo, o filho que ficou. Olharam para Murilo, o ex-companheiro que fez parte de sua vida pessoal e é o pai do único filho que Marília deixou. Ouviram a dor da mãe, do irmão. O luto, como falado anteriormente, foi nacional.  

No mesmo acidente, morreram, além de Marília, Abiceli Silveira Dias Filho, Henrique Bonfim Ribeiro, Geraldo Martins de Medeiros e Tarciso Pessoa Viana. Mais quatro pessoas, que também eram o amor de alguém. Mais quatro pessoas, sobre as quais quase nenhum jornal falou. Quando falaram, foi uma citação breve. 

Isso se torna mais evidente ao pensarmos nos óbitos por Covid-19. Hoje, os números ultrapassam 660 mil.  Não estou mencionando a pandemia para falar de saúde pública, privilégio de classe, consciência social, acesso a orientações de saúde ou qualquer um dos outros inúmeros assuntos que ela trouxe à tona com sua chegada. Hoje, quero falar sobre morte.  

Todos os mais de 660 mil eram a Marília Mendonça de alguém. Eram a mãe que deixou pra trás filhos. Eram filhos que se foram antes dos pais. Eram companheiras, amigos, irmãs, irmãos e ídolos de alguém em suas vidas. Mas eram anônimos, eram pessoas como eu e você. Sem grandes número$.  

A mídia não me parece ter se interessado por isso. Por pessoas. Por vidas. E as outras pessoas, que escaparam dessa interrupção de vida prematura, entendendo que quando se trata de morte nem com 90 anos vamos achar que já é hora, também não. 

O objetivo, aqui, que fique claro, não é dizer que a morte de Marília Mendonça deveria ter sido menos midiatizada, ou que é injusto o tanto de audiência que ela recebeu. Pelo contrário, acredito que o justo seria que cada morte nesse mundo recebesse a mesma atenção. Imagino a dificuldade que a mídia tenha de fazer isso; talvez seja impossível – mas, ao menos, a consciência de que não temos tempo ou espaço suficientes para falar sobre todas as mortes deveria existir. 

Como ouvi na frase de um dos filmes que assisti recentemente “nem tudo tem que ser espirituoso, encantador ou fofo o tempo todo. As vezes só precisamos dizer as coisas, ouvir as coisas” e eu acredito, de verdade, que a gente precisa falar e ouvir sobre isso. Sobre mortes que poderiam ter sido evitadas.  

Precisamos, também, observar como falamos das mortes, em situações nas quais elas são mencionadas. Por isso, inclusive, escolhi trazer três situações que parecem estar distantes dos “assuntos do momento”. Desde o trágico acidente da cantora sertaneja, ou das fatalidades no show do rapper americano, muita gente morreu, por motivos diferentes. A própria pandemia e suas fatalidades parece se esvair do discurso diário, enquanto temas como a guerra na Ucrânia, catástrofes ambientais e sócio-políticas ganham o holofote midiático.  

Entendo que faz parte da mídia hegemônica essa corrida contra o tempo e estou consciente de que uma morte dá lugar à outra nos noticiários, mas isso não significa que as mortes um dia pautadas pelos veículos da informação deveriam se tornar esquecidas pela gente. Alguém ainda está de luto por elas, em algum lugar.

Por isso escolhi reviver situações fatais que me geraram incômodo em um passado próximo: a morte deve incomodar, principalmente se causada por falta de humanidade; e ela deve incomodar não para que a gente nunca aceite a finitude, se não, para que a gente se lembre do valor da vida. 

Qual vem sendo o zelo que você tem com a sua e com a de quem está ao seu redor? 

Fica a pergunta, para reflexão (se possível).  

E mais uma: Você está entre a massa de leitores consumidores do conteúdo midiático que se interessa pelas vida$, ou pelas vidas, independente de qual é o S que vai no final? 

Humanize (se). 

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