O mundo, em geral, respirou mais aliviado quando as projeções e resultados da sempre complexa eleição estadunidense demonstraram que Donald Trump não seria reeleito. A tendência ao maniqueísmo faz com que seja comum personificar as maldades humanas. Assim, depois de várias bizarrices – que incrivelmente ainda seduziram devotos, inclusive em terras tupiniquins – cometidas durante sua traumática gestão, tais como o afastamento dos EUA de iniciativas estratégicas do multilateralismo global (como o Acordo de Paris, o Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Organização Mundial da Saúde), além da demonização dos imigrantes, dos retrocessos nas políticas de aproximação com inimigos históricos e, sobretudo, as patacadas no enfrentamento da pandemia de coronavírus (ou você pensa que a expressão “vírus chinês” surgiu aqui?), o megaempresário bonachão, com aquele penteado pitoresco, parecia personalizar o próprio anticristo e precisava, pelo bem da humanidade, ser freado.
Nesse contexto, qualquer um que pudesse derrotá-lo seria recebido como um redentor. Mas é preciso cautela em relação ao governo Joe Biden. Até que ponto os estragos da gestão Trump serão, de fato, revertidos? Até que ponto haverá a esperada “guinada qualificadora” nas relações internacionais dos EUA? Até que ponto Biden será capaz de enfrentar os enormes desafios que tem pela frente sem cair nas mesmas armadilhas que seu antecessor? Afinal, após mais de um século de supremacia, com tantos inimigos nocauteados, não vem sendo fácil ao império resistir às invasões bárbaras. Talvez nem mesmo no auge da Guerra Fria a liderança global estadunidense tenha estado tão ameaçada como atualmente.
O estágio atual de operação do mundo globalizado, sobretudo nos setores produtivo e financeiro, trouxe desvantagens evidentes a quem ainda se agarra a referenciais de liderança que podem ter funcionado bem no século passado, mas que hoje se revelam obsoletos. Não é mais pela truculência que se impõe hegemonia. O capital, atualmente, é extremamente volátil e flui através das redes corporativas para onde sua atuação seja mais vantajosa. As vantagens territoriais (que os EUA ainda possuem em abundância, assim como o Brasil) já não são suficientes na garantia de investimentos e bons negócios. Há sutilezas na adaptação do papel desempenhado pelo Estado nesse novo contexto que, ao que parece, ninguém ainda percebeu tão bem como os chineses.
A China, em si, representa o maior dos desafios de Biden. As tensões da guerra comercial entre os dois países estão longe de estar superadas. Trump apelou para o discurso antiglobalização e a retórica nacionalista na tentativa de reverter esse quadro, mas a estratégia só serviu mesmo para mexer com os brios de seus apoiadores ufanistas e conservadores, pouco alterando o quadro internacional.
Nacionalistas extremistas e/ou supremacistas, tanto nos EUA como em qualquer outro país, ainda hão de se convencer na marra que a globalização é um caminho sem volta, para o bem e para o mal. Se as conexões produtivas e mercadológicas globais só tendem a se aprofundar, a esperança do setor público para exercer algum tipo de limite às insanidades em curso só podem ser depositadas no multilateralismo. Este, no entanto, ainda é muito incipiente e desprovido de real poder.
Até que ponto Biden e os democratas estão conscientes disso? Até que ponto irão abrir mão de seu próprio passado belicista para investir em relações internacionais mais ajustadas ao cenário atual? O alerta é válido, pois há quem se esqueça que a famosa “democracia” estadunidense é um revezamento entre dois partidos pouco (ou nada) progressistas que guardam entre si muito mais semelhanças do que diferenças.
Também há quem ignore que, sob governo democrata, o “big stick” do Tio Sam coleciona uma série de desventuras vergonhosas. Truman jogou bombas atômicas no Japão; Kennedy levou os mariners ao Vietnã; Johnson deu aval ao uso do napalm e do agente laranja no mesmo conflito; Carter, antes de posar de bom moço e defensor ferrenho dos direitos humanos, liderou o estúpido boicote estadunidense às Olimpíadas de Moscou e criou a besta chamada Saddam Hussein para combater o Irã. Até o nobre Obama – que goza, com méritos, de muito prestígio e respeito – teve sua gestão manchada, entre outros aspectos, pelo silenciamento diante das barbaridades do governo extremista de Israel e por investir pesado na sabotagem velada à onda progressista latino-americana. Obviamente não estou afirmando que Trump seja melhor que nenhum deles! Sujeira por sujeira, os republicanos também são mestres!
Também não estou dizendo que não haverá avanços no novo governo. Biden tem todas as condições para reverter algumas das bobagens de seu antecessor e sair relativamente ileso do vespeiro em que se meteu. Em poucos meses, já mostrou vigor no enfrentamento da pandemia e voltou ao Acordo de Paris. A política migratória, no entanto, até agora parece “mais do mesmo”. Temo, no entanto, que as conquistas possam ser apenas pontuais. Diante de uma Europa ameaçada pela fragmentação, de uma Rússia ainda desafiadora, de uma China cada vez mais tecnológica que expande seus tentáculos econômicos e, sobretudo, de uma ordem mundial marcada pelo corporativo internacionalizado, Biden e os democratas ainda perderão muitas noites de sono para manter os EUA no topo.