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Um, dois, três. Respiro fundo. O pé direito relativamente alto me leva ao teto, sem cores ou sabores. Minha imaginação preenche o quilométrico vazio administrando a liberdade no deslocamento do presente e a fixação em uma lembrança que sequer é minha. Enquanto preciso, acamada, de pernas abertas e coberta de lençóis, me concentrar para vivenciar uma espécie de relaxamento, brinco de desenhar. Atrás da enfermeira que me faz um “exame preventivo”, antigamente conhecido como “Papa Nicolau”,  imagino um mundaréu de gente. Uma fila gigantesca.  

Nessa fila, estão concentrados os curiosos. Observadores. Xeretas. Todos eles vêm até mim para bisbilhotar aquilo que está no fim do túnel. O espéculo que me abre é o grande espetáculo da arqueologia sexual. Estou no lugar de Annie Sprinkle, uma atriz pornô que, por anos, foi dirigida pelos olhares das lentes masculinas. Em “A Public Cervix Announcement”, performance interativa na qual ela permitiu que as pessoas vissem o colo do seu útero, Sprinkle, estrategicamente, dirigiu as lentes a um lugar essencial ao sexo: o da saúde. 

Não sei se você sabe, mas, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer – INCA,  “no Brasil, excluídos os tumores de pele não melanoma, o câncer do colo do útero é o terceiro tipo de câncer mais incidente entre mulheres. Para o ano de 2022 foram estimados 16.710 casos novos, o que representa um risco considerado de 15,38 casos a cada 100 mil mulheres”. 

Este câncer geralmente se desenvolve por decorrência de uma infecção por HPV. Do inglês Human papillomavirus, “o Papilomavírus humano (HPV) é uma infecção sexualmente transmissível (IST) que pode infectar tanto a pele como mucosas da região anogenital e oral”. Segundo o Estudo Epidemiológico Sobre A Prevalência Nacional De Infecção Pelo HPV (Pop-Brasil), publicado em 2020,  “a maioria dos indivíduos sexualmente ativos entrou ou entrará em contato com o HPV em algum momento da vida, especialmente quando jovens, idade em que as taxas tendem a ser mais elevadas. Felizmente, a maioria das infecções são transitórias e tendem a ser eliminadas espontaneamente, tornando-se indetectáveis dentro de 1-2 anos. Por isso, muitas vezes pode não apresentar sinais e sintomas. No entanto, a infecção persistente do vírus pode evoluir para vários tipos de neoplasia, como câncer de colo uterino, pênis, vulva, canal anal e orofaringe”. 

Meus olhos vagam pela sala e miram o pequeno espelho que me possibilita ver o colo do meu útero e acompanhar o exame de outro ponto de vista. Fico pensando no quão atemporal é o retrato cênico da performance de Annie Sprinkle… A enfermeira, que já dilatou o meu canal vaginal, prepara a espátula para coletar amostras do tecido uterino. Não me incomoda tanto. Já a escova endocervical, que vem na sequência, me incomoda um pouco mais. “Você pode sentir uma colicazinha”, diz ela, gentilmente. Um, dois, três. Respiro fundo novamente. 

Ainda de acordo com o Estudo Epidemiológico Sobre A Prevalência Nacional De Infecção Pelo HPV (Pop-Brasil), publicado em 2020, “o HPV é um vírus de DNA da família dos papilomavírus com mais de 170 tipos identificados. Alguns destes vírus são considerados de alto risco para o desenvolvimento do câncer cervical, como o HPV 16 e 18.”  

“No Brasil, a vacinação contra o HPV foi incorporada ao Programa Nacional de Imunização (PNI) em 2014 com a aplicação da vacina quadrivalente, que confere imunidade contra os tipos virais 6 e 11 (responsáveis por 90% dos casos de verrugas genitais) e 16 e 18 (responsáveis globalmente por 71% dos casos de câncer cervical)”.  

O exame preventivo do colo de útero não detecta tipos de HPV, mas sim, o aparecimento de sintomas, como verrugas ou alterações neoplásicas no tecido cervical, comumente chamadas de “lesões”. Isso significa que o exame é útil para o diagnóstico de estágios preliminares ao câncer, como NIC 1, apelido atribuído à neoplasia intracervical considerada uma “lesão de baixo grau” e NIC 2 e NIC 3, consideradas “lesões de alto grau”. O exame também pode detectar alterações na cultura bacteriológica e fúngica. Quadros de infecção como clamídia, sífilis, gonorreia, candidíase e tricomoníase são contemplados pela avaliação diagnóstica.  

Voltando à minha “colicazinha”… Ai… Ufa, passou. Terminado o meu exame, observo tanto a espátula quanto a escova sendo friccionadas, cada uma contra uma lâmina, e então armazenadas em diferentes tubos de ensaio. O material da coleta é devidamente embalado para ser direcionado à análise em laboratório. O resultado do exame me será entregue em alguns dias. 

Fico pensando que, para o público masculino, esse assunto pode, à primeira vista, parecer um pouco mais nebuloso, já que não existe um exame análogo ao que se faz no colo do útero. Mas me recordo que o diagnóstico dos diferentes problemas que englobam a sexualidade masculina pode ser feito através de: autoexame testicular, amostra de urina, coleta de sangue, colonoscopia e exame de próstata.  

No final do atendimento, olho para a enfermeira e decido brincar um pouquinho mais. Digo-lhe: “um prazer em te dar o colo”. Ela me olha meio sem jeito e ri. Me responde: “o prazer de cuidar da sua saúde é todo meu”.  

Brincadeiras à parte, confesso que, antes de eu efetivamente ir embora daqui, preciso te fazer uma pergunta muito séria: e aí, quando foi a última vez que você deu o colo para uma enfermeira? 

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