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Não vejo outra forma de começar esse texto a não ser me desculpando. Estou pra lá de atrasada! Será que estou?

Leitores, hoje vamos falar sobre tempo.

Lembram do texto passado, quando compartilhei com vocês a vivência de minha queda e falamos sobre o quanto, periodicamente, temos que interpelar nossas máscaras, quando estas se tornam caricatas demais? Ou ainda, o quanto, de tempos em tempos, temos que nos permitir destruir para reconstruir, dando espaço para o que não vai bem?

Pois agora devo lhes dizer: bem mais difícil do que percebermos que algo não vai bem é o processo de, voluntariamente, adentrar aos portões de nossos infernos. Paradoxalmente, é justamente ali que encontramos nossos maiores tesouros.  

Eis que depois de me estrebuchar no chão, eu relutantemente aceitei que precisava de um tempo (olha ele aqui de novo!). Eu precisava de um tempo para cuidar de mim.

Após muito desdenhar de meu processo, decidi, em análise, que realizaria uma viagem sozinha.  Algo absolutamente inédito.

Enquanto eu buscava coragem, em meu computador havia sempre aberta uma aba do Airbnb, com o anúncio de uma casa que coube perfeitamente em minha fantasia para essa jornada. O lugar perfeito. Preço dentro do orçamento, charmosamente pequeno, no topo de um morro, e, especialmente, com vista para o mar.

Em algum momento, o click final se deu. Completei a minha reserva. No mesmo momento, teve início a tortuosa matemática do ego:

Viagem em duas semanas, cinco dias fora. Se eu adiantasse todos os meus compromissos operacionais da semana seguinte, uma semana antes, então eu poderia me permitir relaxar!  Estaria justificada uma viagem sem peso na consciência (!). Bastava – meu plano mental me dizia – produzir em dobro! Se assim fizesse, viajaria respaldada no gozo pós moderno, o famoso e falacioso “Dei conta de tudo”!

Já podem imaginar, né? 

Assim como todo o plano infalível, este faliu. Tinha uma pedra no meio do caminho…

Na verdade, tinha mesmo era o maior dos poetas… Aquele! o que trabalha justamente brincando em serviço: o inconsciente!

10 dias antes da viagem, prontíssima para meu projeto mulher maravilha, me sento em frente ao computador e percebo. Eu perdi meus óculos. Procurei pela casa inteira, chorei de raiva, me descabelei. Todo o meu projeto comprometido com a produtividade e com o dar conta de tudo se viu em ruinas. Eu perdi (não deixem passar essa ironia) justamente meu instrumento de foco!

Sem a visão ideal. Foi assim que me vi compelida a enxergar que, em minha visão cristalina, havia cegueira.

Lá estava eu, cada vez mais afogada em meus prazos, convocada a não dar conta daquilo que artificialmente elenquei como prioridade. Convocada, finalmente, a dizer que a prioridade deveria ser dar conta de mim.

“Às vezes, perder é ganhar, e, às vezes, ganhar é perder”. Essa é a conclusão de Chris (Robin Williams) no filme Amor Além da Vida (1998), filme, inclusive, que deixo de indicação a você, leitor.

Foi perdendo os meus óculos que tomou corpo o maior convite dessa excursão: encarar minha visão abstrata, rudimentar, (im)precisa. Encarar que é justamente a partir dela que me faço mais disponível ao compromisso com o meu mundo de dentro. E que, definitivamente, é a partir dela que faço minhas artes.

Leitores, quando nos vemos compelidos a fazer algo, precisamos estabelecer nossa métrica. E é apenas a partir disso que poderemos avaliar onde e como perdemos e ganhamos.

Vejam, se nosso compromisso se dá a partir da métrica do quantitativo, respeitar nosso tempo é sempre perder. Se nosso principal compromisso, por sua vez, é de ordem qualitativa, engajado não com a reprodução, mas com a produção em profundidade, então, necessariamente, este precisa seguir seu próprio tempo. Nem muito, nem pouco, mas o que for preciso.

O ato criativo não se familiariza com tempo do relógio, Cronos. Ele se familiariza com o tempo da alma, Kairós. Quantas pessoas, porém, podem dizer ter o privilégio de um supervisor compreensivo e atencioso às necessidades individuais de seus colaboradores, sensível a perceber que oferecer tempo pode inclusive ser a chave para um novo insight, uma nova criação, um novo produto, e… quem sabe… até mesmo de maior lucro?

Entre Cronos e Kairós, nos cabe respeitar ambos. Nos cabe negociar uma terceira via. E o problema de nosso tempo é que ele não respeita os tempos.

Em última instância, devo dizer-lhes que se permitir sair do mundo de fora para ocupar o mundo de dentro, com passagem de ida e de volta, possibilita revoluções importantes, inclusive na maneira de conduzir os tempos nos afazeres de ordem objetiva quando retornamos.

Eis que, no tempo certo, minhas novas lentes chegaram, e foi a partir delas que viajei.

Leitores, quero lhes dizer que estou de volta! Mês que vem, quem sabe, sem atrasos!

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