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Estudar, trabalhar, viajar, dirigir, abrir uma conta bancária, comprar uma casa ou até se casar. Já imaginou não poder executar nenhuma dessas ações pelo fato de não ter documentos legais que comprovem a sua existência? 

 Estima-se que essa é a realidade de mais de 10 milhões de pessoas no mundo, que são classificadas como apátridas – os dados são do movimento #Ibelong, realizado pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU).  

A apatridia é uma derivação da discussão sobre nacionalidade, que, por sua vez, é a porta de entrada para que um indivíduo possa ter direitos legais em um determinado país e significa, do campo do direito internacional, o vínculo jurídico e político que esse indivíduo detém com um determinado Estado. Algumas pessoas nascem apátridas, mas outras tornam-se apátridas.  

 A partir do conceito do que é uma apátrida, é preciso entender como os casos de apatridia surgem. Para elucidar essas questões, Gustavo Pereira, professor do curso de pós-graduação em Direitos Humanos na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que existem cinco principais razões que podem culminar em casos de pessoas apátridas. São elas:

1. RETIRADA COMPULSÓRIA DA NACIONALIDADE COM DETERMINADO ATO ESTATAL

Em regimes não democráticos, o Estado pode determinar a nacionalidade de certos grupos de pessoas, e realiza a pena de banimento que se refere à expulsão de um nacional com a consequência de perda de nacionalidade. No Brasil, a prática é proibida, mas esteve em vigor na ditadura militar de 1964.  

2.  LACUNAS DO PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO   

Quando um determinado país obriga que a pessoa que deseja se naturalizar renuncie à nacionalidade originária e, como o processo é demorado, por um período de tempo, gera uma lacuna que pode resultar em casos de apatridia. 

3.LIMITAÇÃO ÀS MULHERES

 Existem 27 países no mundo que só permitem ao homem o registro dos filhos. Os casos de apatridia são comuns neste cenário, com as mães-solo, por conta de homens que falecem antes de registrar a criança ou até desaparecem. 

4. SURGIMENTO DE NOVOS PAÍSES E MUDANÇAS FRONTEIRIÇAS

Quando são criados países e existem mudanças de fronteiras com processo de separação, muitos grupos não conseguem obter sua nacionalidade mesmo quando os países novos permitem a nacionalidade para todos. Muitos grupos étnicos e minorias enfrentam essas dificuldades. 

5.ATRIBUIÇOES QUE ENVOLVEM LEGISLAÇÕES QUE PODEM DIFICULTAR O PROCESSO DE NACIONALIZAÇÃO

O critério de atribuição da nacionalidade originária é a definição que determina quem é cidadão nato. Quando as questões de atribuição por nacionalidade originária entram em conflito com as leis de cada país, as exposições que existem no direito internacional para que haja atribuição à nacionalidade originária utilizam critérios territoriais ou afiliação como base.  

BRASILEIRINHOS APÁTRIDAS

Para ilustrar a última das razões explicadas pelo professor Gustavo, olharemos para um fenômeno que aconteceu aqui, no Brasil, e gerou os conhecidos como “brasileirinhos apátridas”: filhos de brasileiros nascidos no exterior. Estima-se que esse fenômeno produziu cerca de 200 mil crianças apátridas – Dados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).  

Inicialmente, as Constituições de 1824 e 1891 diziam que para adquirir a nacionalidade brasileira, filhos de pais brasileiros nascidos no exterior deveriam vir a residir no Brasil. Já nas de 1934 e 1937, era necessário que, após completar 18 anos, o filho optasse pela nacionalidade brasileira. Em 1946, eram exigidos os dois requisitos: residência no território nacional e a escolha da nacionalidade brasileira até quatro anos após a maioridade.  

A partir de 1967, adotou-se como alternativa adicional o registro da criança em repartição brasileira no exterior. O registro seria válido até a maioridade, sendo que, antes de atingi-la, a pessoa deveria residir no Brasil e optar, até quatro anos após completar 18 anos, pela constância da sua nacionalidade.  

A Constituição Federal de 1988 manteve, inicialmente, os mesmos critérios aplicados em 67, tendo sido emendada duas vezes: uma em 1994 (EC 3/1994) e outra, mais recentemente, em 2007 (EC 54/2007). 

 O Artigo 12 da Constituição estabelece que são brasileiros natos: aqueles que nascem no país ou no exterior, mas são filhos de brasileiros que prestam serviço ao Brasil; ou aqueles que nascem no exterior, filhos de pai ou mãe brasileiros, registrados em repartição competente. 

 A emenda de 1994 veio a modificar a opção de registrar filhos de brasileiros que nasciam no exterior em repartições competentes. De acordo com ela, têm a nacionalidade “os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.” 

 Michele Franke passou por esse caso por um curto período com a sua filha Maia, que nasceu apátrida na Espanha. Em 2004, Michele era casada com a pai da menina, que também era brasileiro e trabalhava como jogador de futebol no país europeu.  

Maia nasceu lá, mas a lei não permitia que a criança fosse registrada em órgão de repartição no exterior, fazendo com que precisassem voltar ao Brasil e residir por um tempo aqui para que ela fosse naturalizada brasileira. 

 A alternativa de Michele para a filha, na época, era obter a nacionalidade espanhola, mas, para isso, era preciso realizar um acompanhamento com um advogado habilitado para atuar em ambos os países. Ela ressalta que a opção só foi possível porque tinha uma base jurídica por trás:  

“Eu tinha essa condição e mesmo assim passei muitos preconceitos. É importante se colocar no lugar de outras pessoas que tenham passado por situações semelhantes e encontram dificuldades por não terem recursos”, comenta. 

 Atualmente, Maia possui dupla nacionalidade, uma vez que reside no Brasil e conseguiu se naturalizar brasileira, de acordo com a lei de 2007, em vigor até hoje. Ao completar a maioridade, deverá optar pela nacionalidade espanhola ou brasileira e terá a opção de ter dupla cidadania do país que abdicar da nacionalidade.  

REFUGIADOS E APÁTRIDAS FAZEM PARTE DO MESMO GRUPO?

Para elucidar essa questão, o representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Luiz Fernando Godinho, esclarece que os termos não se referem ao mesmo grupo de pessoas. Ele afirma que existem pessoas que são apátridas e as que são refugiadas, que neste caso possuem uma nacionalidade, mas em razão de perseguições relacionadas à raça, religião, nacionalidade ou associação a determinado grupo social ou político, não podem e/ou não querem regressar ao seu país de origem.  

 No Brasil, foi constituído um mecanismo em 2017 para o reconhecimento de apátridas e o governo fechou o ciclo que possibilita a apatridia; os apátridas identificados no país, atualmente, podem optar pela naturalização, de acordo com a lei nº13.445.

Dentro dela, o Art. 26 propõe o regulamento sobre instituto protetivo especial do apátrida, consolidado em processo simplificado de naturalização, ou seja, o processo de reconhecimento da condição de apátrida tem como objetivo verificar se o solicitante é considerado nacional pela legislação de algum Estado e poderá considerar informações, documentos e declarações prestadas pelo próprio solicitante e por órgãos e organismos nacionais e internacionais.  

Luiz salienta que o processo de combate à apatridia ainda vai perdurar anos por conta da pandemia. “É importante deixar claro que esse processo já têm ganhado espaço nas discussões dos governos mundiais, mas ainda temos um longo caminho pela frente, ainda mais na situação em que vivemos com a pandemia e instabilidades políticas assíduas em alguns países”, relata. 

A BRASILEIRA QUE VIVEU TRINTA ANOS SEM NACIONALIDADE

Maha viveu trinta anos sem nacionalidade, como apátrida.
Atualmente, Maha é uma grande ativista pelo direito à nacionalidade. Foto: Acervo pessoal.

A luta pela causa dos apátridas no Brasil e no mundo ganhou força com o trabalho da ativista Maha Mamo. Filha de pais sírios e nascida no Líbano, ela não teve sua nacionalidade reconhecida em nenhum dos dois países por prerrogativas internas: como não era filha de libanês, não poderia ter nacionalidade por lá e, na Síria, o casamento inter-religioso é considerado uma prática ilegal. Sua mãe era muçulmana e o pai cristão, ou seja, não conseguiam registrar os filhos.  

 Maha e seus dois irmãos enfrentaram desafios desde cedo; o primeiro deles foi entrar para escola. Ela conta que a partir desse momento começou a entender que não ter uma nacionalidade implicaria em questões fundamentais da vida. “Me perguntava, como eu vou para a escola sem documento? Como vou entrar em um hospital? Como eu vou viajar, dirigir, praticar atos de um cidadão comum?”. 

 Os percalços que impediam Maha e seus irmãos de viver uma vida normal mobilizaram um sentimento de busca pela sua nacionalidade, foi então ela que começou a enviar sua história para vários países e a persistência fez com que a ativista fosse olhada pelo Brasil.  

Ela e os irmãos entraram no país como refugiados e depois de um longo processo foram reconhecidos como apátridas; o reconhecimento como refugiados, inicialmente, foi possível porque os pais tinham nacionalidade síria. 

 A chegada no Brasil foi difícil; a ativista falava quatro idiomas, mas não dominava o português e essa questão foi um impasse. Tinha mestrado, mas não conseguia uma oportunidade de emprego; começou com panfletos, para pagar as contas. 

 Maha e a irmã foram as primeiras a se naturalizarem brasileiras por serem apátridas. O processo de naturalização, segundo ela, é mais complexo e depende de caso a caso.  

Desde que chegou no Brasil, em 2014, até o processo de naturalização, a principal bandeira de Maha com o ativismo é fazer com que os países do mundo olhem para as pessoas apátridas como indivíduos que possam ter direitos garantidos e passem do status de Apátrida de Facto (Indivíduo que não possui nacionalidade e não pode pedir proteção no país que está), para Apátrida de Direito (Indivíduo que possui o status de apátrida mas tem todos os direitos que um estrangeiro tem no país no qual reside).  

 “O apátrida é um indivíduo, um ser humano, que poderia ser você. A minha luta foi por mim e por todos que ainda passam pela violação de direitos, quero que essas pessoas tenham o direito de pertencimento”, diz. 

 Maha ressalta ainda que a explicação sobre quem são os apátridas é um desafio macro, uma vez que não é dominada pela população em geral e exige que os governos estejam engajados na causa para que as leis facilitem o processo de conquista de direitos para a parcela afetada da população.  

“É muito importante conscientizar as pessoas acerca do assunto de uma forma que elas entendam a necessidade e explanar isso para o mundo, por isso faço palestras, escrevi um livro e continuo a insistir na luta pela conquista dos direitos de quem ainda não os tem”, finaliza.  

COMO AJUDAR A CAUSA QUE COMBATE A APATRIDIA?

 A sua contribuição pode ser feita ao assinar a carta aberta do movimento #IBELONG que luta pelo Fim da Apatridia no mundo. Para fazer a diferença, a carta precisa contabilizar 10 milhões de assinaturas que podem ser feitas no site da UN Refugee Agency (UNHCR).  

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