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Era 2015 e Anas Obaid acabava de desembarcar no país do Carnaval, mas ele não estava em busca de festa. O sírio natural de Damasco, capital do país árabe, queria viver sem medo de morrer pelas bombas e tiros de apoiadores e inimigos do presidente Bashar al-Assad a cada vez que colocasse os pés na rua. Em seu sexto ano no Brasil, o refugiado também teme sair de casa devido ao coronavírus.  

A pandemia do novo coronavírus chegou ao país com força em março de 2020 e, desde então, mais de 500 mil pessoas morreram no país, segundo informação do consórcio de veículos de imprensa com base em dados das Secretarias de Saúde. Como reflexo das imposições necessárias contra o vírus, as vagas de emprego diminuírammilhares de pessoas foram demitidaso poder de compra dos brasileiros foi substituído pela dor de não ter condições para comprar carne no mercado, entre outras consequências.  

Obaid está enfrentando essa torrente de acontecimentos como tantos outros, sim, mas acometido pela solidão que só quem perdeu tudo sabe. “Não vejo minha família há dois anos. Tentei visitá-los em 2019, mas quando cheguei ao aeroporto da Síria, o passaporte que me deram no Brasil não foi aceito. Minha mãe estava a 100 metros de mim e eu não consegui vê-la”, conta o sírio. 

A família do refugiado, que também tem irmã e irmão, está na Síria desde 2019 – eles decidiram voltar ao país após passar um período no Líbano e não se sentirem acolhidos. Obaid não pensa em fazer o mesmo caminho, já que seria obrigado a participar da guerra civil que já rendeu dez anos de imagens tórridas. Ele tem algumas delas vivas na memória: “Quando o conflito começou, eu trabalhava na TV do país como estagiário e saía muito para acompanhar filmagens. Vi mulheres tendo seus filhos na porta dos hospitais porque eram impedidas de entrar; pessoas sendo expulsas de casa; horrível”.  

A solidão somada às incertezas da pandemia também atingiu outros refugiados; Obaid tem contato com muitos deles em São Paulo, onde mora desde sua chegada ao Brasil. “Recebo mensagens de muitas famílias que estão desesperadas. Elas pedem socorro porque não têm dinheiro para pagar o aluguel, para colocar comida na mesa. Quando isso acontecia antes da pandemia, fazíamos feira para vender nossos produtos, mas agora é complicado. Se promovermos uma feira, por exemplo, podemos ser multados”.  

Impedidos de negociarem nas ruas, alguns refugiados seguem os conselhos de Obaid sobre como vender produtos pela internet e entrar em contato com mais brasileiros. Porém, o sírio não vê grande retorno financeiro para os conterrâneos:  

“Recebo várias mensagens por mês de pessoas querendo conhecer as histórias dos refugiados para pesquisas, TCCs. Eles escutam o que falamos, se emocionam, mas quando oferecemos nossos produtos, dizem ‘Amanhã eu passo aqui e compro’, porém não voltam mais. Não queremos caridade, mas é importante que tenhamos mais apoio porque a única coisa que recebemos do governo quando chegamos aqui são documentos”.  

INEFICÁCIA DO ESTADO E IMPORTÂNCIA DO TERCEIRO SETOR

Segundo o Ministério da Justiça, 525 sírios entraram no Brasil entre janeiro de 2020 e junho de 2021. O número se soma aos 3.594 refugiados do país, registrados pelo Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) de 2011 a 2020. Parte deles, assim como aconteceu com Obaid, são acolhidos por Organizações não governamentais (ONGs).  

A Pastoral dos Migrantes de Goiânia, ligada à arquidiocese da mesma cidade, atua há 21 anos no serviço de acolhimento a refugiados. Entre as atividades de apoio oferecidas pela Organização estão aulas de português, encaminhamento a albergues e vagas de emprego e tratamento médico. Roberto Portela faz parte da igreja desde a infância e foi guiado até o trabalho na ONG.  

“Sou responsável pela facilitação de documentos aos refugiados. Todo o trabalho da organização é feito de forma humanizada, conhecendo as especificidades e as melhores maneiras de lidar com a cultura das pessoas para que elas se sintam confortáveis no nosso país”, conta Portela.  

Do Centro-oeste para o Sudeste, em São Paulo, o Adus também oferece aulas de Português, orientação financeira, encaminhamento para vagas de emprego e, ademais, tem uma escola de idiomas em que os professores são todos refugiados. Marcelo Haydu fundou a ONG há dez anos junto com dois amigos. Neste tempo, acolheu muitos sírios e refugiados de outras nacionalidades, ampliando a gama de serviços da Organização a cada ano.  

“Trabalhamos presencialmente e remotamente. O refugiado pode chegar na nossa sede no Centro da cidade ou nos contatar pela internet para comunicar o que ele precisa. Temos uma equipe treinada para fazer esses atendimentos e encaminhamentos, se necessário. Apesar de estarmos em São Paulo, temos contato com empresas e albergues de todo o Brasil, assim é mais simples fazermos um acolhimento em rede”, explica Haydu. 

Assim como Obaid, o diretor executivo do Adus considera que o grosso do acolhimento aos refugiados é feito pelas ONGs. “A existência desse tipo de Organização é o resultado da ineficácia do governo. O Estado oferece documentação, mas depois disso faz muito pouco. É preciso ir além de apenas permitir que essas pessoas entrem no país, elas perderam tudo e precisam de trabalho, casa, apoio”.  

De dentro do círculo de refugiados, Obaid sente a falta de ações governamentais, mas ainda assim “ama o Brasil”. Foi aqui onde começou a vender perfumes artesanais e começou a produzir sua próxima essência, inspirada em um cheiro que o marcou na sua chegada:  

“O clima quente molhado me marcou muito porque venho de um lugar seco. Estou produzindo uma essência de aromas que me lembram do Brasil, com tons cítricos, florais, que remetem a essa terra que tem tudo para dar certo”.  

Faça sua parte, apoie o Adus e a Pastoral dos Migrantes de Goiânia.  

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