“Filha, você tem que ir para a escola”. A orientação à menina de 8 anos é de Dilma Mota, sua mãe. Para ela, a falta de motivação da estudante em relação às aulas não está ligada ao fato de acordar cedo, mas à insegurança por não ter avançado na alfabetização. Matriculada na 3ª série de uma escola estadual na capital paulista, Pietra tem o início do ano letivo marcado por uma das consequências do fechamento prolongado das instituições de ensino devido à pandemia de Covid-19: a perda de aprendizagem.
“Eu posso descrever que ela não sabe nada. A única coisa que ela sabe escrever é o nome. É algo que ela decorou, se você perguntar as letras do nome, ela não sabe”, detalha a mãe.
O caso de Pietra não é isolado, nem no Brasil, tampouco no mundo. Um relatório do Unicef de janeiro de 2022 expõe os impactos da pandemia na aprendizagem de crianças e jovens. O estudo revela que a interrupção de aulas presenciais afetou, em seu pico, 1,6 bilhão de alunos em 188 países, um bilhão deles nos de baixa e média renda.
Em termos de alfabetização e de leitura no Brasil, o documento indica que, em um grupo de estados incluindo São Paulo, 74% dos estudantes da 2ª série foram considerados pré-leitores, ou seja, leem no máximo 9 palavras por minuto. Esse número era de 52% antes da crise sanitária. De acordo com a diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Claudia Costin, é necessário um processo de realfabetização para enfrentar a crise de aprendizagem.
“Praticamente tudo que eles aprenderem na escola vai demandar que saibam ler. E sem saber ler e escrever você tem dificuldades muito grandes de exercer a cidadania e de entrar para o mundo do trabalho. É o mínimo que a gente precisa, ainda mais em tempos de digitalização acelerada e inteligência artificial”, defende a professora.
Em um recorte no estado de São Paulo, o levantamento concluiu que os estudantes aprenderam, em média, 28% do conteúdo que teriam assimilado em aulas presenciais. Considerando disciplinas básicas, os alunos da 5ª série tiveram regressão no aprendizado, chegando a um índice próximo ao de uma década atrás em Português e ao registrado há 14 anos em Matemática.
APROFUNDAMENTO DAS DESIGUALDADES
Antes da pandemia, 258 milhões de crianças e jovens em idade escolar primária e secundária estavam fora da escola, conforme o Unicef. Nos países mais desiguais, esse público que já vivia em situação de vulnerabilidade foi mais afetado pela crise sanitária.
O Brasil é um desses exemplos onde a falta da rotina escolar implicou aumento da insegurança alimentar, tendo em vista que muitas crianças de famílias de baixa renda têm na merenda uma das principais refeições. Com menos de um ano de pandemia, o país já tinha cinco milhões de educandos fora da escola.
Em um cenário de avanço da vacinação infantil, a recomendação da oficial de educação do Unicef no Brasil, Júlia Ribeiro, é pela manutenção da reabertura. “Neste momento em que grande parte das redes educacionais estão reiniciando o ano letivo, é importante que esse reinício aconteça com as escolas abertas e a partir da oferta das aulas presenciais”, defende.
No estado de Minas Gerais, assim como em outros, as instituições de ensino voltaram a receber os estudantes em suas instalações. Aos 16 anos, Mariana Pimenta já passou pelas aulas remotas e híbridas antes da retomada das atividades 100% presenciais, em novembro de 2021. Ela cursa o 2º ano do ensino médio na Escola Estadual Domingas Maria de Almeida, em Belo Horizonte.
A estudante acredita que é possível recuperar as perdas de aprendizado e retomar as interações com os colegas e professores. “Nada se compara a ter uma explicação direcionada da sua dúvida, ter ali o professor para ajudar a desenvolver as tarefas e o aprendizado, é de uma importância sem tamanho. O online não garante essa troca, além disso, podemos criar um afeto pelo professor através do contato diário”, descreve Pimenta.
IR ATRÁS DE QUEM DEIXOU A ESCOLA
Dentre os inúmeros desafios da educação ocasionados pela pandemia está o de trazer os alunos de volta à escola. Segundo Júlia Ribeiro, uma estratégia que tem sido implementada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), é a busca ativa escolar.
A medida visa contribuir na organização de estados e municípios para localizarem aqueles que estavam fora da escola ou que correm algum risco de abandono e tomar as medidas necessárias para garantir que cada criança e adolescente volte e permaneça aprendendo.
“A estratégia já conta com mais de três mil municípios brasileiros de 22 estados que participam da busca ativa escolar. Desde o começo da pandemia mais de 80 mil crianças e adolescentes foram encontrados e voltaram para a escola em todo o país“, comemora.
ENSINO REMOTO NÃO ACONTECEU PARA MAIS DE 460 MILHÕES NO MUNDO
Com o fechamento das escolas, o ensino remoto surgiu como uma opção. Porém, a modalidade depende da conexão à Internet e o relatório do Unicef aponta que, globalmente, 1,3 bilhão de crianças em idade escolar não tinham acesso à rede em casa. Desse total, pelo menos 463 milhões não tiveram aulas à distância pelo computador nem por programas de TV ou rádio.
Dilma Mota vive na periferia de São Paulo e relata que a filha não teve aulas online por falta de recursos:
“Ou eu trabalhava ou ficava com a Pietra e não dá pra ficar sem trabalhar porque eu tenho as necessidades de casa. Então, ela ficava com uma cuidadora e não tinha como ter acesso às aulas remotas até porque quase sempre a gente não tem dinheiro para pagar internet e plano do celular”.
A desigualdade de acesso à internet no Brasil poderia ter sido menor, caso o presidente Jair Bolsonaro não tivesse vetado um projeto de lei aprovado pelo Congresso em fevereiro de 2021, um dos momentos mais críticos da pandemia. O PL previa 3,5 bilhões de reais para ampliação de conexão para escolas públicas, alunos e professores. Com a derrubada do veto pelos parlamentares, a lei 14.172/2021 passou a vigorar em janeiro deste ano.
RECUPERAÇÃO DA APRENDIZAGEM E SAÚDE MENTAL
Em todo o mundo, crianças e jovens vivenciaram o isolamento social, perdas de pessoas queridas, interrupção das rotinas e incertezas sobre o futuro em um contexto pandêmico. O Unicef ressaltou que um crescente conjunto de evidências mostraram altas taxas de ansiedade e depressão nesses grupos.
No âmbito escolar, se torna ainda mais prioritária a busca pelo equilíbrio entre a recuperação da aprendizagem e a garantia da saúde mental. No Brasil, a atuação de psicólogos e assistentes sociais tem um papel importante nesse objetivo. Meses antes da descoberta da Covid-19, foi aprovada a lei 13.935/2019 que tornou obrigatória a contratação desses profissionais nas redes públicas de educação básica. A promulgação ocorreu após uma luta histórica de 20 anos das categorias.
“Esse longo percurso de participação criou as condições para que nós pudéssemos de fato ter uma lei que representa o que a área da psicologia escolar educacional tem como princípios para sua atuação. Temos a perspectiva de um referencial teórico que dê conta da realidade da educação e da construção de práticas que venham a contribuir para a melhoria da qualidade da educação, para o enfrentamento das desigualdades e pela luta pelos direitos sociais e pelos direitos humanos”, explica Marilene Proença, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), que integra a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), no cargo de primeira tesoureira.
A regulamentação da legislação fica a cargo das secretarias municipais e estaduais de educação. A lei não estabelece um número específico de psicólogos por escola e ainda não há dados nacionais disponíveis sobre sua implementação. Por meio de nota, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) afirmou que atua na sensibilização de gestores locais sobre a importância da implementação da lei e “não dispõe no momento de dados compilados quanto a esse status, visto que essas são informações que precisam ser coletadas junto aos estados e municípios, que se encontram em diferentes fases desse processo”.
Como exemplo de estados que têm incluído a atuação desses profissionais no ambiente escolar temos Minas Gerais e São Paulo. Neste ano, o primeiro abriu edital de processo seletivo para contratação de 460 psicólogos e assistentes sociais, sendo 230 vagas para cada cargo.
Já em São Paulo, desde fevereiro de 2021, cerca de mil psicólogos prestam atendimento virtual e presencial às 5,1 mil escolas do estado, com foco na melhoria da convivência nas instituições de ensino. Cada unidade tem entre 2 e 20 horas semanais de atendimento, dependendo da demanda de cada local.
CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA NO CONTEXTO ESCOLAR
De Mogi Guaçu, em São Paulo, a psicóloga Yonara Aguiar atua de maneira remota em cinco escolas do estado, em contato com todos os segmentos – equipe gestora, funcionários, alunos, professores e pais. Seu trabalho consiste em elaborar intervenções com ações preventivas e pontuais junto à rede de ensino. Após um ano de atuação no programa Psicólogos na Educação, ela considera os resultados positivos. Aguiar avalia que a pandemia gerou diagnósticos de saúde mental e, a partir de sua escuta junto à comunidade escolar, constatou uma maior incidência dos casos de ansiedade não só em alunos, mas em toda a comunidade.
Para a profissional, a atuação constante do psicólogo na escola contribui para o equilíbrio da recuperação da aprendizagem e a saúde mental. “É o acolhimento dos alunos e de toda comunidade escolar por meio deste olhar humanitário sobre tudo o que nós estamos passando, nós com a pandemia, que ultrapassa os muros da escola. É uma coisa que afeta toda a sociedade e esse entendimento junto aos professores e alunos é um trabalho de formiguinha. A gente vai ali no dia a dia atuando e se capacitando para que a gente possa trazer nosso desenvolvimento escolar”, conclui.
Outra possibilidade é problematizar as vivências dos estudantes em relação à Covid-19 nas aulas. A abordagem é sugerida pela professora Claudia Costin, da FGV. “É o que eu chamo de projeto sobre o covid que pode ajudar na saúde mental dos alunos. A ideia é que os alunos entrevistem seus pais sobre como foi viver os impactos da covid. A família perdeu emprego? Perdeu entes queridos? Houve adoecimento? Que eles façam uma entrevista e que eles colaborativamente troquem esses dados entre eles, quer dizer, que haja um espaço para falar do que foi vivido e não tornar a covid um tabu“, detalha.
A estudante Mariana Pimenta tem se preocupado tanto com o próprio bem estar psicológico quanto o dos colegas. Apesar de ninguém próximo ter desenvolvido ansiedade ou depressão, ela se coloca como alguém disposta a escutar sem julgamentos. De acordo com a adolescente, a instituição de ensino também deve atuar nesse aspecto.
“Até para esses alunos que perderam o interesse e que regrediram nos estudos, é responsabilidade da escola ter o cuidado de não tratar ali só a questão da educação, mas sim de aprofundar na saúde mental daquele aluno”, considera.
Ainda sem previsão do fim da pandemia, os estudantes precisam se adaptar ao retorno das aulas presenciais. “Mesmo que seja difícil voltar e encarar tudo isso, a gente não pode perder o foco, a gente precisa ter um estímulo. Pensar que se um dia você quer ser um médico, engenheiro ou algo assim, a gente precisa abrir os olhos para a educação e aceitar ela de novo e retomar os estudos de onde a gente parou. Porque a base de tudo é a educação. Então, a gente tem que deixar de lado o medo e se entregar”, aconselha e finaliza a aluna Mariana Pimenta.