Os quatro anos de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foram marcados por medidas arbitrárias e descaso com a educação. Diversos setores enfrentam, agora, uma “desbolsonarização”, na tentativa de reverter os desmontes nas diversas áreas do governo. O desafio é grande, já que será preciso remediar prejuízos que colocaram as pastas em retrocesso.
Segundo Priscila Cruz, presidente-executiva e co-fundadora da organização não governamental Todos Pela Educação, a gestão de Bolsonaro na educação é a pior da história. Em entrevista ao Poder360, ela apontou: “Tivemos uma sequência de ministros e cada um foi sendo pior que o anterior”.
Já no começo da gestão, a falta de comunicação dificultava o andamento da pasta e resultou no acúmulo de problemas internos. Em apenas três meses, quatro nomes foram anunciados para o cargo de secretário-executivo do Ministério da Educação. A pasta passou, no total, por quatro mãos durante o governo Bolsonaro.
A pauta moral e ideológica era justificada nas quatro administrações pelo combate a um ‘terror comunista’ nas instituições de ensino. Ricardo Vélez Rodríguez, que geriu a pasta nos três primeiros meses, se declarava crítico do que considera a ‘influência marxista sobre a educação brasileira’ e, por isso, defendia o movimento político escola sem partido. “Combateremos o marxismo cultural, hoje presente em instituições de educação básica e superior. Trata-se de uma ideologia materialista alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo”, disse durante a posse.
As medidas foram arbitrárias e mostravam falhas gerenciais. Ainda em 2019, uma portaria que suspendia a Avaliação de Alfabetização foi publicada pelo Inep, mas a decisão foi anulada um dia depois, após demissão de Marcus Vinicius Rodrigues, presidente da instituição, ligado aos núcleos técnico e militar. Além disso, o Sisu de 2019/2020 enfrentou uma série de falhas, que fizeram com que a divulgação dos resultados fosse suspensa temporariamente.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também chegou a criar uma comissão para fiscalizar o conteúdo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Vélez disse pretender fazer uma revisão nos livros didáticos que contam a história do golpe de 1964 e da ditadura militar no Brasil e anunciou, em vídeo, que a “educação moral e cívica” voltaria às escolas.
O poder da imagem na agenda ‘patriota’ também foi importante na pasta da educação. Em fevereiro de 2019, Vélez enviou um documento a escolas públicas e particulares de todo país pedindo que fosse filmada a leitura de uma carta aos alunos com o slogan da campanha de Bolsonaro, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, com as crianças perfiladas diante da bandeira do Brasil para o Hino Nacional — ferindo a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. No dia seguinte, após críticas de educadores e instituições de ensino, o ministro admitiu que errou, retirou o slogan eleitoral da carta e ressaltou a necessidade de autorização dos responsáveis para a divulgação das gravações, mas manteve o pedido de filmagem das crianças.
Na mesma direção, seu sucessor, o ex-ministro Abraham Bragança Weintraub, defendeu ser direito dos alunos filmarem professores em sala de aula, em uma tentativa de evitar uma ‘doutrinação’ nas escolas. O posicionamento veio após Bolsonaro e seu filho, Carlos Bolsonaro, terem publicado no Twitter vídeos de alunos que gravaram professores em sala de aula.
Em entrevista para o jornal Valor, Vélez chegou a dizer que “universidade não é para todos”. E a frase foi guia para as demais gestões. Nos últimos quatro anos, foram diversos contingenciamentos de recursos destinados às despesas discricionárias de universidades federais que, “em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiveram fazendo balbúrdia”, segundo justificou Weintraub ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2019.
Enquanto a pasta lidava com o malabarismo do orçamento, Milton Ribeiro, que assumiu em seguida, negociou vantagens para a obtenção de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) em uma estrutura paralela no MEC controlada por lobistas evangélicos. Em 2022, pediu exoneração após denúncias de envolvimento no esquema de corrupção nomeado “Bolsolão do MEC” e foi preso por determinação da Justiça Federal.
QUAIS SÃO AS PRIORIDADES NO NOVO GOVERNO?
Diante de uma gestão desastrosa, se acenderam alertas para a evasão escolar, a alfabetização no tempo certo e o desnível entre turmas de redes privadas e públicas, principais consequências da gestão da educação na pandemia. No nível superior, houve uma grande preocupação com a defasagem das bolsas de pesquisa de graduação e pós-graduação, que sofreram cortes, influenciando a permanência de estudantes nas instituições.
Mesmo entre tantos desafios, a pandemia de Covid-19 deixou um ainda mais difícil: a fome. Durante a avaliação da equipe de transição do governo Lula, ainda em novembro de 2022, aumentar os recursos para alimentação escolar e o funcionamento das universidades federais foi considerada prioridade. A decisão foi definida pelo ex-ministro da Educação José Henrique Paim, escolhido como coordenador da área na equipe de transição.
“A recomposição está associada àquilo que tem sido defendido como prioritário pelo governo e uma das principais questões é a fome. Por isso, a alimentação escolar é um ponto importantíssimo. Assim como o funcionamento das universidades e institutos federais”, disse Paim em reunião com Fernando Haddad e especialistas no dia 8 de novembro.
Após a posse, o atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT), afirmou que o governo deve entregar um plano da pasta para os próximos quatro anos até o final de março. “Vamos procurar não só o novo ensino médio, mas a constituição do novo Plano Nacional de Educação, que precisa ser aprovado pelo Congresso, focado no ensino básico, na alfabetização na idade certa, na escola de tempo integral e na conectividade das instituições de ensino”, disse.
O levantamento inicial de prioridades, anunciado por Santana, inclui:
- Reajuste da verba para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), há seis anos sem alteração no valor dos recursos de repasse do FNDE para municípios e estados, que deve ser anunciado antes do início do ano letivo;
- Planejamento para a recuperação da qualidade da merenda escolar;
- Retomada de obras paralisadas e inacabadas em creches, escolas de tempo integral, ensino médio e fundamental e campos universitários — quase nove mil obras com recursos federais estão paradas ou atrasadas, em todo o país.
- Impulsionamento do Enem, que teve a menor taxa de adesão da história em 2022.
Segundo Santana, a prioridade deve ser o ensino público, sobretudo a educação básica. “O desafio do presidente Lula é enorme, até porque o último governo desorganizou a educação”, disse ele, em conversa com jornalistas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, após ser anunciado ministro da Educação.
“É preciso que a gente volte a ter uma visão sistêmica da educação, desde a infância até a pós-graduação, mas o foco do presidente nesse momento é a educação básica, que vai desde a educação infantil até o ensino médio”, prosseguiu.
LONGO PRAZO
Como o PNE atual tem vigência até 2024, a partir do ano que vem o governo federal terá de iniciar o planejamento das políticas para o decênio 2025-2034. E a prioridade é fazer com que todos os projetos sigam fiéis à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece os direitos de aprendizagem das crianças e jovens.
Para que as melhores medidas de políticas públicas sejam tomadas, um relatório com recomendações de políticas de educação para 2023, elaborado pelo instituto Movimento pela Base e pela Fundação Lemann, em parceria com a ONG Todos pela Educação, sugere quatro ações imediatas e três estruturantes para o governo federal. Para as ações urgentes, o material sugere:
- Aprimorar e alinhar o Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) à BNCC e ao Novo Ensino Médio;
- Aprimorar e alinhar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) à BNCC e ao Novo Ensino Médio;
- Regular e avaliar os cursos de formação inicial de professores;
- Monitorar e apoiar a implementação dos referenciais curriculares das redes.
As políticas recomendadas têm foco em apoiar as redes de ensino e atualizar a regulamentação nacional para promover a coerência das políticas pedagógicas nas redes. Assim, as entidades reforçam as ações futuras:
- Alinhar todas as ações do governo federal à BNCC, Novo Ensino Médio e outras diretrizes;
- Contribuir para a elaboração do próximo Plano Nacional de Educação (PNE);
- Preparar e realizar o processo de revisão da BNCC.
A reestruturação do Saeb vem de encontro com a necessidade do governo de produzir dados que mostrem a realidade educacional do país e encabecem políticas públicas. A ausência da produção de dados adequados, que reflitam a qualidade da educação pública brasileira, é um dos principais fatores que impedem a evolução educacional do país, segundo o professor José Francisco Soares, docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em métodos avaliativos da educação e ex-presidente do Inep.
A atual metodologia existe há 25 anos e precisa ser modificada para a inclusão de testes mais sólidos, que considerem a realidade do aprendizado da criança e a estrutura da sala de aula que ela tem acesso.
DESAFIOS
Um grande desafio apontado por especialistas está no orçamento da educação e no teto de gastos, que limita os investimentos do governo. A medida surgiu como uma tentativa econômica para manter as contar públicas do país controladas e evitar um “clima de insegurança” ao buscar reduzir a dívida pública, mantendo também a taxa básica de juros menor. Entretanto, a decisão afeta diretamente políticas públicas que beneficiam classes mais baixas e se posiciona a favor do sentimento do mercado.
A Emenda 95, que incluiu o teto de gastos na Constituição, provocou a queda dos recursos orçamentários destinados ao setor da educação. O orçamento da pasta apresentou uma queda contínua a partir de 2018, segundo reconheceu o subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Educação (MEC), Adalton Rocha de Matos, em audiência pública da subcomissão temporária criada para acompanhar a situação do setor durante a pandemia.
Rosilene Corrêa Lima, Secretária de Finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), estimou que a Emenda 95, desde que passou a vigorar em 2017, retirou mais de R$ 70 bilhões de recursos federais da educação. Ela salienta que o Brasil precisa tratar a educação como investimento, e não como gasto.
Houve uma queda de recursos federais para os programas educacionais no âmbito do Fundeb, como o Pnae e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), em razão da retração econômica decorrente da pandemia de Covid-19.
Em 2023, o orçamento destinado ainda não compreende o valor ideal necessário. “O Orçamento destinou pouco mais de R$ 11 bilhões para a educação e nossos estudos preliminares apontam que seriam necessários R$ 15 bilhões. Então é um processo que vamos acompanhar junto ao Ministério da Educação para que seja possível encontrar paulatinamente novas recomposições, novas medidas de emendas ao Orçamento que possam repercutir positivamente”, disse a senadora eleita Teresa Leitão (PT-PE) à TV Senado.
Para a senadora, a PEC da Transição, que resultou na Emenda Constitucional 126, significou uma solução emergencial ao permitir a recomposição dos valores destinados à merenda escolar. Sem o recurso, Lula assumiria o MEC com um orçamento menor em relação ao ano em que seu antecessor tomou posse. Seriam R$ 5,2 bilhões aprovados para a educação básica por Bolsonaro, enquanto no Projeto de Lei Orçamentária (PLO) de 2019, o governo de Michel Temer (MDB) previa R$ 7,9 bilhões — em valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
“Quando você coloca uma coisa chamada teto de gastos, tudo que acontece é você tirar dinheiro da saúde, tirar dinheiro da educação, tirar dinheiro da ciência e tecnologia, tirar dinheiro da cultura. Você tenta desmontar tudo aquilo que faz parte do social. E você não mexe em um centavo do sistema financeiro. Você não mexe um centavo daquele juro que os banqueiros têm que receber”, disse Lula durante a COP27.
Além da questão orçamentária, especialistas apontam para a construção de políticas de Estado com uma agenda de prioridade nacional. Ou seja, conceber um regime de colaboração para além do poder executivo dos entes federativos para que as políticas sejam contínuas, como aponta Gregório Grisa, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e mestre e doutor em Educação, em ensaio publicado no Nexo.
Os próximos anos do Ministério da Educação sob o comando de Camilo Santana devem caminhar sob uma esperança de reconstrução e aperfeiçoamento de políticas públicas. Após dias conturbados, surge a expectativa de reproduzirmos nacionalmente o sucesso do Ceará, governado pelo ministro por oito anos, que chegou ao topo do ranking da educação entre todos os estados nos anos iniciais do nível fundamental. O caminho, no entanto, é difícil e exigirá jogo de cintura para eliminar a herança bolsonarista.