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Cirurgia de resignação sexual e oferta do processo transsexualizador pelo SUS são dois dos exemplos de avanços direcionados aos membros da comunidade LGBTQIA+, implantados pelo Ministério da Saúde (MS) nos últimos 25 anos. Apesar disso, uma pesquisa realizada em 2014 pela Fundação HRC mostrou que 49% dos hospitais pesquisados não tinha “orientação sexual” e “identidade de gênero” nas políticas de não discriminação dos pacientes.

Estudos recentes mostram que o Brasil enfrenta inúmeros desafios para a consolidação de um bom sistema de saúde direcionado a esses pacientes e deixa a desejar quando o assunto é preparo para o atendimento.

De acordo com o relatório Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais do MS, por exemplo, o percentual de mulheres que realizam consultas ginecológicas anualmente cai de 76% para 47%, quando são consideradas somente as pacientes que têm relações sexuais com outras mulheres.

Além disso, exames importantes como o Papanicolau, que ajuda a prevenir o câncer de colo de útero, muitas vezes são deixados de lado no atendimento de pacientes lésbicas, com a justificativa de que porque nunca tiveram o hímen rompido por penetração, continuam “virgens”.

Foi o caso de Marina Menegon, que afirma sentir falta de um preparo prévio dos médicos para receber pessoas “não-héteros”. “Talvez tornaria a experiência mais fácil. Diversas vezes tive que educar o profissional, explicar que não é porque sou sexualmente ativa que preciso ter relações com homens”, afirma ela.

A jovem conta que já passou por situações em que ginecologistas se negaram a atendê-la por “não saberem muito sobre o assunto”, assim como já vivenciou experiências em que os próprios profissionais questionaram como funcionava o sexo e se era feito com brinquedos sexuais.

ORIENTAÇÕES PRECÁRIAS E FALTA DE CONHECIMENTO

A falta de conhecimento não acaba no momento da consulta. Uma das principais queixas dos pacientes LGBTQIA+ é a péssima orientação recebida com relação a proteção sexual. O Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo indicou que, em 2012, apenas 2% das lésbicas se preveniam contra as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

A jornalista Larissa Darc, bissexual e autora do livro “Vem Cá: vamos falar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais”, admite que não imaginava que isso fosse um problema tão grande antes de iniciar as pesquisas para escrever a obra.

Segundo ela, todas as pessoas entrevistadas para o projeto não tiveram somente um atendimento inadequado, mas também violento. “Tanto pelo lado de não ser atendido e ter que ficar buscando exames e descobrir que já estava com câncer de colo de útero, até mesmo no quesito de cuidado na realização de exames.”

Além disso, Larissa conversou com duas médicas que afirmaram não terem recebido o treinamento necessário para atender pessoas não heterossexuais ou cisgênero na faculdade de medicina.

A conclusão da escritora, então, é a de que precisamos ter políticas públicas mais fortes, de educação sexual, atendimento médico e investir na ciência. “Espero que logo possamos achar métodos de prevenção válidos para todos, pois isso de recortar camisinha e recortar plástico é uma gambiarra que não ajuda e não chega a lugar nenhum, e é só a ciência que vai poder, pelo menos, amenizar essas condições precárias”, diz.

O PROBLEMA NÃO É SÓ DAS LÉSBICAS

Matheus Carneiro, que já frequentou muitos médicos particulares para cuidar de sua saúde íntima, mas atualmente depende do SUS, conta que opta por evitar as consultas devido ao despreparo dos profissionais. “Mas quando eu vou, priorizo ser atendido por mulheres, porque geralmente os homens são mais brutos e frios”, afirma.

Já Laura (nome fictício), mulher trans que nunca foi ao médico tratar de sua saúde sexual, explica que a falta de informação é o que a impediu de avançar nos cuidados. Casos como o dela são extremamente comuns dentro da comunidade trans.

“Até mesmo meu endocrinologista, que atende muitas pessoas trans, me admitiu que não há tempo de estudos suficiente para receitar hormônios com segurança e para prever o que pode me acontecer a longo prazo. Desta forma, o tratamento é feito, mas não se sabe o que pode acontecer com meu corpo em muitos anos”.

IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO ABERTA

A ginecologista Marair Sartori, presidente da Comissão Nacional Especializada de Uroginecologia e Cirurgia Vaginal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) apontou que “o grande impacto na saúde ginecológica advém da falta de diálogo entre o profissional de saúde e a mulher”.

Ela diz que, devido ao desconforto e inibição, apenas metade das mulheres que fazem sexo com mulheres informa esse fato aos profissionais, o que resulta em um atendimento inicial errado dessa paciente.

Ao ser questionada sobre a falta de conhecimento médico para tais atendimentos, Marair comenta sobre a falsa crença de que essas pacientes estão menos propensas às ISTs.

Para ela, “há sempre a necessidade de orientar qualquer paciente quanto aos riscos de contaminação, métodos de prevenção, higienização e uso de preservativos para prevenir a transmissão”.

A TAL DA EDUCAÇÃO SEXUAL

A educação sexual não é assunto novo na pauta brasileira, mas a falta de conhecimento afeta âmbitos sociais muito maiores do que se possa imaginar. Em consequência do despreparo de muitos médicos, a comunidade LGBTQIA+ sofre com o desamparo em momentos de descobertas e necessidades, buscando respostas, muitas vezes, na internet.

“Como uma mulher lésbica eu sei que preciso manter minhas unhas curtas e limpas, sei que posso contrair doenças durante o sexo oral e que existem contraceptivos para sexo entre pessoas com vaginas. Sei também o que meu corpo aceita ou não, o que é confortável ou não, e o que é seguro ou não. Mas e se eu não tivesse esse conhecimento? E se minha única fonte de informação fosse os sites pornográficos?”, conta Marina Menegon em momento de desabafo.

Para a psicóloga Fabíola Kaminski Treuk já estamos vivendo em um mundo de mais aceitação, em que as perseguições e preconceitos acontecem em locais com educação sexual mais restrita, por pessoas que possuem um olhar mais fechado e institucionalizado.

No entanto, o ideal é que a sociedade pare de tratar a sexualidade como algo fixo, e a veja como mutável e fluída, ou seja, que apresenta diferentes padrões ao longo da vida.

Segundo ela, a educação sexual deve sim ser proporcionada aos indivíduos, mas o principal é estimular para que cada um seja capaz de desenvolver-se em todos os campos, só assim se percebendo na sociedade.

COMO DENUNCIAR UM PROFISSIONAL DA SAÚDE EM CASO DE CONDUTA INAPROPRIADA?

A denúncia pode ser feita pessoalmente, nas delegacias regionais, ou por email ao Conselho Regional de Medicina (CRM) da sua região. Em casos de denúncias por email, a vítima deve incluir as seguintes informações:

  • Relato dos fatos
  • Nome do médico e da instituição
  • Data e local do acontecimento

Para serem aceitas, essas informações devem ser redigidas e oficializadas com a assinatura da vítima.

Caso tenha dúvidas, o site do Conselho Federal de Medicina (CFM) oferece um formulário que pode ser preenchido e impresso, pronto para ser encaminhado aos conselhos regionais. Para conferir o formulário, acesse o site do CFM.

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