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A pandemia do novo coronavírus, além de tirar a vida de mais de 260 mil pessoas no Brasil, também contribuiu para o aumento no número de casos de violência doméstica contra a mulher. De acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH), divulgados em março deste ano, os canais de denúncia de violação de direitos humanos do governo federal receberam 105.821 denúncias de violência contra a mulher ao longo de 2020 – número que equivale a 290 casos por dia. Ainda segundo o MMDH, 72% do número total de casos eram referentes à violência doméstica.  

O cenário, que já é ruim, pode se tornar ainda pior para as mulheres surdas vítimas de violência doméstica. Elas não encontram, na maioria dos casos, a acessibilidade necessária para denunciar, pedir socorro ou batalhar por seus direitos.

Em entrevista ao Portal UOL, Laiza Rebouças, professora com formação em Letras e Direito no Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS) Wilson Lins, em Salvador, aponta que muitas mulheres surdas não conhecem o processo para fazer a denúncia: “A maioria não sabe ou não consegue tomar atitudes, como ligar para a polícia, fazer boletim de ocorrência ou registrar agressões físicas no IML (Instituto Médico Legal)”.

Laiza, que foi diagnosticada surda quando criança, dá apoio a essas mulheres compartilhando informações com elas por meio do canal de vídeos JusLibras (sigla que significa Justiça em Libras). Um dos conteúdos, por exemplo, incentiva as mulheres a participarem de uma campanha da Cruz Vermelha contra a violência doméstica.

Apesar de ter sido criado com o intuito de partilhar orientações jurídicas em Libras, o canal virou ponto de referência para mulheres surdas. Ainda em entrevista ao UOL, Laiza afirma: “Converso com as que me enviam emails ou mensagens por WhatsApp e tento orientar o melhor caminho para buscar seus direitos”.

Além do canal de Laiza, a conta Feminismo Surdo no Instagram também incentiva as mulheres surdas a buscarem seus direitos. Em âmbito geral, a TV Ines, WebTV voltada para a comunidade surda no Brasil, também serve como fonte de informação e difusão de direitos.

OS DIREITOS E A ACESSIBILIDADE

Criada em 2006, a Lei Maria da Penha foi a responsável por criminalizar a violência contra a mulher. Apesar disso, somente em junho de 2019, por meio da Lei nº 13.836/2019, se tornou obrigatório informar sobre a condição de deficiência da vítima nos boletins de ocorrência nos casos de violência doméstica. A pena do agressor pode ser agravada nos casos em que essa descrição é apresentada no B.O.

A legislação, em teoria, é essa. Mas qual a aplicação real dela na sociedade brasileira?

Segundo a presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB Paraná (CEVIGE), Helena de Souza Rocha, a Lei Maria da Penha é interessante e importante por conta do olhar geral que apresenta frente à violência doméstica contra a mulher, porém existem dificuldades em fazer com que ela seja de fato eficaz de maneira prática.

“Tem um abismo entre o que está previsto na lei e o que acontece na nossa realidade. O grande desafio é a gente fazer a ponte para que a legislação se transforme em direitos efetivos”, afirma.

As leis que dizem respeito especificamente às pessoas com deficiência também são bastante exploradas na teoria no Brasil e no mundo, de acordo com Helena. Na prática, o cenário muda: “eu dou aula de Direitos Humanos e sempre conto para os alunos que a primeira convenção internacional a ser aprovada foi a de pessoas com deficiência. Eu acho que nós temos plena garantia legal dos direitos, o problema é você fazer com que isso saia do papel e se transforme em políticas públicas eficazes”.

Além da dificuldade geral oriunda dos sistemas que circundam a legislação, a mulher surda ainda enfrenta dificuldades para conseguir realizar o primeiro passo da denúncia: o registro do boletim de ocorrência. A falta de intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras) em instituições públicas que recebem denúncias de casos de violência contra a mulher dificulta o processo.

Helena conta que ficou sabendo de dois casos de mulheres que tentaram realizar o boletim de ocorrência na delegacia, mas não conseguiram por conta da falta de acessibilidade. Em outro caso, a profissional estava acompanhando uma mulher surda na Delegacia da Mulher, há quatro anos, e a pessoa que estava fazendo o atendimento no balcão do local era deficiente visual. Ambas não conseguiram se comunicar. “E esses são apenas alguns casos dos quais eu tenho conhecimento”, salienta a advogada.

Por outro caminho de denúncia, através do canal 180, a acessibilidade se dá por meio do endereço de e-mail e do aplicativo móvel disponibilizados pela plataforma.

A contabilidade dessas denúncias, quando elas acontecem, também é complicada.  De acordo com a presidente do CEVIGE, há um problema quanto aos dados de recorte da violência doméstica no Brasil: o único recorte feito é o de raça, nesse cenário, e mesmo assim apresenta falhas.

CANAIS DE DENÚNCIA

Para realizar uma denúncia contra violência doméstica, a mulher surda pode comparecer às delegacias da mulher ou comuns, pode entrar em contato com o canal 180 por meio de aplicativo ou email, ou, ainda, registrar um B.O. online no site da Polícia Civil – este último método não está disponível em todos os estados brasileiros.

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Maria Clara Braga
Maria Clara Braga
3 anos atrás

Matéria importantíssima!
Parabéns pela matéria e por esse espaço que traz pautas humanas!