Até onde a conquista por liberdade é capaz de levar uma população? Em um sistema opressor, a abolição da escravidão parecia ser uma novo começo para as pessoas pretas no Brasil. Entretanto, o que veio após foi apenas mais do mesmo: desigualdade, preconceito e marginalização.
No dia 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, o que garantia a todos os escravos do país a tão sonhada liberdade. Em maio deste ano a data completou 135 anos, no mesmo mês também é celebrado o Dia do Trabalhador. Ambas as datas estão atreladas à população negra, já que ainda existe uma luta constante para que pretos e pardos tenham as mesmas oportunidades de estudo e trabalho que os brancos.

Infelizmente, mesmo após os 135 anos de abolição, o Brasil ainda conta com exploração, trabalho análogo a escravidão, os negros ainda lutam por uma sociedade mais justa e pelo protagonismo de sua história. A luta pela liberdade, pelo trabalho digno e pela vida é permanente.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, até o mês de março de 2023, foram resgatadas 523 pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão. O número é alto, mas não é o único dado assustador. Em 2019, a agência de notícias Repórter Brasil constatou que 82% das pessoas retiradas do trabalho escravo no Brasil são negras. Ou seja, a abolição ainda pode ser contestada, afinal, todo o processo se deu de forma simplista e ignorou as reivindicações por melhorias de vida para a população negra.
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OS IMPACTOS DE UMA HISTÓRIA EMBRANQUECIDA
Por muitos anos, a história da abolição da escravidão foi contata por um ótica que explorava a bondade da Princesa Isabel, já que o seu ato nobre tinha salvado a vida dos negros escravizados. Hoje em dia, essa narrativa está se desfazendo pois já se sabe que a princesa apenas assinou a Lei Áurea pela pressão dos aliados e também para conter a opinião popular. Além disso, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, um processo se deu por conta de um forte movimento que uniu várias camadas sociais.
Para a pesquisadora, escritora e doutora em História Social, Ynaê Lopes dos Santos, a história da abolição é um marco para os movimentos sociais no país. “O principal impacto da forma com que a abolição no Brasil é contada é a diminuição do que realmente foi a abolição. Foi o primeiro grande movimento social brasileiro, um movimento que teve a participação de diversos setores da sociedade, sobretudo o que chamamos de povo”, explica ela.
Entender a abolição como algo uniforme, completa a pesquisadora, ajuda no embranquecimento da história.
“Quando a história é contada a partir, e exclusivamente, das experiências de uma intelectualidade branca, que claro fez parte desse movimento abolicionista e teve uma importância muito grande, a gente esvazia o que foi esse movimento, a sua complexidade e esvazia que houve vários projetos de abolição durante, pelo menos, os 20 anos anteriores. Então, a gente torna essa história muito mais rasa e, sobretudo, branca.”

Além de reconhecer a luta do povo, é preciso enaltecer alguns nomes como Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, que foram de extrema importância para o movimento abolicionista. Luiz Gama, por exemplo, foi escravo até os 17 anos de idade, quando fugiu e comprovou a sua liberdade. Anos depois começou a estudar como autodidata, tornando-se jornalista e advogado, e por meio da sua profissão exerceu sua luta contra a escravidão.
José do Patrocínio fez parte do Clube Republicano e, em 1875, ficou conhecido por comandar, com Dermeval da Fonseca, o jornal satírico Os Ferrões. Era nesse espaço que ele podia expor suas opiniões sempre contrárias à escravidão.
André Rebouças, finalmente, tinha uma preocupação séria com a vida dos negros após a abolição; queria planejar a inserção dos negros no mercado trabalho de forma digna. Infelizmente, o planejamento não ocorreu, pois nem todos os abolicionistas se preocupavam com o bem-estar da população negra. Como consequência disso, a escravidão acabou, mas o regime de opressão apenas se adaptou aos novos tempos.
De acordo com Ynaê, “no primeiro momento, a abolição foi muito marcada por uma elite branca, que não necessariamente tinha uma percepção igualitária da condição entre negros e brancos, muito pelo contrario. Esse é um erro que muitas vezes cometemos: achamos que ser abolicionista é sinônimo de ser a favor ou defensor da igualdade racial”, explica ela.
Os três homens negros citados previamente fizeram parte da abolição, mas seus nomes foram sendo esquecidos ao longo do tempo. O que perpetuou foi a história de um movimento branco, que visava os interesses dos mesmos, como relata a pesquisadora.
“A história branca da abolição tem muito a ver com essa escolha que foi feita em transformar o Brasil em um país branco. Uma escolha que também está muito vinculada ao movimento político fundamental que é a proclamação da república. Então, os primeiros 40 anos da experiência republicana, que é chamada de república velha, tiveram como principal política pública embranquecer a população negra, e contar a história da abolição de um ponto de vista branco reforça a ideia de uma incapacidade negra.”
Refletindo para além do que diz Ynaê, a historiadora Monica Faria conecta esse apagamento histórico com o presente:
“A forma como a história da abolição é contada no Brasil é um apagamento brutal em todos os aspectos, no qual as narrativas oficiais focam apenas nos aspectos formais da abolição, sem abordar adequadamente as lutas promovidas pelos escravizados como o Males, Cabanagem, Búzios, Palmares entre tantos outros. Após o suposto fim do trabalho compulsório, as condições precárias enfrentadas pelos negros libertos em nada mudaram“, explica ela.

“Além disso, há uma falta de reconhecimento das contribuições históricas dos afro-brasileiros para a formação do país. Isso resulta em uma falta de compreensão geral da extensão dos danos causados pelo sequestro e escravização de africanos e como esses danos afetam seus descendentes ainda em tempos atuais”, completa Monica.
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A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO PROMETEU UMA LIBERDADE QUE NUNCA CHEGOU
A escravidão no Brasil durou mais de 300 anos, o que foi suficiente para criar uma economia baseada na exploração do trabalho. Após a abolição da escravidão, a burguesia não queria remunerar o serviço de pessoas pretas, afinal, a crença de que essa era uma raça inferior se fazia muito presente. O que sobrou para a população preta do país foram os subempregos e moradias precárias, como os cortiços e favelas.
A liberdade concedida pela Lei Áurea se alinhou a um novo tipo de exploração. Os negros eram escravos em empregos precários, sem horário de saída, sem direitos. Para essa parte da sociedade sobrou apenas moradias instáveis, com risco de deslizamentos de terras, operações de reintegrações de posse e violência.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, pretos e pardos eram a maioria entre trabalhadores desocupados, totalizando 64,2%, e na informalidade, 47,3%. Quatro anos depois, em 2022, o IBGE constatou que a taxa de desocupação segue maior entre a população negra, somando 21,4%.
Esses dados reforçam que, mesmo livres, os negros enfrentam dificuldades para encontrar empregos, o que também acontece pela falta de oportunidades de estudo. Até mesmo o direito de ir e vir lhes pode ser negado, afinal, o racismo ainda se faz presente e, com ele, além do preconceito, existem mecanismos como o genocídio da juventude negra sendo colocados em prática.
A chamada Guerra às Drogas é um ótimo exemplo de política pública que contribui para a morte de pessoas negras, especialmente os jovens. Segundo o estudo da Rede de Observatórios da Segurança, intitulado “Pele alvo: a cor da violência policial”, divulgado em 2021, a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta em ações policiais em pelo menos seis estados brasileiros.
Para Carolina Maíra Morais, mestre em história da África e CEO da empresa The African Pride, as desigualdades que a população negra sofre nos dias atuais ainda são um reflexo tanto da abolição, como do período que a sucedeu.

“A gente precisa entender que a abolição da escravidão não foi acompanhada de um processo de inclusão daquelas pessoas escravizadas como cidadãs de direito no Brasil. Então, ao mesmo tempo que a gente teve uma abolição, não tivemos nenhuma política pública que incluísse essas pessoas, limitando o acesso à moradia, ao trabalho e educação. Os reflexos da escravidão estão gritando nas desigualdades sociais.”
Assim como Carolina, a historiadora Monica Faria também consegue resgatar esse paralelo entre a escravidão e a desigualdade social. Ela diz que “a escravidão deixou um legado de exclusão e marginalização da população negra, resultando em um acesso limitado a oportunidades e recursos. Essas condições propiciam a exploração e perpetuam um ciclo de trabalho precário e vulnerabilidade. Ainda existe uma desvalorização do trabalho e da vida das pessoas negras, o que contribui para a continuidade de práticas de exploração e abuso.”
O RACISMO DE CADA DIA
A abolição da escravidão não ressarciu os negros pelo sofrimento que passaram, apenas continuou o ciclo. A pesquisadora Ynaê Lopes dos Santos aborda essa questão em sua tese de doutorado e define que não é possível falar de Brasil sem falar do racismo.
“A minha tese é que não existe história do Brasil sem racismo. O racismo é um sistema de poder que é construído ao longo do século 16 e vai sendo modificado com o tempo. A sociedade brasileira colonial nasce neste momento da organização inicial do racismo. Se a gente revisitar todos os momentos mais agudos da história política brasileira, é possível entender uma ligação com o racismo. Apesar das transformações, você tem essa manutenção do racismo, a escolha pelo racismo é a maior permanência da história do Brasil”, afirma.

É impossível negar que o racismo está presente em todos os momentos, mas a pergunta que fica é sobre como se pode combatê-lo? A historiadora Monica Faria acredita que a educação e o resgate cultural são formas de criar uma sociedade com maior letramento racial.
“A educação desempenha um papel fundamental no resgate da cultura afro-brasileira e no combate aos efeitos da escravidão. A formação adequada de professores, a promoção de espaços de diálogo e a conscientização sobre o racismo estrutural são importantes para criar um ambiente educacional inclusivo e não discriminatório.”
Entretanto, além de fortalecer a identidade da população negra, é necessário nomear o racismo e responsabilizar os culpados. O sistema é racista, e ser antirracista vai muito além de apenas reconhecer privilégios. Ainda hoje, os crimes raciais acontecem e muitos seguem impunes, o que dificulta a criação de uma sociedade justa.