A partir dos 15 anos, um jovem preto no Brasil tem quase três vezes mais chance de ser assassinado do que um jovem branco. Esse dado foi publicado em um estudo do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e além de alarmante, mostra como o Estado falhou em proteger a infância e a juventude da população negra.
Em um país altamente miscigenado como o nosso, onde 56,1% da população se declara preta ou parda, o racismo estrutural funciona como um sistema de opressão à mais da metade dos brasileiros. Para além do acesso à educação, moradia e lazer, as crianças e adolescentes têm o direito de viver pacificamente. Entretanto, é difícil balancear uma criação pacífica entre o racismo, a letalidade policial e a violência.
A luta começa desde cedo: muitos pais buscam encontrar a criação ideal para preparar seus filhos sem que eles percam a inocência. Esse é o caso de Monique Isis, mãe de duas meninas negras, uma de 14 e outra de quase 4 anos.
“Eu só quero transmitir para minhas filhas o amor pela raça negra e não desistir de lutar, pois sabemos que é uma luta. Nós exigimos sermos respeitados e eles vão ter que nos aceitar. A nossa vida não se baseia apenas na tragédia, nós temos muitos momentos para comemorar. Costumo dizer que somos formados com uma base de muita alegria e riqueza cultural“, afirma ela.
Monique tenta construir a educação das filhas com base no respeito e identificação através de histórias, personagens e brinquedos representativos. Porém, mais do que isso, ela sabe que sua própria existência funciona como espelho para as meninas.
“Quando a minha filha mais velha tinha em torno de 5 anos de idade, eu passei por uma experiência que me fez refletir. Eu mantinha o meu cabelo alisado, e ela achava que ele era assim naturalmente e me questionava muito sobre o porquê do dela ser cacheado e o meu não. Por isso, ela começou a me pedir para alisar o cabelo dela, assim nós duas íamos ficar mais parecidas. Foi quando eu tive um estalo: pensei que precisava fazer algo para que a minha filha se achasse bonita, o cabelo dela é lindo. Ela precisa se amar e se enxergar como uma menina negra linda, então, eu parei de alisar o cabelo. Eu sempre me vi muito bem resolvida como uma mulher negra, mas nunca tinha pensado nessa questão. ”

Mesmo com esse cuidado e sensibilidade de mãe, ninguém é capaz de se tornar um escudo entre o racismo e as crianças negras no Brasil.
“Nasce uma criança negra e infelizmente a convivência é feita em um mundo racista. A Miriã, de 14 anos, começou a sentir o racismo, os olhares, por volta dos dez anos. Um exemplo grave foi em uma viagem que fizemos para um resort em Atibaia no ano de 2020. Ela estava muito empolgada, sempre fazemos essas viagens em família e é divertido, chegando lá, minha filha começou a perceber alguns comportamentos, ela cumprimentava as senhoras e recebia olhares de repulsa. Foi a primeira vez que ela me contou que já sabia do que se tratava de racismo“, conta Monique.
O relato acima exemplifica como as raízes do racismo estão fixadas na nossa sociedade, os olhares incriminadores já dizem tudo, mesmo sem palavras ofensivas. O que resta é acolher, mas será que isso basta? Por quantas situações como esta as crianças negras terão que ser submetidas, até que se entenda o valor da negritude?
A NEGRITUDE COMO FORMA DE PROTEÇÃO
A pergunta “será que sou negro?” permeia a mente de muitos adolescentes no Brasil. Isso pode causar espanto diante de uma população tão miscigenada, porém, a prórpia miscigenação foi criada como política de embranquecimento, e deixou marcas sérias como o não reconhecimento da própria raça por medo de pertencimento a uma classe inferior.
Esse medo é exemplificado na pesquisa de pós-graduação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, realizada por Luana Lima Bittencourt da Silva. O estudo de 2018 intitulado “A educação das relações étnico-raciais em uma escola do campo” discorre sobre alguns cenários nos quais o não reconhecimento racial atravessou a pesquisadora.
“Encontrei alunos que me relataram casos de racismo; alunos que diziam: ‘- Você não é negra professora, é moreninha! Mas negra não é não!’, quando eu afirmava tal pertença e identidade e; alunos que não gostavam de se identificar como negros. E isso me incomodava e me entristecia. Por que não querer ser negro? Por que não querer deixar o outro que eu gosto ser negro? Ser negro, na sociedade atual, ainda lhes parecia algo ruim. Pensei, então, sobre o fato de a educação não estar contribuído para a quebra de tais paradigmas”, escreveu a autora.
É de vital importância pontuar que a falta de letramento racial impulsiona o apagamento histórico, deixando as pessoas negras isoladas da comunidade. Por isso, reconhecer a negritude é uma maneira de entender os mecanismos do sistema e poder lutar contra eles.
Ione Jovino é uma professora negra pós-graduada em educação, docente do Departamento de Estudos da Linguagem da UEPG e pró-Reitora de Assuntos Estudantis. No seu dia a dia, ela se depara com a falta de letramento racial dentro do ambiente escolar e entende como isso afeta a juventude negra.
“Não falta informação, falta falar sobre isso. A questão de não saber sobre si, de não saber sobre sua história, sobre quem é de verdade, afeta na construção da própria autoestima. Não era para as pessoas chegarem aos 17, 18, ou 20 anos não sabendo dizer se são pretas ou pardas. As pessoas brancas sabem que são brancas, porém, elas não são racializadas o tempo todo, nós que somos e nós que crescemos com dúvidas”, afirma a professora.

O primeiro contato que a criança tem com certos conhecimentos acontece dentro de casa e depois na escola, e, por isso, esses ambientes precisam estar mais alinhados para abordar temas complexos como o letramento racial. Para Monique Isis, é preciso pensar em uma outra forma de ensinar a crianças como um todo.
“Acredito que muitas delas são ensinadas de forma errada em relação a sua raça e os brancos também precisam aprender a educar os seus filhos em relação à população negra“, diz.
Ao escolher não falar sobre a negritude, o sistema em que vivemos fomenta o não reconhecimento das pessoas negras como negras e, além disso, incentiva as pessoas brancas a reproduzirem o racismo de forma inconsequente ou a acreditarem que o racismo é apenas uma opinião. Todas essas vertentes são perigosas para a infância e juventude negra no Brasil.
Por isso, é importante ouvir como Miriã, de apenas 14 anos entende isso, e verbaliza, de forma direta. “Eu sei que sou negra, é muito importante ter essa consciência para poder ter respeito.”
O seu pensamento é fruto de uma educação consciente por parte da mãe:
“Sempre procurei educar minhas filhas de uma maneira em que o ser negra não fosse um peso. Eu procuro mostrar para as duas que é lindo, que nós temos uma história que já foi construída e ainda está sendo. Com algumas conquistas, estamos conseguindo alcançar objetivos e chegar em certos lugares.”
Essa abordagem de trazer a negritude como algo belo mostra o valor de pertencer a uma comunidade. “Na minha infância e adolescência participei de concurso de beleza e gostava bastante, mas adorava quando eram concursos somente para afro-brasileiros, me sentia em casa perto de tantas meninas negras”, continua Monique.
O PAPEL DA ESCOLA
Infelizmente, o ensino sobre as relações raciais ainda é muito raso, mesmo sendo previsto pela legislação brasileira. De acordo com a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, história e cultura afro-brasileiras devem fazer parte do currículo oficial da Rede de Ensino no país, ou seja, são temas obrigatórios. Entretanto, não é o que se percebe na prática: muitos alunos passam a vida escolar inteira sem ter acesso a esses conteúdos, ou pior, a escola pode acreditar que a função de dialogar a questão racial seja apenas do professor negro.
Para a docente Ione Jovino, a capacitação dos professores não aborda a temática racial da forma que deveria “Tenho quase 30 anos de docência e o que tive na minha formação de professores sobre questões raciais foi porque eu busquei. Ainda hoje temos muitas pessoas saindo das universidades sem saber nada sobre as relações raciais”.
Além disso, ela explica que o pensamento de que somente o docente negro deve abordar questões raciais dentro da sala de aula é algo que pode sobrecarrega-lo.
“A Lei não fala que só os professores negros devem abordar as relações raciais, falta discutir mais sobre como fazer isso, precisa de mais metodologia. É um compromisso que deve ser assumido como tarefa educativa, como a ética do seu trabalho. Por exemplo, não dá mais para uma docente dizer que não vê a cor do seu aluno. Se você não vê cor, também não vê desigualdade, não vê o tratamento inferiorizado que o aluno negro e indígena pode estar tendo na sua sala de aula, ou na escola como um todo,” afirma.
Monique Isis confirma essa visão pois sempre escuta a sua filha reclamando de como a escola não sabe lidar com os casos de racismo. Segundo Miriã, apenas uma professora consegue abordar a questão racial.
“O trabalho nas escolas deveria ser muito mais representativo, pois a escola é o principal local onde a criança é alvo de racismo. Minha filha sempre está reclamando do tratamento que é dado aos colegas que sofreram racismo, ou até com ela mesma, a situação chega até a direção, mas é colocado panos quentes”, conta a mãe.
De acordo com a professora Jovino, o que falta para mudar essa realidade dentro do ambiente escolar é realmente se importar. “O letramento é permanente, é algo que precisamos aprender e ensinar, mas você precisa se importar. É uma tarefa sua como docente, como pessoa que convive com crianças e adolescentes”, explica.
O QUE É SER NEGRO?
Monique Isis faz questão de falar sobre a negritude em sua família de forma plural para romper o padrão social de colocar a população negra inteira na mesma gaveta, como se não tivessem experiências diversas.
“A minha mãe é uma mulher negra retinta e meu pai é negro, mas com a pele clara. Na infância a questão racial era muito imposta até porque minha mãe sofreu muito por conta da cor mais escura e por ser de outra época. Eu não aceitava isso, não queria ser negra, na minha cabeça isso era algo ruim. Depois, eu fui entender que eu queria que a gente entendesse a nossa raça. Vi muito o meu irmão sofrendo racismo, coisas bem pesadas. Eu me lembro de uma situação especial. Aos 10 anos, eu fazia algumas fotos como modelo e meus pais foram aconselhados levar o meu book a uma agência, nessa agência eu fui recusada porque eles não trabalham com crianças com o meu ‘perfil’”, relembra.
Nessa variedade de tons e traços, o racismo é sempre um ponto em comum, mesmo quando não deveria ser. Afinal, nenhuma pessoa merece conhecer a própria raça através da dor e do preconceito. As crianças e adolescentes negras estão em uma fase de descobrir e enaltecer a própria beleza, nem sempre é uma tarefa fácil, como afirma Miriã.
“O que me afeta um pouco é o pensamento de que algumas meninas são mais bonitas do que eu por serem brancas, mas estou trabalhando nisso.“
Para além das definições de cores e fenótipos, ser negro e criar uma criança negra no Brasil é sinônimo de resistência. É lutar para não deixar que a inocência seja esvaziada e buscar por políticas públicas eficazes. Nesse cenário, proteger a infância e juventude da população negra é uma tarefa de todos, afinal o coletivo pode fazer a diferença.

POR UMA INFÂNCIA SEM RACISMO
Em 2010 a UNICEF lançou a campanha “Por uma infância sem racismo”. O projeto conta com uma série de medidas que podem ser seguidas, a fim de proteger a infância e juventude da população negra. A campanha foi reativada em 2020, pois, infelizmente, o objetivo de erradicar o racismo infantil está longe de ser alcançado.
Porém, os pequenos passos que estão sendo dados precisam de reconhecimento. Uma criação que exalta a cultura negra e a sabedoria dos jovens em buscar entender os mecanismos racistas que regem a sociedade é um deles. Agora, falta que o sistema educativo no Brasil coloque o letramento racial e o antirracismo no centro para que mudança vá chegando e se fazendo mais presente.