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O termo pandemia, enfermidade epidêmica amplamente disseminada, infelizmente, tornou-se familiar ao vocabulário diário da população mundial. Desde o dia 11 de março do ano passado, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia no novo coronavírus, muito aconteceu e não é à toa que tememos a mera suposição de que alguma doença atinja proporções similares às da que estamos combatendo agora.

Se a terminologia caótica se faz presente em nossas rotinas atualmente, antes do fatídico 11 de março, ela era mero vocábulo de dicionário, pouco usual (e até mesmo desconhecido) para a maioria das pessoas. No entanto, em janeiro de 2019, o famoso jornal inglês The Lancet já havia lançado um relatório denunciando três pandemias históricas e coexistentes. Nenhuma delas, até hoje, foi solucionada.

Obesidade, desnutrição e mudanças climáticas compõem, juntas, o que o The Lancet chamou de Sindemia Global. O termo, cunhado em 1990 pelo médico e antropólogo americano Merrill Singer, combina as palavras “sinergia” e “pandemia” e é usado para explicar situações nas quais uma doença não atua sozinha, causando danos ainda mais severos à população.

As principais causas dessa sindemia passam por interesses comerciais que orientam os modelos hegemônicos dos sistemas de alimentação, agropecuária, transporte, desenho urbano e uso do solo. A solução destes problemas, portanto, implica no repensar destes sistemas e, por mais difícil que essa tarefa pareça ser, ela se torna essencial em uma realidade na qual a pandemia Covid-19 não é a única, e, ainda por cima, é fortalecida pelas demais que a cercam.

ALGUNS DADOS PARA SITUAR-SE

OBESIDADE

Um relatório de 2019 da OMS indicou que 2,3 bilhões de pessoas no mundo estão com sobrepeso ou obesidade – considerando a atual população mundial, esse dado equivale a mais de 30% das pessoas. No Brasil, uma pesquisa do SUS junto ao Ministério da Saúde, registrou que, em dez anos, a obesidade cresceu 60% no país, sendo que em 2016 (último ano da pesquisa), 18,9% da população se enquadrava nessa condição de saúde.

Entre as crianças brasileiras, a realidade permanece preocupante. Dados da SISVAN de 2018 mostram que três a cada 10 crianças, entre cinco e nove anos, atendidas no SUS, estão acima do peso. No total, são 2,4 milhões delas com sobrepeso; 1,2 milhão com obesidade; e 755 mil com obesidade grave.

DESNUTRIÇÃO

De acordo com a última edição do relatório do SOFI, publicado no ano passado pela Organização para Alimentação e Agricultura da ONU, uma em cada dez pessoas no mundo – equivalente a 750 milhões – foi exposta a níveis graves de insegurança alimentar; dois bilhões foram expostas à insegurança alimentar moderada, que é quando as pessoas são forçadas a reduzir a quantidade ou a qualidade dos alimentos; e 690 milhões de pessoas (8,9% da população mundial) foram afetadas pela fome. Este último dado revela um crescimento de 10 milhões em apenas um ano.

O mesmo relatório apontou que, dentro da realidade brasileira, de 2016 para 2019, a quantidade de pessoas que ingeriram menos calorias do que o necessário passou de 37,5 milhões para 43,1 milhões.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Jutos, efeito estufa e aquecimento global são protagonistas do tópico das mudanças climáticas no mundo. O primeiro trata-se do agravamento não natural da camada de gases que cobre a superfície da Terra. Essa camada, naturalmente contém gás carbônico (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O) e vapor de água, que, juntos, mantém a vida no planeta.

Normalmente parte da radiação solar que chega à Terra é refletida e retorna diretamente para o espaço, outra parte é absorvida; mas, como muitas atividades humanas emitem uma grande quantidade de gases formadores do efeito estufa (GEEs), esta camada tem ficado cada vez mais espessa, retendo mais calor na Terra, aumentando a temperatura da atmosfera terrestre e dos oceanos e ocasionando o aquecimento global.

Este, por sua vez, que consiste no aumento da temperatura média dos oceanos e da camada de ar próxima à superfície da Terra, já sofreu uma alteração estimada de 1°C, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2019. Dados do mesmo painel estimam que, caso o ritmo de crescimento se mantenha, o aquecimento global deve atingir 1,5°C entre 2030 e 2052 – temperatura que causará exterminação de diversas espécies e ecossistemas.

SISTEMAS HEGEMÔNICOS X SINDEMIA GLOBAL

SISTEMAS AGROPECUÁRIO E DE USO DO SOLO

Modelo de produção industrial não foi pensado para produzir alimentos, e sim, dinheiro. Foto: Tom Fisk/Pexels.

Quando se fala em Sistema de Alimentação e Agropecuária (SAA), é importante lembrar que, em termos de produção, distribuição, tecnologia e aspectos culturais, trata-se de um sistema de enorme diversidade interna. No entanto, como explica o doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento e professor da UFPR, José Milton Andriguetto Filho, pode-se dizer que esse sistema é dominado pelo modo de produção industrial, intensivo em tecnologia e inserido nos mercados globais, com cadeias de produção globais.

Pensando nisso, o professor afirma que “todo este sistema é bastante intensivo em energia, tanto em combustíveis quanto em eletricidade”. De acordo com ele, o SAA se configura como um dos grandes setores a contribuir para as emissões de gases do efeito estufa e, portanto, para as mudanças climáticas.

“O SAA contribui para a emissão de metano, principalmente na criação de ruminantes e no cultivo de arroz; para a degradação dos solos, com a consequente eliminação para a atmosfera do carbono neles estocado; e para o desmatamento. Por exemplo, pelo menos 60% do desmatamento na Amazônia ocorre hoje por causa da pecuária e cerca de 85% das pastagens do Brasil apresentam algum grau de degradação e perda de solos”, afirma Andriguetto.

Além de causador da pandemia ambiental, o professor também explica que o SAA corrobora para com o fortalecimento das demais pandemias elencadas pelo The Lancet. “Obesidade e desnutrição precisam ser discutidas juntas pois, apesar de parecerem problemas opostos, resultam da forma como o SAA evoluiu e se estruturou na prática desde o advento da revolução industrial e da modernidade”, diz.

Um dos resultados dessa evolução, conta Andriguetto, é que desenvolvemos um sistema altamente produtivo e eficaz, que foi capaz de fazer frente ao enorme crescimento da população humana nos últimos 200 anos, mas que não foi pensado sob a lógica de produzir alimentos, e sim de produzir dinheiro e atender a demandas de mercado.

“O problema é de má distribuição e não de insuficiente produção ou disponibilidade, ou seja, está no sistema econômico mais amplo”, explica o pesquisador, “e, para piorar, os processos de urbanização e concentração fundiária que nosso modelo de sociedade produziu, acrescidos de suas perversões, como a grilagem de terras, impedem que os mais pobres hoje possam produzir seu próprio alimento. Mas, para quem pode pagar, temos um sistema com grande capacidade de disponibilizar em abundância alimentos de alto teor calórico. E aí se entende a expansão da obesidade”, finaliza.

SISTEMAS ALIMENTARES

O Guia Alimentar para a População Brasileira indica que a maior parte da nossa alimentação diária deve ser composta por alimentos in natura ou minimamente processados. Foto: Engin Akyurt/Pixabay.

“A gente entra em um supermercado hoje e achamos que temos muitas escolhas, mas não é bem assim.” É o que diz Paula Johns, diretora geral da ACT, rede de promoção à saúde, ao ser questionada sobre como o atual sistema alimentar hegemônico contribui para a existência das três pandemia citadas pelo The Lancet.

Segundo ela, tanto a parte de produção quanto a do consumo de alimentos estão concentradas nas mãos de algumas poucas empresas, que estão incrustradas no imaginário social apesar de não contribuírem nutricionalmente para a população e destruírem a biodiversidade. “A Coca-cola é um ótimo exemplo. Enquanto isso, o setor que produz alimentos de maior qualidade, que é o dos agricultores, é o menos valorizado”, diz a diretora.

Paula também explica que o comportamento individual que temos com relação à alimentação é reflexo de como o poder público e econômico lida com isso. “A concentração de poder, que esbarra na questão da alimentação, dá muito pouco espaço para formas alternativas e agroecológicas de produção; e a visão do atual sistema de alimentação é de curto prazo, colocando a população à serviço da economia”, afirma.

SISTEMAS DE TRANSPORTE E DESENHO URBANO

Segregação espacial resulta na degradação do meio ambiente e do próprio ser humano. Foto: ArtTower/Pixabay.

Dentro das cidades, a supremacia das questões econômicas também gera dificuldade em atingir metas que reforcem a cidadania e a inclusão social, o que contribui para a prevalência das pandemias mencionadas. Para Cibele Figueira, arquiteta e coordenadora do MBA em Gestão de Projetos e Sustentabilidade Ambiental da PUCRS, a infraestrutura das cidades está muito relacionada às doenças e aos problemas ambientais.

“Muitas cidades são conduzidas com base em um modelo de ‘limpeza’ muito antigo, que visa a eliminação do que torna a cidade feia. Isso estimula o movimento de periferização, que posiciona as pessoas com menos condições econômicas à margem dos centros urbanos”, explica Cibele.

Esse movimento, então, estimula a ocupação irregular de áreas que, em teoria, deveriam ser de proteção ambiental. Segundo a coordenadora, a população marginalizada se estabelece, normalmente, próxima a córregos, rios e matas, acarretando problemas de poluição e desabamentos, por exemplo.

Além disso, Cibele problematiza a questão da mobilidade urbana, também dificultada por esse processo de marginalização. “As pessoas que vivem nas periferias trabalham e consomem nos centros urbanos o que gera um desgaste ambiental por conta da locomoção, sem falar do desgaste dos próprios seres humanos que, pela falta de acesso adequado a tudo, têm menos oportunidades de se desenvolverem nos âmbitos financeiros, educacionais e sanitários”, diz ela.

“A questão alimentar”, completa a professora, “esbarra nesses âmbitos, pois, além da falta de acesso a alimentos de qualidade, na periferia não existe o fomento dos movimentos sobre educação alimentar, como estamos vendo em alta nas cidades”.

ALTERNATIVAS

Apesar de alarmantes, esses sistemas possuem alternativas mais sustentáveis, como explicam os especialistas. Todas elas, contudo, dependem de uma mobilização política e empresarial, que deve ser exigida pela população.

O próprio sistema agropecuário, que parece não ter mais volta, tem solução. Andriguetto diz, por exemplo, que as pastagens poderiam funcionar por sistemas de sequestro (absorção) de carbono da atmosfera, se bem manejadas. “Tecnologicamente, não é difícil. Da mesma forma, se depender de tecnologia, seria muito fácil dobrar ou triplicar a produção agropecuária na Amazônia sem desmatar”, explica ele.

Com relação ao sistema alimentar, algumas mudanças eficazes já estão sendo colocadas em prática. O Guia de Alimentação para a População Brasileira, por exemplo, é apontado por Paula como documento norteador do que políticas públicas deveriam focar. “Nosso guia está sendo referência para outros países; ele é tão importante que vem sendo alvo de ataques das grandes empresas”, afirma.

A nível coletivo popular, a diretora fala sobre o desenvolvimento de um pensamento mais crítico voltado à alimentação. De acordo com ela, “quem têm acesso a essa educação e pode, tem, sim, procurado mais alimentos in natura e orgânicos. Lógico, é o tipo de coisa que tem se desenvolvido mais a nível municipal, mas já é uma evolução”.

Finalmente, pensando as questões do desenho urbano e mobilidade, Cibele sugere a revitalização de áreas ociosas dos centros. “É curioso que, ao mesmo tempo que estimulamos a marginalização das populações mais pobres, os centros foram perdendo o valor econômico, pois as famílias mais abastadas se mudaram para bairros mais ‘chiques’”, reflete a coordenadora, “a solução, como já começou a ser aplicada em algumas cidades, seria colocar em atividade o papel social da habitação, transformando espaços ociosos em habitáveis”, completa.

CONTEXTO COVID-19

Enquanto várias dessas alternativas ainda fazem parte do mundo das ideias, é importante refletir sobre como as pandemias apontadas pelo The Lancet interagem negativamente com o contexto assolado por outra calamidade – sem, é claro, deixarmos de nos posicionar para que as soluções ultrapassem as fronteiras da realidade.

Uma pesquisa desenvolvida no ano passado no departamento de pós-graduação em Alimentos e Nutrição da UNESP avaliou que a má nutrição, que inclui a desnutrição e a obesidade, pode refletir em desfechos mais graves na fisiopatologia da infecção e das respostas sistêmicas causadas pela Covid-19. A própria OMS classificou indivíduos mal nutridos como mais vulneráveis ao vírus.

Fazendo o caminho inverso, a pandemia do novo coronavírus também foi agravante de ambas condições clínicas. No ano passado, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estimou que 7 milhões de crianças no mundo seriam adicionadas ao quadro de desnutrição. Ao mesmo tempo, autoridades da saúde passaram a temer o aumento da obesidade por conta do isolamento social; a OMS, inclusive, criou uma campanha com a hashtag #HealthyAtHome (#SaudávelEmCasa, em português) para estimular a prática de exercícios físicos, mesmo com as limitações.

Além disso, algumas teorias indicam que a própria Covid-19 seria fruto da relação distópica do ser humano com o meio ambiente, por conta dos sistemas autoritários sob os quais nos estabilizamos.

Tudo isso leva a uma importante conclusão: após mais de um ano lidando com a perversidade do novo coronavírus, não há dúvidas de que todos os esforços devem ser tomados para o combate desta terrível pandemia. Mas é certo que há anos temos negligenciado o cuidado relacionado a demais problemas gravíssimos e que, a longo prazo e de forma mais dispersa, matam incrivelmente mais. Até quando continuará essa naturalização?

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