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Em um encontro com Virginia Kastrup me deparei com esta fala que reverberou como uma epifania: “a realidade transborda a forma”.

A forma, como nos ensina Aby Warburg e tantos outros, é uma constelação, um instante de formalização (aquisição de formato) de tensões e de dinâmicas, como incorporações temporárias ou materializações de campos moventes. A forma, assim, é e se dá a várias possibilidades de ser, é polissêmica e dada a diversas chaves de entrada: às interpretações, aos simbólicos, aos sensíveis.

Ver a função na forma é pouco. Ver apenas a aparência também. Há de se escavar a superfície e as funcionalidades para acessar os movimentos das águas profundas.

Chegar na forma com uma leitura prévia do que ela seria, é tentar confinar a realidade, é reduzir ao que entra no molde, é constranger a riqueza da experiência co(m)formadora, é desconsiderar que a realidade é um processo de invenção de si e do mundo, como também ensina Kastrup.

Devemos chegar na forma dispostos ao “entre”, presentes e porosos. Tudo nesta relação é “digno de nota”, pois é índice ao mesmo tempo dos campos de tensão como anúncio de derivas e errâncias nascentes. Frente às constelações, precisamos exercitar ler as sutilezas, encontrar dentro de nós as afetações, como pistas às co-construções que acontecem, sempre num jogo daqueles que estão (humanos e/ou não humanos).

Neste sentido, a escola é um campo de tensões que, no cotidiano, ganha formas. Olhar as formas da escola, suas narrativas, dinâmicas, presenças, ausências, ditos e interditos, é oportunidade de vislumbrar campos de tensão.

No ano de 2020, efetivei uma pesquisa junto a cerca de 100 educadores(as) da rede pública e de escolas privadas da cidade de São Paulo sobre a relação entre educação, democracia e diversidade. Deste encontro se evidenciaram algumas formas.

A grande maioria disse “se interessar muito” ou “se interessar” pela questão da democracia e da diversidade. No entanto, cerca de um terço não reconhecia a presença destas questões dentro dos Planos Políticos Pedagógicos (PPPs) das suas unidades escolares. Por que estas questões estariam ausentes destes documentos que declaram as intencionalidades? O que faria com que estes documentos não revelassem as valorizações coletivas presentes no grupo de educadores?

Em relação à diversidade étnico racial, na escola pública se refere à presença de “muita diversidade” tanto no corpo discente quanto no corpo docente e de gestores, enquanto na escola privada as respostas a esta questão apontaram uma diversidade “extremamente baixa” ou “inexistente”. O que esta diferença diz das oportunidades formativas àqueles que circulam em um ou outro espaço? O que esta diferença gera no corpo social?

A presença de diversidades foi referida como menor na equipe docente e de gestão do que no corpo discente. Por que as equipes docentes se constituíram desta forma? Elas seriam resultado de que escolhas e/ou privilégios? Qual o impacto desta uniformidade, como ausência de referências diversas, para os reconhecimentos e constituições de identidade?

A maior causa de ausência referida pelo corpo docente em relação às temáticas como desigualdade, preconceito, diversidade, racismo, a questão pública e a democracia parece ser o “insucesso ao tentar construir um espaço/tempo” para trabalhar estas questões. O espaço/tempo estaria, então, sendo ocupado por quais outras questões? O que seria necessário para se ter sucesso no trabalhar com as que são ausentes?

Há membros da equipe docente que afirmaram não terem trabalhado algumas questões por estas não estarem presentes em seus componentes curriculares, em especial as questões como “preconceito”, “diversidade” e “racismo”. O que teria acontecido para que determinados componentes curriculares se entendessem “à parte” destas discussões? Por que estaria ausente de um determinado componente curricular a problematização de dinâmicas sociais tão impactantes?

Alguns referiram não ser a “democracia” nem o “preconceito” questões de interesse ao corpo discente. Por qual motivo uma pessoa em formação não se interessaria por estas duas questões? O que este desinteresse revela da sociedade na qual estas pessoas estão imersas? O que esta resposta revela das formações a uma cidadania ativa? Por que “não ser do interesse do corpo discente” se constituiria como motivo suficiente para que estas problematizações não aparecessem como intenção do(a) educador(a)?

Se reconhece a relação entre corpo docente e discente como mais formativa à democracia do que aquela que acontece entre gestão e corpo docente, sendo que para cerca de um quarto dos(as) educadores(as) esta última seria, inclusive, não formativa. Quais tensões afetam a gestão a ponto de fazer com que esta não possa se exercer de forma modelar? Quais tensões afetam o corpo docente a ponto de fazer com que este, apesar de um determinado contexto, seja capaz de estabelecer relações formativas em termos democráticos junto ao corpo discente?

Um quinto dos educadores reconheceu em seus alunos o exercício frente aos sentidos democráticos e da diversidade. No entanto, a maior parte reconheceu este movimento como se dando de forma bastante hesitante. A escola está educando à qual práxis social? Por que os percursos formativos não estão gerando sujeitos agentes e cheios de humanidade?

Olhar a escola como forma constelada de tensões dinâmicas nos ajuda a questionar seus modos e a investir em fluxos de transformação. Ver a escola na sua complexidade enquanto cruzo e campo de negociações ajuda a vislumbrar, as tenções implícitas.

O desenho vivo e dinâmico de cada unidade escolar, e dela na sociedade, é um campo de negociação entre hegemonias e reparações, entre norteadores prescritos e a inventividade, entre apagamentos e resistências, entre desejos de perpetuação e de transformações.

Entender as tensões sob as formas, num campo de afetações mútuas, oportuniza o estabelecimento de campos mais consequentes de troca e revisitação. É no co-engendrado dos processos que se vive (pois deve ser na práxis) as aprendizagens.

Rever a função social da escola, seus princípios e compromissos constelados à luz de uma educação em transformação seguramente ajudará a vislumbrar as brechas e as frestas para a efetivação de novos caminhos a uma formação mais afim com a presença no mundo, com a consciência aos estados de afetação mútua, com os estados humanizados da existência.

Na dialógica construtiva do além da borda, da in-com-formação transbordante.

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