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“Um resgate de tudo que nos foi tirado. Os tronos serão recuperados, resgatando reinados antes apagados” – Brinsan N’Tchalá

Os primeiros segundos do clipe de “Respeito”, faixa-título do álbum de estreia da curitibana Brinsan N’Tchalá, trazem a citação acima, palavras da própria artista. Quando as imagens começam a aparecer, a cantora e compositora surge sentada em um trono, em um vestido dourado, enquanto segura um cálice da mesma cor. Gravada em contra-plongée e em uma pose bastante imponente, os primeiros takes trazem Brinsan claramente como uma rainha. Ouvimos, então, os primeiros versos, que complementarão o tom do restante deste seu trabalho: “Respeito, respeito, respeito / Me trata, me trata, direito / Meu som, o meu som, tem efeito”.

Artista negra, Brinsan, fala da importância de enaltecer a cultura musical preta.

Brinsan faz parte de um grupo “informal” de artistas que usam imagens e palavras de força e de valorização da própria cor: Elza prometeu que não ia sucumbir. Rincon, que o garfo ia continuar no cabelo crespo.

Mas por que tanto desejo de nos lembrar da própria cor de pele? Para Brinsan, é uma forma de “respeitar quem veio antes e literalmente lutou e abriu caminho para que a gente estivesse aqui. Nada é feito do nada. Teve todo um caminho sangrento”.

Antes de se dedicar integralmente à música, a cantora chegou perto de se formar em Direito. A experiência como universitária a ajudou a explorar a dialética entre cores de pele em sua carreira como artista. Cotista, ela cursou nove períodos, de um total de dez, vivenciando o racismo e o machismo em salas de aula com esmagadora maioria composta por alunos brancos.

Realizado com produtores da Nigéria e da Angola, o disco “Respeito” fala o tempo todo da ancestralidade da artista e adapta e traduz para o português um dos principais movimentos da atualidade para a comunidade negra: o afrobeats – termo guarda-chuva para a música pop contemporânea da África Ocidental.

Este sentimento de orgulho com as próprias raízes revela algo muito mais profundo nela e em outros artistas pretos envolvidos com música. É proteção da cultura de seus pares com o intuito de, assim, proteger a própria comunidade. Porque a branquitude dificilmente fará isso por pessoas pretas.

É o que afirma o psicólogo Robson Douglas da Silva Santos, da Clínica Preta, um espaço para negros que procuram por apoio psicológico e para profissionais da psicologia trabalharem. Santos avalia que toda forma de cultura é extremamente importante na formação dos indivíduos e ajuda a modelar estilos de vida das pessoas. A música, em especial aquela que traz à tona a consciência social ou assuntos políticos, tem um papel ainda mais relevante para a comunidade negra.

MÚSICA MARGINAL OU “DE MARGINAL”?

Porém, o psicólogo alerta para um “boicote” que acontece, há bastante tempo, com artistas negros. “A sociedade branca tem a arma mais poderosa na mão, a mídia. E através da mídia, mostram-se trechos de rap fora do contexto, por exemplo. Há alguns anos atrás isso ocorreu com o clipe ‘Isso aqui é uma guerra’, do grupo Facção Central, que teve o clipe censurado”.

O episódio lembrado por Santos ocorreu em 1999, quando o grupo começou a ganhar notoriedade no cenário musical nacional. Por conter cenas consideradas muito violentas por autoridades, o clipe de “Isso aqui é uma guerra” foi taxado como apologia ao crime e, após envolvimento até do Ministério Público, foi censurado. A polícia caçou a fita do grupo na MTV, canal de TV que era principal divulgador de videoclipes na época.

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS

Santos se pergunta se o problema, no caso do episódio com o Facção Central, realmente era o conteúdo do clipe ou a origem social e a cor da pele dos integrantes do grupo. Ele cita como exemplo o que ocorre com o funk, igualmente negro e periférico: meios de comunicação praticamente só mostram bailes com jovens bebendo e usando drogas, como se isso fosse uma exclusividade daquela população. “Imagina como seria se a mesma mídia fizesse uma reportagem de algum intercurso das grandes faculdades?”, questiona Santos.

“Eu falei sobre o poder da mídia que a branquitude tem nas mãos, mas outro poder que ela possui são as leis. Hoje em dia, não necessitamos somente do rádio ou da TV para ouvir música. Com essa dificuldade de boicotar o funk, a elite social apela para as leis”, afirma o psicólogo.

Casos de aprovação ou de discussão de projetos de leis repercutiram bastante nos últimos anos. A Lei Antibaixaria, sancionada na Bahia em 2012, e também em Goiânia, em 2016, teria como propósito boicotar letras machistas, racistas, homofóbicas ou que ofendessem outras minorias. Mas foi criticada por se aplicar praticamente apenas a artistas de determinados estilos musicais, como o funk, o axé e o pagodão baiano. Em comum a todos está a origem periférica e negra.

Mais recentemente, o legislativo brasileiro chegou a analisar uma proposta que transformaria um dos ritmos mais tocados no Brasil, o funk, em “crime de saúde pública”. Bastante vago, o projeto de lei (PL), elaborado por um morador da Zona Norte de São Paulo, não dizia como funcionaria a fiscalização ou a punição, nem mesmo o que ficaria proibido caso aprovado.

Por fim, o PL não passou, mas expôs mais um pouco do preconceito dos brasileiros: teve quase 22 mil assinaturas de apoio no portal do Senado em menos de quatro meses. Em uma comparação recente, a proposta de inclusão do gênero neutro nos documentos oficiais de identificação, também sugestão popular – ou seja, não veio de agente público, como um senador – não chegou a 20 mil assinaturas, no mesmo período.

SAMBA CRIMINALIZADO: IMPACTOS NA SOCIEDADE

Artista negro, Nego Álvaro, foi alvo de racismo por tocar tambores na infância.

Assim como os casos do Facção Central ou dos artistas dos gêneros musicais citados, já aconteceu boicote por ser preto? Essa pergunta foi feita ao sambista carioca Nego Álvaro, e a resposta é: não que ele saiba oficialmente. “Mas com certeza já deve ter acontecido. Nunca foi dito. A sociedade maquia isso muito facilmente”.

O sambista diz que, desde muito pequeno, já lida com a discriminação racial em sua música. “A gente não nasce sabendo tocar. Quando criança, começava a batucar e não queria largar mais o instrumento. Já ouvi ‘esse menino não para de tocar essa macumba’. Com certeza se fosse um piano, talvez a vizinhança até apoiasse. Talvez se estivesse estudando harpa, violino… Mas eu toco vários tipos de tambores usados no samba”, lembra o artista. 

O gênero tocado por Nego Álvaro desde criança foi literalmente criminalizado há cerca de um século atrás. Dois anos depois da promulgação da Lei Áurea, que libertava os negros escravizados, um novo crime foi tipificado no Brasil. Em 1890, uma lei classificava como “vadiagem” aqueles que tocavam o mesmo gênero de Nego Álvaro e que hoje é um símbolo do país.

A criminalização do samba era essencialmente racista. Para a professora adjunta de Antropologia do Depto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Sandra Maria Correa de Sá Carneiro, a questão levantada pelo Nego Álvaro, de que ainda hoje há preconceito contra ritmos negros, retoma problemas muito mais antigos no país.

O racismo estrutural “levou o branco a contar a historia. É uma herança da época do Brasil colônia. E depois da abolição não foram oferecidas condições dignas à população negra para ser protagonista”.

Sandra tem experiência na área de Antropologia Urbana e confirma que correntes antropológicas falavam com naturalidade que negros eram inferiores. E, portanto, a cultura negra também não tinha importância. “Música e religião eram uma coisa só. A religião era proibida, logo, a música também”, afirma a professora.

A criminalização do samba durou até a Presidência de Getúlio Vargas. Mas, a partir da década de 1940, a popularidade do carnaval ajuda a colocar o ritmo nos ouvidos da elite branca, e a repressão diminui. Fenômenos parecidos de criminalização oficial ou repressão policial também ocorreram com a capoeira e o rap, ambos com origem social negra.

O NEGRO TAMBÉM TEM QUE AJUDAR

Especialistas e artistas afirmam, no entanto, que a culpa de todo este processo não é integralmente da branquitude. Ainda que a população branca tenha sido, histórica e atualmente, responsável pela marginalização de pessoas pretas, muitas delas também precisam despertar para um senso de comunidade.

“Eu coloco na nossa conta também, da gente como pessoa preta. A gente está falhando muito. Tem toda uma dinâmica que nos exclui, é um problema. As pessoas brancas crescem utilizando nossos corpos, nossa cultura, nossa história e a gente não tem o mesmo crescimento. Mas a conta no Instagram, por exemplo, não fecha. E infelizmente o resultado ao qual se chega é que a própria população preta não está consumindo [outras pessoas pretas]. A população branca consome gente branca pra caramba, sim. Mas a população negra também consome, numa dimensão muito maior, mais pessoas brancas do que negras. Se um branco faz um post falando que vidas negras importam, é incrível, todo mundo vai lá e apoia. A pessoa cresce e ganha seguidores. E pessoas negras, não”, desabafa Brinsan N’Tchalá. “Eu acho que é muito importante trazer a consciência da descolonização da mente e dos nossos corpos. Ouvir e beber da fonte da África”, completa a cantora.

Jornalista e Docente do Bacharelado em Ciências e Humanidades e do Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC, a professora Luciana Xavier de Oliveira concorda com Brinsan. Ela diz que há um processo danoso em que criadores negros não recebem o mesmo crédito ou retorno financeiro do que artistas brancos, “que por vezes só copiam, e esse é um problema que tem sido reproduzido em vários contextos ao longo do tempo”.

Mas a professora acredita que as culturas populares passam por dinâmicas de transformação, conflitos, diálogos e negociações. Luciana, que também é Doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, tem atuação nas áreas de Estudos Étnico-Raciais e Música Popular e afirma que “nesses âmbitos, especialmente no contexto capitalista, talvez seja normal fazer concessões em processos de legitimação”.

“Acredito nos diálogos entre as culturas, e essa ideia de apropriação [cultural] é uma visão muito essencialista e maniqueísta das dinâmicas culturais, que na verdade são sempre palco de conflitos, tensões e negociações”, completa a professora. 

ONDE MAIS ESTÁ A RESISTÊNCIA?

Pagode por Elas enaltece artistas negras e de gêneros periféricos.

Luciana continua: “Acho que existem muitas formas de resistência cultural, que residem em táticas de negociação e estratégias de diálogos e sobrevivência. A resistência não é estanque, ela é móvel. Acredito que um exemplo interessante sejam os proibidões, de diferentes vertentes, que seguem sendo produzidos e circulados e, independente do fato de não alcançarem a grande mídia, acabam gerando visibilidade para compositores, que eventualmente até abandonam o gênero para fazer um funk mais comercial. E também apontam questões ligadas à vida nas favelas de uma forma que outras produções culturais não fazem, o que é bastante relevante em termos de linguagem e estética subversivas periféricas”.

“Creio que cada vez mais grupos subalternizados, não apenas negros, mas também indígenas, quilombolas, comunidades LGBTQIA+, pessoas com deficiência, refugiados, estão em contato com formas de produção alternativas, especialmente utilizando novas tecnologias, plataformas online e redes digitais para produzir conteúdos, apresentando ao mundo seus próprios pontos de vista e questionando estruturas de poder, e produzindo cultura de maneira mais descentralizada, diversificada e atual”, finaliza.

O exemplo descrito por Luciana pode ser encontrado no coletivo Pagode por Elas, plataforma que tem como objetivo tornar reconhecidas nacionalmente mulheres vocalistas de pagode baiano, também conhecido como pagodão. De origem periférica, o gênero musical criado na Bahia vem da mistura de samba-reggae e pagode e é composto por histórias de sucesso, como Léo Santana, que começou na banda Parangolé, e Xanddy, do Harmonia do Pagode.

São, sim, histórias de sucesso de artistas negros em um gênero de origem periférica, mas de uma maioria esmagadora formada por homens – números que o coletivo tenta equilibrar ao se propor em resolver parte do problema de trabalhar com um gênero de origem negra e marginalizada.

O Pagode por Elas ajuda com o desenvolvimento de uma plataforma voltada para distribuição, registro e lançamento de músicas de artistas mulheres. A co-fundadora do coletivo, Joyce Melo, conta que o trabalho promovido pelo projeto já incluiu colocar as cantoras em reportagens na mídia, uma minisérie documental, artigos científicos e podcasts. Tudo para dar mais visibilidade às artistas.

“A comparação do pagodão na Bahia é com o funk no Rio de Janeiro. Porque é um ritmo marginalizado, periférico, e tem tudo para ficar preso. A diferença é que a gente nota que o funk consegue se expandir muito fácil pelo Brasil e o pagode não consegue. A gente atribui muito ao preconceito regional”, continua.

Os resultados vieram rapidamente e o grupo viu a quantidade de artistas mulheres que se dedicam ao pagodão aumentar. “Esse aumento foi mapeado. Em 2019, a gente tinha nove mulheres. Hoje a gente tem mapeadas 26 mulheres cantoras de pagode baiano”.

A conclusão de Joyce é lógica: “representatividade importa”. As professoras ouvidas pelo journal48 afirmam que coletivos sociais hoje clamam por atenção. Para a antropóloga Sandra Maria Correa de Sá, da UERJ, “é uma efervescência muito grande contra a indiferença do estado e do público”.

“Dentro do pagode baiano, a cultura negra é tão forte, os brancos vêm, tentam tomar a parada toda, mas a gente se destaca muito ainda. Talvez isso mude. O pagode tem tomado forma, tem tomado espaço que a gente gosta de ver. Com a amplitude do gênero, de alcançar o Brasil, acredito que isso aconteça, como aconteceu com outros gêneros. Mas até então, as grandes referências são pessoas negras”, diz Joyce.

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