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Cabelos crespos, lábios grossos, nariz achatado e pele preta. Essas são algumas das características fenotípicas que compõem os corpos historicamente rejeitados pelo mercado publicitário do Brasil, o segundo país com a maior população negra no mundo, ficando atrás apenas da Nigéria.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,10% dos brasileiros se autodeclaram negros – grupo reúne pretos e pardos –, mas a representação nos quadros estratégicos dos departamentos de marketing não corresponder a esse percentual. Além disso, uma pesquisa do Instituto Ethos, divulgada em 2016, mostrou que somente 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros.

Ademais, a pesquisa “A presença dos negros nas agências de publicidade”, conduzida em 2015 pela pesquisadora Danila Dourado, confirmou a irrisória participação dos negros nas agências de publicidade. O estudo mostrou que os não-brancos ocupam 0,74% dos grupos de alta direção nesse segmento. Dos 404 executivos pesquisados, apenas 32 são negros. Durante o levantamento, foram realizadas buscas aleatórias em uma média de 100 perfis de funcionários de cada uma das 10 agências do ranking do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE); e foram analisados 893 perfis no Linkedin, destes, apenas 3,5% eram de negros. É como se a cada 1000 funcionários de agências de publicidade, menos de 35 tivessem a pele preta.

Segundo o empreendedor, publicitário e consultor em diversidade, Paulo Rogério Nunes, que também é o um dos fundadores da Vale do Dendê, uma aceleradora de negócios de Salvador (BA), a inserção mais recente da população negra dentro da publicidade foi há cinco anos, “quando o mercado realmente acordou para o fato de que o objetivo é se comunicar com a sociedade de um modo geral, que precisa fazer uma inclusão negra maior”.

Ele diz que as agências começaram a fazer pesquisas com grupos focais e, ao identificarem essa questão, mudaram. Mas ressalta que ainda está muito distante do que se é desejado e do que o mercado precisa, apesar de já ser um avanço. “O Brasil com tanta desigualdade está entre as dez maiores economias do mundo, imagina se tivéssemos mais igualdade de oportunidades? O Brasil seria uma potência econômica muito maior”, complementa.

A luta dessas pessoas por oportunidades fez com que, em 23 de setembro de 2019, durante o Festival do Clube de Criação, em São Paulo, fosse assinado um pacto firmado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e por 15 das maiores agências de propaganda do país para buscar mais espaço para profissionais negros no mercado publicitário nacional. Mas, será que isso é o suficiente?

Para Ricardo Silvestre, publicitário com 10 anos de experiência em comunicação e criador do Black Influence, uma agência de comunicação criativa diversa e antirracista, especializada em influenciadores pretos, “vivemos um momento bastante especial para o mercado publicitário”.

“Claro que ainda estamos em uma fase muito inicial do processo de inclusão da diversidade de pessoas na publicidade. É um processo relativamente novo no nosso país, mas que demonstra um potencial gigantesco para se tornar uma prática cada vez mais comum. O mais importante neste aspecto é observar e legitimidade do discurso das marcas na busca pela diversidade. As pessoas buscam identificação e verdade naquilo que consomem”, destaca ele.

REPRESENTATIVIDADE E DIVERSIDADE

Que a publicidade brasileira vem tentando trilhar o caminho da diversidade, não tem como negar, mas isso ainda está sendo feito a passos curtos em comparação às discussões que acontecem na sociedade. No entanto, essa busca por mais diversidade e representatividade está trazendo algumas mudanças. Em 2018, a campanha de Dia dos Pais da marca “O Boticario” colocou uma família negra estrelando uma propaganda, por exemplo.

Um dos exemplos mais impactantes e recentes envolveu o Batekoo, coletivo criado em Salvador (e que já se espalhou para outros estados, com SP e RJ), no ano de 2014, com o objetivo de promover a representatividade de jovens negros e LGBTQIA+ periféricos a partir da cultura. O grupo foi escolhido pela Beyoncé, uma das maiores e mais importantes artistas negras da atualidade, para estrelar a campanha Icy Park, da Adidas e Ivy Park, no Brasil.

O CEO e fundador do projeto, Mauricio Sacramento, acredita que o mercado “tem dado voltas e voltas nos últimos anos para poder mudar essa estrutura da publicidade que todos já cansaram de saber que está ultrapassada”.

“Eu acho que, principalmente, pensando nas mudanças que o movimento negro e o movimento LGBT realizaram na nossa sociedade, o marketing e a publicidade, no geral, têm tentado acompanhar esses avanços, discursos, novas linguagens, essa nova forma de enxergar o mundo. Grande parte do mercado ainda está nessa tentativa de acompanhar, mas ainda com métodos ultrapassados. E a outra metade está se adaptando de uma maneira legal e genuína”, pontua.

Apesar dos avanços citados por Mauricio, ele ainda não se sente representado, pois continua sendo um mercado de publicidades muito embranquecidas. “Existem poucos profissionais negros dentro dessas agências contribuindo com as nossas visões sobre o mundo e com essa nova narrativa de vida, principalmente respeitando e dando oportunidade a quem teve esse espaço negado durante toda a vida. Não me representa ainda. O próprio trabalho da Batekoo, dos influenciadores e dos artistas vem se moldando nesses últimos anos justamente porque as agências de comunicação, a publicidade e o marketing, no geral, não têm conseguido pensar de uma maneira plural”, disse.

Assim como Mauricio, Ricardo diz que, por muito tempo, não se viu representado no mercado publicitário, mas hoje nota que o número de profissionais negros na área aumentou significativamente, “contudo ainda esbarramos em um núcleo de decisão nas grandes agências composto, exclusivamente, por pessoas não-negras”.

Ele reforça: “De novo, estamos falando de um momento de transição e transformação, que retrata um recorte bem específico do que vivemos hoje. Acredito que futuramente teremos uma nova realidade, e torço para que isso aconteça”.

ONDE AS AGÊNCIAS ERRAM?

Campanha publicitária da Devasse Tropical Dark, que foi veiculada entre 2010 e 2011. Foto: Divulgação.

2010: Campanha publicitária da Devassa Tropical Dark traz a ilustração de uma mulher negra, em pose sensual e com um vestido de gala com as costas abertas, junto à mensagem: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra. Devassa negra. Encorpada, estilo dark ale. De alta fermentação, cremosa e com aroma de malte torrado”. O anuncio da Devassa foi considerado uma “publicidade abusiva por equiparar a mulher negra a um objeto de consumo”, segundo informou o Ministério da Justiça em 2013.

2012: A marca “Bombril” faz a campanha “Mulheres que Brilham” usando também uma ilustração que mostra uma mulher negra com o logotipo da marca sobre seu cabelo black power. A peça foi considerada racista pela Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial.

2017: A “Personal” é acusada de racismo após usar como slogan o nome do movimento negro Black is Beautiful para divulgar um papel higiênico de cor preta. A atriz Mariana Ruy Barbosa foi a estrela da campanha. Criado na década de 1960 por artistas e intelectuais, o Black is Beautiful surgiu nos Estados Unidos para enaltecer características físicas de negros.

Bom, essas são algumas das campanhas publicitárias que repercutiram de forma negativa após apresentarem ideias e representações racistas. Esses exemplos provam como as agências ainda caem em alguns estereótipos em relação à representação de afrodescendentes, como aborda Paulo Rogerio em sua fala.  “Estereótipos ligados à mulher, aos homens, ainda de narrativas muito associadas à pobreza, que é uma parte significativa da comunidade, mas não é a única. Esses estereótipos precisam ser revistos”.

A jornada das pessoas não-brancas dentro da publicidade, inicialmente, foi pontuada pela presença masculina: homens retratando operários ou estrelando propagandas de ajuda social. Depois, eles saíram da posição de empregados para os que precisam da ajuda do governo para progredir.

Ou seja, os roteiros aos quais cabiam aos negros “protagonizar” sempre eram muito reduzidos e problemáticos. Além de tudo, dificilmente pessoas negras estavam por trás desses projetos, pensando-os para fazer novas abordagens. “O principal erro é querer resumir a gente em uma coisa só, resumir a gente sempre numa pauta. Quando na verdade, a gente pode pensar sobre tudo, falar sobre tudo. (…) O erro está em querer colocar a gente dentro de caixinhas, sempre”, enfatiza Mauricio Sacramento.

No ponto de vista de Ricardo Silvestre, se o foco é a criação de narrativas que gerem impactos positivos e reais na atração de consumidores, é possível dizer “que o erro seria a busca por criadores que não dialogam com a identidade e a cultura da marca”.

Ele conta que, cada vez mais, tem notado que as pessoas buscam por verdades naquilo que consomem. “Com isso, quero dizer que não adianta trazer um criador para uma campanha simplesmente por ele ser negro e atender a uma pauta de diversidade para a marca, é preciso que ele, e seu estilo de vida, dialoguem com os propósitos daquele produto e marca que está publicitando”, afirma.

ESPAÇOS QUE SÃO NEGADOS E O IMPACTO NA REPRESENTATIVIDADE

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em 2018 apresentou um panorama do consumo negro no Brasil, do ponto de vista dos consumidores e dos empreendedores. Em conformidade com o estudo, os negros brasileiros representam 54% da população – isso quando o levantamento foi feito – e movimentam, em renda própria, R$ 1,7 trilhão por ano. Apesar disso, 72% desses consumidores consideram que as pessoas que aparecem nas propagandas são muito diferentes deles e 82% gostariam de ser mais ouvidos pelas empresas.

Sobre isso, Mauricio salienta: “A gente nunca vai falar de representatividade sem ter pessoas negras pensando nessa transformação. Não dá para excluir os negros dos processos dessas mudanças. (…) Sendo essas as cabeças da inovação, eu acredito que vamos conseguir ter um olhar genuíno e verdadeiro nessas campanhas”.

Diante dessa observação, fica ainda mais evidente a necessidade de gerar espaços para esse público dentro do mercado publicitário. Já que, mesmo sendo o mercado consumidor que se destaca e consome produtos básicos e sofisticados, ele ainda é ignorado por aqueles que criam as campanhas.

“Estamos falando de uma decisão que interfere não somente no consumo e nos resultados das marcas, mas, também, diretamente na vida de milhares de pessoas, que por muito tempo consumiram produtos e marcas sem se verem representados nas campanhas destes itens. Estamos falando de representatividade, e da importância que isso tem na autoestima e nos reflexos gerais da vida da população que é maioria no Brasil”, acrescenta Ricardo Silvestre.

COMO CRIAR NOVAS NARRATIVAS


Campanha de Dia dos Pais da marca “O Boticario” colocou uma família negra estrelando uma propaganda. Foto: Reprodução / YouTube

Falta representatividade e diversidade, as empresas erram e, por isso, é importante gerar espaços, mas como criar novas narrativas dentro do mercado publicitário?

Não existe apenas uma única resposta para esta pergunta, pois há várias maneiras de se criar e conduzir narrativas dentro desse segmento, e é importante que as marcas se atentem a isso – dado que a forma como a vivência e os corpos negros são representados tem um impacto muito grande na sociedade, como já foi abordado anteriormente.

“Primeiro de tudo é conscientizar as marcas sobre a importância de trazer a diversidade para suas campanhas. Evidenciar as necessidades trazidas pelas pessoas de se verem genuinamente representadas naquilo que as impacta, consequentemente, as faz consumir. Nosso objetivo tem sido construir pontos entre as marcas e os criadores de conteúdo que entendemos fazer sentido para a criação de narrativas que trazem a diversidade, de forma real, para o centro do negócio”, explica Ricardo, que já atuou em algumas das maiores agências de propaganda do Brasil, como Africa, VMLY&R e F/Nazca.

Profissional que carrega uma bagagem e visão mais acadêmica, Paulo Rogerio ressalta que, para criar novas narrativas, é preciso sair das bolhas. “Os publicitários precisam conhecer o seu estado, o seu país, a diversidade que nós temos aqui de gostos musicais, culturais, estéticos, comportamentais, tudo isso. Buscar ouvir mais. O mercado precisa ouvir a voz dos que foram historicamente silenciados”.

IMPACTO DA INSERÇÃO DE NEGROS EM CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS

Pautar a representatividade positiva tem que ser um exercício diário. Os negros precisam se enxergar em cargos de liderança, na política, na arte, na economia, na ciência, nas universidades e também na mídia – não nos noticiários de polícia -, levando um fio de esperança para os seus iguais, fazendo eles se enxergarem em todos os lugares. E como fazer isso sem a inserção de pessoas não-brancas em todas as áreas? O futuro de gerações pode ser influenciado por isso.

“A gente vai ter a melhoria da autoestima das crianças e dos jovens com um país que reflete a sua diversidade de maneira completa, com a economia sendo mais bem movimentada e a imagem do país sendo mais bem refletida no mundo e dando visibilidade a esses grupos que historicamente são discriminados”, frisa Paulo Rogerio.

Mauricio completa: “O impacto da inserção é gerar possibilidades de ser. É gerar referências para pessoas que cresceram como a gente e que não se viam nesses lugares. Quando a gente coloca pessoas pretas em lugares de destaque abrimos um leque de possibilidades para que outras pessoas se vejam”.

E MARCAS, ATENÇÃO:

“Vivemos um momento muito singular em todo o mundo no que diz respeito ao racismo e ao antirracismo. Chegamos a um momento em que não precisamos apenas combater o racismo, mas precisamos reforçar e potencializar o antirracismo em todos os aspectos da sociedade. Isso, é claro, passa por marcas e a forma como elas se posicionam diante dos seus públicos de interesse. Quero dizer que, cada vez mais, marcas, empresas, autoridades e celebridades serão pressionadas a se posicionar no que diz respeito ao tema no nosso cotidiano”, finaliza Ricardo Silvestre.

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Micael Cardoso
Micael Cardoso
3 anos atrás

Que texto sensacional! Leitura obrigatória a todo e qualquer publicitário, além de, claro, qualquer que queira ampliar o nível de conhecimento sobre a temática. Parabéns 👏🏾👏🏾👏🏾