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Quando criança, Sah Oliveira se fazia as seguintes perguntas: Por que eu nasci negra? Por que sou feia assim? Por que meu cabelo é ruim?  

Essas perguntas, respondidas cruelmente pela sociedade, acompanharam a digital influencer até sua adolescência e a fizeram desenvolver um sentimento de inferioridade que a impedia até mesmo de se olhar no espelho.  “Aos 5 anos de idade eu já tinha enfrentado muitos problemas em relação ao meu cabelo e ao meu tom de pele. Porque é impossível separar uma coisa da outra. Então eu tinha muita dificuldade para aceitar quem eu era e o meu cabelo.”  

E ela não é a única a viver o racismo desde a infância. Na verdade, aquelas perguntas tão dolorosas rondam a cabeça da maioria – senão de 100% – dos negros. Afinal, qual pessoa preta nunca ouviu a frase: seu cabelo é de bombril?  

Infelizmente, essa é uma herança que data do sequestro dos negros da África e se estende até os dias de hoje de forma estrutural, subjugando a beleza e inferiorizando seus traços.  Kobena Mercer, no estudo “Black hair/style politics”, diz que “as expressões ‘cabelo de negro’ e ‘cabelo ruim’ revelam a arbitrariedade de uma dimensão estética que associa a negritude à absoluta negação da beleza”.  

Com o desenvolver da sociedade assimilando o preconceito como regra, as tentativas de mudança por parte da comunidade negra foram inevitáveis. Com isso, surgiram as práticas de alisamento capilar que, em alguns casos, se assemelham a instrumentos de tortura. 

Instrumentos usados para alisar os cabelos.
Instrumentos usados para alisar os cabelos. Fotos: Reprodução.

Com o avanço dos tratamentos estéticos, os procedimentos para alisamento também mudaram. Os instrumentos se tornaram um pouco menos assustadores e ganharam aliados: potes contendo químicas que, em muitos casos, danificavam a estrutura capilar – mas alisavam.  

Alguns, inclusive, eram direcionados especificamente para crianças. O que, para Sah, era uma oportunidade: “Com os meus 10 anos de idade eu passei meu primeiro relaxamento. Eu não via a hora de ter 10 anos para poder fazer o procedimento.” Revela.  

Ela também conta que essa era a forma que enxergava de ser aceita e parar de sofrer com o bullying escolar:  

“Uma colega de pré-escola, toda vez que eu chegava, me chamava de cabelo de couve-flor. Ela desmanchava meu cabelo, puxava e me jogava no chão. (…) Eu sempre me achei um erro por ser negra. (…) As pessoas me olhavam estranho, meus colegas de classe não me deixavam participar das atividades porque eu era a ‘negra do cabelo duro’”, relata.  

Mas a escolha de alisar os cabelos para se adequar ao padrão não é apenas feminina. Homens pretos também sentem na pele – literalmente – a pressão sobre a estética considerada aceitável:  

“Eu cresci aprendendo que ser preto era feio. Que a minha cultura, ser eu mesmo, era algo que não se encaixava. Então, quando meu cabelo estava começando a crescer, eu já tinha que cortar ele porque vinham comentários como ‘cabelo de bombril’, ‘vassoura’. (…) então eu passei a alisar o cabelo”, conta Jhonathan Mello, professor de educação física.  

O relato de Jhonathan é compartilhado por vários homens que, em pleno século XXI, precisam lidar com os olhares e comentários maldosos que demostram como a estética e o racismo estão interligados.  

RACISMO E BELEZA: COMO OS TRAÇOS NEGROS FORAM SUBJULGADOS

O que é belo? Segundo o dicionário, a definição nada mais é do que “o que tem formas e proporções harmônicas; bonito” ou “que produz uma viva impressão de deleite e admiração.”  

Entretanto, aos olhos de uma sociedade estruturalmente racista, o belo é um padrão que inclui cabelos lisos, preferencialmente loiros, que muito se assemelha – não coincidentemente – a estética europeia. O que não deixa espaço para os cabelos crespos, escuros, convenientemente sempre sobre a cabeça de um povo específico: o negro.  

Essa é uma herança antiga, como conta a professora de história Tânia Nizinga, que explica como a ridicularização da estética negra se espalhou pelos continentes: “Nossos ancestrais foram sequestrados da África. Eles vão ocupar outros continentes e eles já vão com a ideia de que tudo o que vem deles é feio. O cabelo, os traços e a religião”.  

A desconstrução da autoestima do povo preto está alocada no pacote de crueldades feitas no sequestro dos povos no continente africano, tirando não somente o orgulho de ser, mas iniciando um processo de desumanização, como indica a professora: 

“Quando o colonialismo e o neocolonialismo chegam em África, uma das primeiras coisas que é feita – além da questão da religião e do letramento – é uma diminuição de tudo que o negro traz em si”, diz ela. Essa era uma tentativa de apagar a história, retirar as origens e diminuir sua importância.  

Ingrid Banks, em seu livro “Hair Matters”, cita que o cabelo representa muito mais do que apenas aparências, mas remonta as memórias de um povo:  

“No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça.” 

Aos poucos, o cabelo – assim como os demais traços da cultura negra – foram criminalizados e ridicularizados. A prova disso é que, hoje em dia, para conseguir um emprego, muitas mulheres são obrigadas a esconder seus crespos ou alisá-los.  

“Tenho uma amiga que trabalhou numa empresa aérea. Durante a integração, foi pedido para ela ou o alisamento ou escovas recorrentes, com a justificativa de que o cabelo dela (que era cacheado) era muito estiloso”, comenta Tânia Nizinga.  

Em um episódio mais recente, uma touca de natação desenvolvida especialmente para cabelos afros teve seu uso vetado nas olimpíadas de Tóquio, sob a justificativa de não seguir “a forma natural da cabeça”. Ou seja, para alguns, nem a cabeça de uma pessoa negra segue padrões aceitáveis. Para alguns…  

THE BLACK IS BEAUTIFUL: A FORÇA DO CABELO AFRO 

Angela Davis em protesto contra o racismo nos Estados Unidos, na década de 1960
Angela Davis em protesto contra o racismo nos Estados Unidos, na década de 1960. Foto: Reprodução.

Como ato político e apesar dos esforços contrários, o grito The Black is Beautiful ainda ecoa. A prova disso é que, nascido nos átrios do partido dos Panteras Negras, o movimento Black Power vem – de fato – mostrando o poder do povo preto.  

Como principal esponte temos Angela Davis que, ao assumir o cabelo crespo e volumoso, lá nos anos 60, mostrou ao mundo a força e a beleza que inspirou e ainda inspira pessoas por todas as partes.  

A professora Tânia conta que “esse movimento é encabeçado pelas mulheres. Pela beleza do cabelo crespo e por negar a imposição do alisamento pela sociedade.”  

O movimento transmitia a mensagem de aceitação e exaltação da beleza da pessoa negra, com seus traços, cultura e, principalmente, o cabelo. Era o primeiro passo para uma revolução. Se compreender como belo faz parte da retomada das origens; das raízes. Dessa forma, o Black Power não é apenas um penteado, mas um posicionamento político, como afirma a historiadora:  

Assumir o cabelo black nesse contexto é um ato político (…) Na realidade é isso. É você tentar se destituir de uma imposição eurocêntrica e assumir as suas raízes, porque não tem problema nenhum em fazer isso”, diz. 

TRANSIÇÃO CAPILAR: THE NEW BLACK IS BEAUTIFUL 

Liberdade de ser cacheada, loira, lisa...liberdade!
Liberdade de ser cacheada, loira, lisa…liberdade! Fotos: Pixabay.

A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade. Essa é a fala de Robin D. G. Kelley em seu texto “Nap Time: Historicizing the Afro”.  

O movimento ao qual Kelley se refere é o de transição capilar, que pode ser definido como: movimento praticado por pessoas que desejam ter, novamente, seus cabelos naturais. Para isso, deixam de usar produtos químicos alisantes, deixando também que sejam eliminados naturalmente os resquícios de químicas antigas.  

E o exemplo prático é a própria Sah Oliveira que, após assistir uma novela e se identificar com uma personagem negra de cabelo afro, decidiu iniciar a transição capilar.  “Eu passei pela transição. Foi um processo difícil. Eu lembro que na escola, todos ficavam me zoando muito. Uma menina me disse que eu já era feia e que estava ficando horrorosa”. 

Além disso, Sah conta que os professores na faculdade a desrespeitavam e prejudicavam apenas por ser uma mulher negra em meio a transição capilar, o que para muitos é considerado altivez.  

“Um professor me falava: ‘ô sua negrinha, quem você tá pensando que você é. Se você acha que não precisa estar na minha aula, não esteja, é um favor pra mim’”, relata Sah, “eu tinha uma professora de contabilidade que rasgava as minhas provas”, completa.  

As falas e atitudes demonstram um aspecto importante: a sociedade encara o empoderamento negro como um ato de afronte. A frase “aquela neguinha metida”, infelizmente, é ouvida com frequência por mulheres pretas que assumem suas origens e se posicionam.  

Hoje, formada em marketing digital e comercio exterior, a menina que antes não entrava no banheiro feminino da escola, pois não queria encarar o espelho, encara a câmera e fala sobre sua história de beleza e aceitação para os seus mais de 100 mil seguidores. E toda sua força e reconhecimento veio, justamente, por conta da transição capilar e do compartilhamento de experiências com a comunidade. 

“O que me deu mais força foi quando eu comecei a compartilhar a minha história na internet. E foi quando eu vi que tinha uma galera do outro lado passando pelas mesmas coisas que eu. E sem perceber eu dei força pra essa galera e essa galera me deu força”, conta a digital influencer.  

A coragem dessa comunidade ao retornar aos cabelos naturais não é apenas uma questão estética. É um ato de amor-próprio e – acima de tudo – de compreensão de que a pessoa preta é livre para fazer escolhas, principalmente longe de novos padrões.  

Essa escolha transforma completamente a forma que o povo negro se vê e é visto pela sociedade. É força que nasce de dentro e reflete no mundo ao redor. Como disse Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. 

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