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Para alguns veneno, para outros remédio. O setor do agronegócio insiste em chamá-los de defensivos agrícolas. Sem pedir licença, já vou logo usando o termo “agrotóxicos”, como define a própria legislação brasileira. Porque, sinceramente, a função de defender (plantações e gentes) não combina bem com a realidade dos tidos “defensivos”.

O Brasil é, há muitos anos, um dos maiores consumidores de agrotóxicos de uso agrícola no mundo. O registro de novos pesticidas no país – que passa pela Anvisa, pelo Ibama e, por fim, pelo Ministério da Agricultura -, tem crescido em disparada desde 2016, e segue batendo recordes a cada novo ano desde então. Detalhe importante é que muitos dos produtos liberados para uso nas lavouras brasileiras estão proibidos na União Europeia, por serem avaliados como extremamente tóxicos à saúde humana e/ou com alto dano ambiental (leia-se aqui efeitos severos de contaminação e consequente ameaça à biodiversidade).

Essa política regulatória excessivamente permissiva com a qual convivemos, e que segue se afrouxando mediante às pressões exercidas pelo agronegócio, serve muito mais a interesses político-econômicos do que a evidências científicas de sua eficácia versus nocividade, a despeito do que afirmam o MAPA e a Andef quando centenas de novos produtos são aprovados e lançados no mercado em um único ano.

Se você abrir o site da Syngenta, gigante multinacional da indústria de agroquímicos, vai encontrar lá uma explicação até que convincente do porquê agrotóxicos são seguros à saúde – alegando que os resíduos encontrados em alimentos estão em concentrações muito baixas para causar danos ao consumidor. A corporação também irá te convencer de que agrotóxicos são indispensáveis para o bom desempenho agrícola – questão que tomo a liberdade de deixar para nosso próximo papo.

Num país essencialmente agroexportador como o nosso, não me causa espanto que interesses políticos definam a forma como fazemos agricultura, e que diferentes discursos se valham de meias-verdades para sustentar seus interesses, produzindo informações conflitantes e que nos causam confusão. Mas, não se engane! Os agrotóxicos não estão em nossas lavouras, solos, águas, alimentos e, enfim, em nossos corpos, por mera necessidade agronômica de controle de pragas – muito menos na quantidade absurda à qual somos expostos a esses químicos.

Deixando de lado, por ora, o que você leu no site da Syngenta (ou do MAPA, diga-se de passagem), é provável que já tenha lido em outros lugares, assistido algo na TV ou mesmo escutado de alguém que “agrotóxico causa câncer” – ou malformação fetal, disfunções hormonais, infertilidade, entre outras consequências severas.

Por que, então, ainda há espaço para tantas visões contraditórias, a depender de quem ou o que consultamos?

A questão é que os problemas de saúde mencionados são crônicos, decorrentes da exposição prolongada a baixas doses de produtos tóxicos, além de uma série de outros fatores, como predisposição genética e estilo de vida. Em outras palavras, não é fácil isolar as causas de um câncer, e atribuí-las a determinado produto X ou Y.

A ciência, conservadora em suas análises (como necessita ser), pode mostrar que glifosato causa câncer em ratos, ou em células humanas cultivadas in vitro, mas não pode extrapolar estes resultados de forma literal para o que acontece no corpo humano.

O trabalho da ciência é árduo, extremamente relevante e necessário – que fique claro! Porém, dificilmente reunirá, por si só, evidências suficientes para pressionar um setor tão poderoso da sociedade a proibir determinado produto, a menos que se adote, junto com ele, o princípio da precaução.

Do direito ambiental, o princípio da precaução diz que quando uma prática impõe ameaça de danos graves ou irreversíveis ao meio ambiente – e aqui incluo a saúde humana -, a falta de certeza científica não justifica a não-tomada de medidas preventivas contra esses danos. Em outras palavras, não deveria haver motivo para liberar e manter no mercado produtos que passaram por uma série de estudos que indicam seus prováveis prejuízos graves à saúde.

Mas, além de trazer para o debate a tensão agrotóxicos versus saúde, há que se distinguir sobre a saúde de quem estamos, principalmente, falando.

Talvez os limites máximos de resíduos de agrotóxicos nos alimentos e água que você consome – que, parênteses, não são os mesmos ao redor do mundo, e frequentemente não são respeitados -, não acarretem à sua saúde dano grave no futuro. Mas, os mesmos químicos intoxicam milhares de trabalhadores do campo e das indústrias todos os anos.

Estas pessoas estão expostas a altíssimas quantidades de agrotóxicos diariamente. Muitos são os óbitos devido a acidentes de trabalho, e também é elevado o número de tentativas de suicídio fazendo o uso desses agroquímicos. Pesquise sobre o caso de Lucas do Rio Verde (MT), e ficará sabendo de uma verdadeira tragédia social decorrente da pulverização de agrotóxicos. 

Quando ministros, legisladores e membros do executivo veem a incerteza científica e decidem, muito convenientemente, enxergar nela uma metade cheia, ignoram uma situação de saúde pública que afeta em muito maior proporção indivíduos cuja situação social já é vulnerável. O Estado deveria estar zelando, com atenção especial, pela saúde destas pessoas, afinal é o que diz um outro princípio (este, do SUS): o da equidade.

Pare e reflita um pouco: os representantes do executivo e legislativo que você conhece prezam pelo princípio da precaução? E as fontes de informação que você acessa diariamente, como tratam a questão dos agrotóxicos no Brasil? Se “comer é um ato político”, informar-se e exercer a cidadania através do voto de forma crítica também o são. Quem vamos escolher para decidir sobre a saúde do Brasil?

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