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O conceito de que “a mãe terra é um ser vivo” foi oficializado pela primeira vez em 2010, na Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, em um contexto no qual acontecia a Conferência Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas – quando especialistas ambientais do mundo todo discutiram as ações necessárias para o combate às alterações climáticas derivadas de processos humanos. 

Pela primeira vez, tornou-se consciente a ideia de que a relação do homem com natureza deixou de ser interativa e passou a ser interventiva, como defendeu o teólogo brasileiro Leonardo Boff, especialista em climatologia, em conferência realizada pela ONU. Para ele, “todas as crises ecológicas são derivadas das formas inadequadas com as quais nos relacionamos com a natureza”.

Na época do degelo pós era glacial, há dez mil anos atrás, as áreas verdes da Terra representavam mais da metade de toda sua extensão, o equivalente a 57%; e os outros 43% eram locais impróprios para o desenvolvimento das sociedades por motivos climáticos e ambientais: regiões polares, ainda congeladas, e terras inférteis como desertos e dunas.

Nos primeiros 5 mil anos de civilização, apenas 10% das áreas verdes se perderam, resultado do baixo crescimento da população, que girava em torno de 50 milhões de habitantes na época. Contudo, à medida em que as sociedades humanas se desenvolveram, as áreas florestais perderam espaço: em apenas 350 anos, 23% delas foi dizimado – uma redução sete vezes maior do que havia sido observado antes.

Como afirma Boff, a situação é de extrema importância e requer atenção imediata. “Temos que evitar essa sobrecarga da Terra porque ela não aguenta mais”, disse o teólogo em curso ministrado na PUCRS. A frase ecoa os seguintes questionamentos: em que parte está a sobrecarga? E, como evitá-la? 

AGRONEGÓCIO E A ARTIFICIALIDADE DA MONOCULTURA

Dados da Organização de Alimentos e Agricultura das Nações Unidas indicam que o Brasil já teve 46% de suas florestas desmatadas por conta do agronegócio. Sendo uma das principais fontes de riqueza do país, a atividade é responsável pelos percentuais de desmatamento através de duas práticas:

A primeira é o plantio de monoculturas (produção de um único grão), sendo a soja o principal deles e motivo da ocupação de 30% dos hectares previstos para a plantação mundial assentados no país, de acordo com registros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A segunda é a criação de pastos utilizados para a pecuária e para armazenar o gado para o abatimento em frigoríficos posteriormente. 

Segundo o Doutor em Geografia com foco em climatologia, que atua na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lindberg Nascimento Júnior, a maneira com que se produz é o grande problema, pois muitos recursos precisam ser utilizados para que a produção se efetive.

Para ele, a não naturalidade do processo da monocultura exclui o cultivo biodiverso de grãos em privilégio de um em específico; “essa ‘implantação’ de um sistema único e controlado só tende a gerar a morte, apesar de, contraditoriamente, ter sido a maneira convencionalmente desenvolvida para produzir riqueza”, diz o especialista.

Ele também ressalta que as grandes áreas férteis destinadas ao plantio atualmente tendem a se tornar inférteis no futuro por conta da exaustão da terra. “Esse tipo de agricultura requer quantidades enormes de recursos naturais, e neste caso, solo e água são os primeiros a serem utilizados, fontes principais de produção”, explica.

De acordo com uma pesquisa publicada em fevereiro pelo Our World In Data, apenas 23% das produções agrícolas mundiais são destinados à alimentação humana de forma direta; os outros 77% são utilizados para alimentação animal, por conta da produção de ração para o gado. “A principal fonte de proteína utilizada para produção dos alimentos é retirada da soja, o que explica o grande plantio no Brasil e no mundo”, afirma Lindberg. 

INTERAÇÃO X INTERVENÇÃO

A pesquisa do Our Worl In Data ainda aponta que, em 2018, um terço das áreas florestais do planeta já havia sido destruído. O valor, que equivale a duas vezes o tamanho dos Estados Unidos, deu espaço para que as necessidades humanas se desenvolvessem; “mas também jogou luz a desequilíbrios sociais, já existentes, ainda mais intensificados com a destruição de áreas que um dia foram fontes de existência para determinados povos”, afirma o professor Lindberg.  

Com as atuais políticas liberais do plano de governo vigente, o Estado intervém cada vez menos nas relações econômicas – diretamente relacionadas ao desmatamento realizado por instituições empresariais. Lindberg ressalta a importância de estudar essas modificações políticas do ponto de vista das pessoas mais afetadas por conta de classe social, raça, religião e nível de escolarização.

Além disso, ele afirma que a criação de políticas públicas é essencial no que se refere à manutenção das vidas afetadas, sendo elas humanas ou não; “é necessário incorporar isso na nossa agenda de desenvolvimento”, finaliza o professor.

CONTENÇÃO X PREVENÇÃO

“São necessárias mudanças fundamentais em nossos valores, instituições e modos de vida. Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem supridas, o desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais e não a ter mais”. O trecho é da Carta da Terra, criada pela ONU a partir do encontro dos maiores influentes sobre questões climáticas do mundo. 

Assim como Leonardo Boff, brasileiro presente durante a articulação da carta, Alessandra Fonseca, Doutora em Oceanografia com foco no impacto do lixo nos oceanos e na educação ambiental, afirma que o consumo exacerbado somado ao ideal de lucro absoluto faz com que tecnologias de coexistência sejam evitadas.

O instituto independente britânico de pesquisas, New Economics Foundation, juntamente com o Global Footprint Network, confirma o que diz Alessandra: com a premissa de que o mundo tem um valor estimado de recursos máximos a utilizar, as instituições calculam o limite a ser utilizado anualmente – que tem sido ultrapassado nos últimos anos.

A data cujo limite de recursos disponíveis para utilização anual chega ao fim foi chamada de Dia da Sobrecarga na TerraOvershoot Day, em inglês. Estima-se que, em alguns aspectos, os recursos naturais utilizados nunca serão recuperados, considerando o gasto desenfreado com relação à capacidade de regeneração da Terra.

De acordo com a pesquisa desenvolvida pelos institutos, no que se refere a recursos naturais já utilizados, os valores perdidos somam-se à utilização de um Planeta Terra e meio. Em 2018, todo o estoque de recursos disponíveis para os 12 meses foi atingido no dia primeiro de agosto. Em 2019, no dia 29 de julho, ano cujos recursos acabaram mais cedo na história. Em 2020, a data foi 22 de agosto – o pequeno atraso com relação aos anos anteriores foi justificado pelo isolamento social, que alterou alguns hábitos de consumo.

O estudo também mostra que, caso o mundo adotasse as formas de consumo do Brasil, seriam necessários dois Planetas Terra. Quando a análise é voltada para os Estados Unidos, um total de sete Planetas seria necessário. “Não há nada mais essencial na natureza do que a diversidade” defende o professor Lindberg, refletindo sobre isso.

As reflexões que ficam com relação a isso são “qual a diversidade que vemos a nossa volta?”, “o que estamos fazendo de errado?”, e, acima de tudo, “como fazer certo?”.

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Nalva Dos Anjos
Nalva Dos Anjos
2 anos atrás

Parabéns Alan Cavaliere.
Você é um excelente jornalista.

Lindberg Nascimento Júnior
Lindberg Nascimento Júnior
2 anos atrás

Muito bom texto. Necessário disseminar.