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Tem um sentimento – ou, talvez, melhor dizendo – uma atitude que muito me intriga: é o transbordar. Às vezes, uma sensação é tão grande e intensa que só dentro de nós não cabe, precisando ocupar espaços e desaguar no mundo: uma grande cascata catártica. É assim que nascem os símbolos.

Símbolos são esses elementos que dizem muito mais do que aparentam a uma primeira vista displicente ou desinteressada; é como se um grão de areia contivesse todo o universo. Estando em todos os cantos e, desbravadores como são, passam por todas as barreiras e alcançam nosso mais protegido íntimo. E assim como se originam da inquietação de alguém, criam esta mesma sensação em quem está do outro lado.

Podem estar em telas, textos, materiais, formas, objetos, gestos, e até pessoas. Sim, pessoas podem ser símbolos vivos, ícones, e ter mais força para movimentar uma sociedade do que para mover um carro com o freio de mão abaixado. E é natural que com tamanho modelo diante de nós, tenhamos a vontade de segui-lo e tomar suas palavras e atitudes como exemplo, afinal, que grande ser é aquele à frente, capaz de despertar tantos sentimentos?

Mas isso é extremamente perigoso; nós somos tão falhos e contraditórios. Devemos, minimamente, ter o cuidado de não seguir inconscientemente uma outra pessoa e tudo que ela diz; a sociedade é tão complexa e repleta de variáveis… É muito imaturo e mostra o quanto estamos frágeis quando simplesmente deixamos a palavra do ícone nos levar.

Se não acredita em mim, olhe a sua volta, ou talvez em seu íntimo, se esse for o caso. A quantos ícones nós damos atenção sem nem ponderar o que está sendo dito? Sim, vou “bater nessa tecla” diversas vezes e sempre lembrar que todos nós somos humanos, e portanto podemos mudar de opinião, vivemos realidades diferentes, e temos as mais diversas motivações.

E o que é uma celebridade, senão uma pessoa que alcançou, por algum motivo, um grau de destaque na sociedade? Isso pode ser ótimo: que bom é ter alguém que nos represente e em quem queremos nos espelhar. Mas e se essa pessoa faz o contrário? Se, ao invés de prestar atenção no meio em que vive e ser uma liderança por um mundo mais justo, ela usa do poder que tem para construir seu castelo de privilégios?

E por pior que essa pessoa seja, o que nos leva a continuar endeusando-a, ignorando completamente nossas dores e o real problema, por uma esperança desesperada?

Chantal Mouffe fala muito sobre o sentimento no âmbito político, a consequência de agir inconscientemente e nos deixar liderar por pessoas que tentam manipular nossos sentimentos pelos mais vis propósitos. E o que seria o político, senão tudo e o tempo todo? Que pessoas são essas que colocamos em posições de poder? Isso pode dizer mais sobre nós do que sobre elas.

E por quê, ou melhor, para que não reavaliamos nossas escolhas? Qual o propósito de traçar uma linha reta e seguir independente das curvas que aparecem no caminho? Onde isso tem nos levado? Qual o preço que se paga por fixar um símbolo como mote de tudo a se desenrolar? Mais de 525 mil mortes, como presenciamos?

Estamos vivendo (se é que um dia já não estivemos) em um mundo de performance, onde o que importa é a pretensa imagem, o set de filmagem, escondendo todo o backstage, claro. O político não tem um plano de governo, tem uma imagem de poder; a “artista” não precisa ser mais que medíocre em seu trabalho, porque o que importa é a capacidade de ter um público fiel.

As relações deixam de ser sobre o conteúdo, passando a importar a visibilidade que isso proporciona e o quanto nossos sentimentos são intensa e rapidamente acionados. Se não for assim, não serve.

Mas, quando colocamos ícones em um pedestal e lá os deixamos, com a vazia esperança de que todos os problemas se resolverão, abdicamos da ação (que pode ser cansativa e frustrante, até), mas também nos tornamos propensos a receber as mais dolorosas amarguras.

Então, eu torno a perguntar: o que é que nos faz não querer saber da origem de nossos sentimentos? E por que não refletimos sobre o papel desses ícones? E ainda, para que continuar dando visibilidade a eles?

Qualquer peso que venha por se conscientizar é menor e mais temporário que abrir mão de nossa vida ativa e cidadã.

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