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Caros leitores, na coluna de hoje começarei contando a vocês um “causo”:

Eu caí da bicicleta. Caí bonito. Imaginem a cena.

Fui entrar na guia rebaixada do consultório, errei o ângulo e a velocidade para a peripécia e, então, como consequência, a roda da bicicleta prendeu no meio fio. Resultado: a bicicleta freou bruscamente, e eu, constatando a primeira lei de Newton, de que “todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele” continuei em movimento, voando ao encontro da calçada pelo princípio da inércia.

Pois bem. Entre ralados, inchaços, o susto e a dor, constato que “ok, ao que parece, todos os ossos estão no lugar. Felizmente está tudo bem.”

Aos poucos, uma pequena multidão de boas almas foi se juntando em minha volta e entendendo o que tinha acabado de acontecer. Me diziam: “meu deus! Está tudo bem?”, “caramba, deixa que eu te ajudo”, “me dá sua bolsa”, “calma, senta aqui um pouquinho…você está pálida”, “deixa que eu carrego sua bicicleta”, etc.

Eu apenas repetia: “estou bem”, “obrigada, foi só o susto. Estou bem”. E eles, não convencidos, seguiam: “mas você tem certeza que está bem?”, “não quer uma água?”, “respira”, “não, vem cá, senta um pouquinho”, “realmente está pálida”…

Resumindo a ópera: todos sabiam que eu não estava bem. Inclusive eu. E eu seguia repetindo estupidamente: “Obrigada gente, estou bem, podem ficar tranquilos, está tudo bem. Obrigada.”

Por que estou contando tudo isso a vocês? Vamos juntos: estava eu ali, usando todas as minhas forças para pateticamente dizer que estava tudo bem. Enquanto isso, todo o meu corpo denunciava o contrário. E, convenhamos, eu não estava enganando ninguém.

Acredito que, a olhos atentos, existe uma denúncia muito mais profunda aí: estamos disfarçando relativamente bem (?) – alguns um pouco mais, alguns um pouco menos – mas bem, BEM MESMO, não estamos. Nesse momento, creio que não é exagero generalizar que dificilmente alguém pode inflar o peito e dizer que genuinamente está bem. “Estar bem” é incompatível com o que estamos vivendo coletivamente. Especialmente no Brasil.

Leitores, eu sinto muito ao dizer isso. Sinto mesmo. Mas não estamos bem. Estamos sobrevivendo – aliás, nem todos estamos, e, mesmo os que estão, estão precariamente, com graduações disso dependendo dos privilégios que cada um tem ou não tem acesso.

Escrever esse texto dói. Mas preciso fazê-lo. Tornou-se hipocrisia para a psicóloga aqui utilizar esse espaço para escrever apenas sobre o viés individual do sofrimento psíquico no consultório. Aliás, o maior desejo e procura por consultas psicológicas, contraposta pelos desligamentos cada vez mais frequentes pela incapacidade de arcar com o pagamento das sessões é mais uma evidência de que nosso sofrimento psíquico é agudo e coletivo.

Nossa dor é agora mais compartilhada do que nunca. Já o era há muito tempo, mas agora há um escancaramento. É imprescindível olhar criticamente para o caos que nos entrelaça neste limbo comum. Estamos todos ralados, assustados, machucados. E, a muitos de nós, falta também ar, comida, educação, fonte de renda e um teto.

Em 1981, Gabriel García Márquez escreveu um livro brilhante, denominado “Crônica de uma morte anunciada”. Em sua genialidade, Márquez constrói um texto ao melhor estilo latino, disfarçando, em uma escrita leve, denúncias profundas.

Ao longo de 177 páginas, o leitor se vê preso e incrédulo na descrição do caricato assassinato de Santiago Nassar. Na trama, Ângela é devolvida por seu marido após a noite de núpcias; ela não era mais virgem. Acuada pela família, Ângela, então, acusa Nassar como seu sedutor e culpado do escândalo, e, para passar pano na situação e “restaurar a honra da família”, Pedro e Pablo, irmãos de Ângela, resolvem assassinar o dito cujo.

A trama já está toda descrita no título. A morte de Nassar foi mais do que anunciada. Pedro e Pablo performam uma conduta amadoramente caricata, quase como se pedissem para que alguém os impedisse. Mas ninguém o faz. Uns acham ser brincadeira; outros acham que não há perigo eminente; outros até intervém, mas de modo demasiadamente superficial; alguns querem mesmo é Nassar morto. O resultado final é a morte do personagem, que, na não intervenção, tem toda uma comunidade como cúmplice do crime. Mas que ainda é encarado por todos como uma grande fatalidade.

Percebem onde quero chegar?

No dia anterior a escrita deste texto perdemos 3.869 brasileiros para o novo coronavírus (via JHU CSSE COVID-19 Data). Enquanto isso, em um país que já foi referência em seu sistema de vacinação, temos que lidar com o vergonhoso dado de que aqui, menos de 5% da população já foi completamente vacinada ( Our World In Data ).

Nunca a morte esteve tão constelada quanto neste momento. Estamos todos caindo e vivemos o que vivemos pelo motivo mais nefasto possível: o descaso. Nossa situação não pode ser encarada como uma fatalidade, pois é um projeto político. Essa morte, assim como a de Santiago Nassar, foi mais do que anunciada. E, talvez, por ser óbvia demais, caricata demais, a deixamos passar.

Repito. Não estamos bem, estamos resistindo; mas há um paradoxo aí, pois para efetivamente resistirmos e colocarmos um freio nesse massacre coletivo precisamos sentir nossa dor, implicarmo-nos nela, achar qual é o nosso lugar.

Ao dizer incansavelmente que está tudo bem, continuamos condenados ao efeito denunciado e ironizado da morte anunciada. E estamos nesse lugar, minimamente, desde 2018.

No fim das contas, estou doída, mas aliviada. Agora que minha dor se tornou concreta, que se fez presente no meu corpo e em minhas palavras, posso olhá-la com mais carinho. Posso parar de disfarçar que ela existe.

Leitor, você está olhando e cuidando de sua dor?

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Christiane Hoffrichter
Christiane Hoffrichter
3 anos atrás

Ótima colocação.Realmente, só está vendo e realizando, quem passa pela dor de alguma forma. Somente o ser humano que é humano. E está difícil viver, pensando que está tudo bem. Não está. Está dolorido, pesado, angustiante, triste. E a luz no fim do túnel, quando aumenta um pouco, logo fica bem pequenina, quase desaparecendo. Vivemos uma monta russa de sentimentos.