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A aprovação do PL 490/07 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no dia 23 de junho, gerou muita revolta entre povos de várias etnias indígenas. De lá para cá, pouco nos foi acrescentado em esperança de que esse retrocesso, de alguma forma, fosse impedido. O parecer do ministro Edson Fachin, apresentado por ele aos demais ministros do STF na semana passada,  trouxe à luz argumentos contrários ao marco temporal, dando fôlego aos Indígenas e todos que os apoiam e defendem.

O texto do PL 490 apresenta perdas e ameaças que podem ser irreparáveis aos indígenas. Sabemos que, se aprovado, a demarcação de terras não será mais realizada pela Funai, e sim pelo poder legislativo (câmaras dos deputados e dos senadores); o problema é que a Funai demarca terras indígenas após análise antropológica, histórica e ecológica de cada caso, é um processo técnico e burocrático, definido pelo decreto 1.775 de 1996.

A demarcação não é imediata, segue protocolos rigorosos e possui várias etapas até ser concretizada. Se a demarcação passa a ser votada como qualquer outro projeto de lei, deputados e senadores votam de acordo com os interesses de seus partidos, de suas bancadas, e quiça por seus próprios interesses. E sabendo que a bancada ruralista é forte nas duas casas, já é previsível que as demarcações podem ser prejudicadas. Triste e revoltante!

Outro ponto problemático no texto do PL 490, talvez o mais coercivo, é o chamado “marco temporal”, que obrigará os indígenas a comprovar posse da terra em que vivem datada de 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição Federal foi aprovada. O grande problema é que poucas aldeias tiveram posse concedida nesta data ou em data anterior. Além disso, a posse sem documentação, mesmo com comprovações técnicas, como as exigidas no decreto 1.775/96, de nada valerá. Isso significa perdas reais de territórios. E para onde vão os que perdem seus territórios? O que será feito com essas terras?

Desde 1988, com a aprovação da Constituição Cidadã, a garantia de proteção aos povos de origem tornou-se lei nacional, por isso este PL está cravado na inconstitucionalidade. O projeto também pode facilitar o contato e até interferência com aldeias isoladas, se houver “interesse da União”, colocando em risco o resguardo da diversidade étnica-cultural.

Se não pudesse ser pior, outras políticas públicas estão andando no sentido de facilitar a grilagem, o garimpo ilegal, o desmatamento. Do enfraquecimento da Funai até os projetos de leis, o cerco fica cada vez mais apertados para os indígenas. Fora o PL 490, outros projetos intensificam a política anti-indígena, que vem se mostrando mais intensamente na gestão Bolsonaro. Dentre eles, o PL 3.729 de 2004, que facilita o licenciamento ambiental para empreendimentos em geral, o PL 191 de 2020, que torna livre a mineração em território indígena, e o PL 510 de 2021, que facilita e legitima a grilagem de terras.

Todo esse cenário foi denunciado no Dossiê Internacional de Denúncias dos Povos Indígenas, publicado em agosto pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Neste documento, todas as ameaças são relatadas, explicadas e confrontadas pela voz de lideranças de várias etnias. O marco temporal, inconstitucional, presente no PL 490 é sem dúvida a maior ameaça, mas está longe de ser a única. Invasões de territórios, conflitos, assassinatos, são alguns dos problemas denunciados  neste dossiê. A APIB vem protagonizando as mobilizações em prol dos indígenas, inclusive registrou, também em agosto, um documento de denúncia contra o governo Bolsonaro diretamente no Tribunal de Haia.

Estamos diante de um retrocesso enorme dos direitos dos povos indígenas do Brasil. A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, especificamente o parágrafo 15 nos lembra que:

“Os povos indígenas têm o direito coletivo e individual de possuir, controlar e usar as terras e territórios que eles têm ocupado tradicionalmente ou usado de outra maneira. Isto inclui o direito ao pleno reconhecimento de suas próprias leis e costumes, sistemas de posse da terra e instituições para o manejo de recursos, e o direito a medidas estatais efetivas para prevenir qualquer interferência ou abuso destes direitos.”

Se há algum interesse da União, deveria ser justamente o de proteger essas sociedades. O caso do PL 490/07 vai contra todo um processo de reflexão nacional e internacional sobre o assunto, colocando em risco a vida individual e coletiva dos indígenas. Além disso, abre brechas para mais um episódio de etnocídio no Brasil, dada a importância do território na construção da identidade social.

Território, pessoas, relações, instituições e significados se entrelaçam e formam seres sociais, individuais e coletivos, que herdam hábitos, costumes, crenças.  Como a modernidade no Brasil foi um processo “goela abaixo” para os povos indígenas, o direito às suas raízes culturais é quase sagrado, quando existe em nós respeito e humanidade.

A falta de empatia e acolhimento aos povos tradicionais resulta inclusive da forma como aprendemos sobre eles: fomos levados a aceitar a ideia de que a história do Brasil começa com o “descobrimento” de nossas terras pelos portugueses. Como se antes disso não houvesse aqui vida humana, pensante e social. Essa versão simplista e unilateral, já vem recebendo suas merecidas críticas e atualizações de vários estudiosos da história do Brasil. Aos poucos vamos desconstruindo esses paradigmas coloniais e eurocentristas.

Nas escolas, professores e autores de livros didáticos também já problematizam essa questão. Um termo que outrora era tão natural aos nossos ouvidos, passa a ser criticado a ponto de cair em desuso e até indicar um erro de percepção de contexto histórico. Outros termos como “achamento”, “conquista” e “invasão” vão tomando espaços nas aulas de história.

Essa discussão é fundamental para nos lembrarmos do essencial: antes dos portugueses, haviam aqui inúmeras sociedades, generalizadas e nomeadas num batismo vertical como “Índios”. Essas sociedades eram diversas, e cada uma tinha sua própria cultura, sua própria identidade, seu próprio ritmo de desenvolvimento. Massacradas durante a colonização, os povos indígenas foram marginalizados, criminalizados, rotulados à inglesa como primitivos.

Esse processo todo afetou a vocalização das questões indígenas por eles mesmos, fazendo disso um problema de Estado, importante para a democracia e o respeito aos direitos humanos de nossos povos originários. Afetou também a representatividade desses que já foram maioria por aqui. No que diz respeito a políticas de proteção, a Constituição de 1988 e a demarcação de terras indígenas, válida desde 1996, foram momentos de absoluta importância para a democracia brasileira.

Na mata, os indígenas firmam suas identidades, reforçam seus hábitos e prosseguem com suas culturas, mesmo em paralelo com a modernidade. E é aqui que queríamos chegar desde o início: os povos indígenas estão em protesto, mas sem representação suficiente nas câmaras legislativas – onde os ruralistas imperam – suas vozes ficam para fora dos espaços de governo, e para que tenham seus direitos resguardados, precisam da ação e atuação de frações sociais que estão fora dos limites de suas aldeias.

A consciência sobre esse tema é fundamental para coligar movimentos diversos em prol dos povos indígenas, e essa consciência ainda é embrionária. Considerando a atual onda de ideologias políticas de extrema direita a la Brasil, temo pelos indígenas, temo pela falta de apoio, de mobilizações, de uma frente que se manifeste contra este projeto tão danoso aos povos originários, à natureza e ao nosso jovem e ainda frágil Estado de Direito.

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