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Durante os meses de junho e julho, acompanhamos diversas manifestações Brasil afora contra a PL 490, projeto de lei protocolado em 2007 pelo então deputado federal Homero Pereira. A PL 490 altera diretamente o Estatuto do Índio, de 1973, e prevê, principalmente, alterações nas regras de demarcação de terra. A luta pela posse de terra das comunidades indígenas é histórica. E para que uma história seja contada, é importante que comecemos – adivinhe – do começo.  

O objetivo desta matéria é abordar a demarcação de terras indígenas no Brasil. Penso e caio no questionamento de como fazê-lo sem um panorama histórico. Com o incessante fluxo de informação que nos acomete diariamente, fica fácil de esquecer que tudo tem um início. E para esta jornalista e contadora de histórias, os meios jamais justificarão os fins; mas com certeza, os esclarecem. 

O BRASIL INDÍGENA

Segundo dados fornecidos pela Funai, quando o território que conhecemos como brasileiro foi tomado pelos europeus, a população originária somava três milhões de indivíduos do litoral ao interior. Já no estudo “Sociedades Indígenas e a Ação do Governo”, lançado em 1996 pela Presidência da República, estima-se que aqui viviam cerca de cinco milhões de habitantes. Alguns outros documentos chegam a uma estimativa de 10 milhões de pessoas habitando o território. Os números são hipóteses traçadas por estudos indigenistas, mas não são exatos. 

Darcy Ribeiro, reconhecido antropólogo, indigenista e historiador desta terra, narra em seu livro O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil que no ano de 1500, um milhão de indígenas habitavam só o litoral. Mais ou menos a população de Portugal da época. Era muita terra e muita gente vivendo nela. Povos diversos, de diferentes troncos linguísticos, de caráter cultural distinto.  

Em meio a escravidão predominantemente indígena no primeiro século de ocupação, mas não inexistente nos próximos; dizimação em massa frente à guerra biológica travada a partir do primeiro contato com aqueles que traziam doenças do velho continente; e cativeiro religioso voltado à conversão católica, o número de indígenas caiu drasticamente ao longo dos séculos.  

A ausência de registros e documentação acerca dos povos originários no Brasil Colônia é prova histórica da negligência direcionada a esses grupos. Não há dados demográficos de diversas áreas e períodos para que seja possível traçar um número exato das pessoas que aqui viviam antes da chegada dos europeus. O que sabemos, no entanto, é que hoje, de milhões ocupando um extenso território, existem 817.963 indígenas no Brasil, segundo o censo de 2010 do IBGE. Isso equivale a menos de 1% da população brasileira, ocupando 12,2% do território nacional. 

INTEGRAÇÃO E CIVILIZAÇÃO

Povos indígenas manifestam-se contra o PL 490 em marcha na Esplanada dos Ministérios.
Povos indígenas manifestam-se contra o PL 490 em marcha na Esplanada dos Ministérios. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Quando falamos de terra no Brasil, falamos de disputas e corpos invisíveis. A terra é a protagonista. O seu potencial extrativista, as riquezas que abriga e que só esperam o momento de entrar na máquina do capital, brilham como ouro em leito de rio. Em paralelo, as comunidades que habitam aquele território, os trabalhadores do campo, que não veem a terra como um recurso, mas como princípio básico de existência.  

Quilombolas, populações ribeirinhas, pesqueiras, e principalmente, comunidades indígenas passam a ser antagonistas que surgem como obstáculos ao referido progresso ditado pelo sistema em que estamos inseridos. A terra possui valor inestimável. Os corpos que a habitam, não. 

 O lugar do indígena no Estado brasileiro foi revisto desde a Colônia (1530-1822). Posteriormente, o Império (1822-1889) e República (1889-) vêm com medidas que visam rever o tratamento em relação aos povos originários. O que antes era um posicionamento de extermínio, passa a ser um projeto de integração.  

“A República vem com a ideia de proteger, de civilizar, mas esse modo de civilizar é o que nos traz estranheza dentro das aldeias. Transformava o indígena em um agricultor rural, desvalorizando completamente as formas de vida cultural e histórica”, relata o antropólogo Danilo Kaingang.  

O Estatuto do Índio, de 1973 – a principal norma sobre os direitos dos povos indígenas no país – trazia como principal objetivo integrar todo e qualquer indígena à sociedade majoritária. A estratégia, chamada de integracionista, carrega o caráter colonizador característico da ocupação social-política brasileira, voltado para um apagamento étnico e a normatização cultural. O indígena seria considerado cidadão apenas se inserido e integrado “à civilização do país”.  

Até 1988, o indígena no Brasil era considerado incapaz “de exercer pessoalmente os atos da vida civil”. Sua tutela caberia ao Estado, que deveria dar condições para que evoluíssem a um estágio cultural e econômico maior, para então fazerem parte da sociedade. “O indígena era uma criança que dependia de alguém para ser conduzido a um estágio de civilização. E esse alguém eram os agentes do Estado”, explica Danilo.  

O antropólogo esclarece que esses agentes, chamados de chefes de posto, agiam dentro das terras indígenas juntamente com lideranças locais, dominando as comunidades e fechando-as para o acesso público. “O indígena foi reduzido a um miserável dentro da aldeia, dependendo de um prato de comida que os representantes do Estado ofereciam para eles. Não se busca o desenvolvimento pleno, com habitação, com atendimento à saúde, educação, para que se tenha uma sociedade harmônica”, conta o antropólogo. 

Com a Constituição de 88, cai a tutela indígena, que passa a ter sua capacidade civil reconhecida. É também afirmada a autonomia desses povos, o que garante direito à cidadania, cultura, educação, saúde e desenvolvimento econômico. Além do direito ao território. A Constituição dita que a extensão e localização de uma TI (terra indígena) não cabe à conveniência do Poder Público, mas à ocupação tradicional. Na teoria, as terras ocupadas pelas comunidades nativas são anteriores à existência do Estado, portanto, um direito originário. Deveria ser o reconhecimento de um direito preexistente.  

Para o antropólogo Danilo Kaingang, a Carta Magna seria “a palavra da República escrita”, uma forma do não indígena firmar suas determinações. “Desde 1500 todos os acordos com os povos indígenas não foram respeitados em nenhum momento. A Constituição vem firmar mais um acordo com os indígenas, e nos últimos anos, essa palavra vem sendo rasgada. É o que sempre desconfiamos do não indígena. Não tem palavra, não cumpre com a gente os acordos firmados”, afirma. 

Os Kaingang são um dos povos mais numerosos do Brasil. Segundo dados do PIB, Povos Indígenas do Brasil, no século XVII foram registradas presenças no curso superior do rio Uruguai; no século XVIII ocupavam extensas florestas do alto Uruguai, desde o extremo oeste ao leste, além do oeste de São Paulo, terras do segundo e terceiros planaltos do Paraná e Santa Catarina, e toda a faixa acima das bacias dos rios Piratini, Jacuí e Caí, no Rio Grande do Sul. Hoje, estão distribuídos por 32 territórios indígenas, a maioria demarcados, em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nas palavras de Danilo Kaingang, “num cantinho daquilo que era seu”. 

A POSSE E O USO DA TERRA

O desmatamento fora de terras indígenas é 2,5 vezes maior do que dentro delas.
O desmatamento fora de terras indígenas é 2,5 vezes maior do que dentro delas. Foto: Pok Rie/Pexels.

Para falar de terra indígena, é preciso mencionar a posse e uso da terra. Essa é uma questão que vem de exploração histórica, desde o período colonial. A dizimação das populações indígenas locais sempre esteve ligada à ocupação, apropriação e distribuição do território na mão de poucos. Território para quê? você deve estar se perguntando. Para exploração da terra como recurso econômico – eu e a história respondemos.  

A ideia de latifúndio vem lá de trás, assim como a grilagem, que anda juntinho da compra, disputa e monopólio de terras. O agronegócio como conhecemos não é novidade em terras tupiniquins. O conflito de territórios no Brasil vem do interesse agrário pela extração da riqueza natural aqui presente. Cana-de-açúcar, café, algodão, soja. Um país tropical, de clima favorável para plantio, marcado por uma história sangrenta, senhor de um dos maiores genocídios registrados e não reconhecidos do mundo, cujo sangue derramado irrigou os campos e alimentou os cofres públicos e particulares.   

A demarcação de terras indígenas, atual e retrospectivamente, no Brasil, também é um conflito de interesses. De um lado, comunidades tradicionais que vivem em comunhão e sintonia com a natureza, respeitando e acolhendo seus ciclos, rompendo o viés exploratório. Do outro, a expansão do agronegócio, cuja bancada no Congresso Nacional vem crescendo ao longo dos anos, e da mineração, além da ação de garimpeiros e madeireiros ilegais, construção de barragens e hidrelétricas.  

Para a assistente social Gilza Kaingang, os indígenas são os verdadeiros donos da terra e os principais guardiões da floresta. Em relatório divulgado pela ONU em março deste ano, conduzido pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO), os números falam por si só: na Amazônia, 45% das florestas intactas pertencem a territórios indígenas; o desmatamento fora de terras indígenas é 2,5 vezes maior do que dentro. Apesar dos fatos, Gilza defende que não há uma contrapartida da sociedade. “Não deveríamos nem estar nesta luta. O reconhecimento [do direito indígena] deveria ser da sociedade como um todo”, afirma.  

A PL490, aquela citada no início deste texto, considerada como o processo mais importante do século sobre a vida dos povos indígenas, se constitui como uma demonstração da arbitrariedade da sociedade como um todo frente à luta dos povos originários.  

Organizações e líderes envolvidos na causa mobilizam a comunidade indígena e não indígena em nome da defesa dos direitos que estão em jogo. A APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, junto de suas organizações de base, está mobilizada para reivindicar direitos e promover atos contra a agenda anti-indígena, em curso no Congresso Nacional e no Governo Federal.

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