Chile, 2019. A carícia mucosa outrora orgástica converteu-se em arritmia cardíaca, caracterizada pelo desesperado “necessito obter aquela informação”.
Um deslize. Possível nova enfermidade. Insegurança sexual. Não descansaria enquanto não soubesse a resposta para as minhas perguntas.
“¡Andate a UNACESS, del Hospital San Borja Arriarán, diles que eres trabajadora sexual!”, foi o incentivo que recebi de Sofía Devenir, historiadora, artista compositora integrante da banda travesti “Las Indetectables” e trabalhadora sexual. Incentivo para não precisar pagar rios de dinheiro nos exames de detecção de infecções sexualmente transmissíveis.
No Chile, as políticas de saúde pública deixam muito a desejar. Quem espera bom atendimento e eficiência na prestação de serviços, precisa pagar um preço alto. Pesquisei em muitos laboratórios o quão alto seria para me tranquilizar de que não portava HIV, Sífilis, ou as Hepatites B e C.
O montante para os exames variava de $40 mil a $120 mil pesos. Na época, mil pesos chilenos equivaliam a algo próximo de R$6,50. Apenas um laboratório, felizmente o que cobrava 40 mil para a realização dos quatro exames, não exigia guia de solicitação médica para a prestação de serviços. Uma consulta médica, a depender da clínica, também tinha o preço variado: de $10 mil a $90 mil pesos.
É dizer: pelo particular, a melhor das opções me custaria R$260.
A sugestão de Sofia, ir a uma das Unidades de Atenção e Controle em Saúde Sexual, UNACESS, foi a única opção de gratuidade possível, e eu precisei mentir para obter o acesso a essa política. Sustentar essa mentira, porém, me custou o constrangimento de ter que dizer muitas verdades.
Perguntaram-me nome, nacionalidade, número de identificação nacional, endereço de residência, razão pela qual eu estava residindo no país, se vivia só ou acompanhada, se eu estudava ou trabalhava – e com o quê tinha a ver o estudo e o trabalho –, se eu tinha ou não um parceiro fixo e qual o nome desse parceiro, sua nacionalidade, se residia no Chile ou não.
Uma mulher de jaleco, de semblante sério e certa obstinação, insistia nas perguntas e anotava com detalhes tudo o que eu dizia. Me senti levando uma geral da polícia, tendo que tirar a roupa, agachar e tossir para que uma pessoa que nunca me viu na vida acreditasse em mim.
Depois de vencida a etapa do interrogatório, a mulher me apresentou uma espécie de termo de consentimento, para que eu declarasse estar ciente de que aquelas informações ficariam sob os cuidados do poder público, e de que o exame que eu estava prestes a fazer tratava-se de um anti-HIV de terceira geração, cuja confiabilidade do resultado, de acordo com o documento, apontava para uma janela imunológica de 90 dias.
Isso quer dizer que, até 90 dias antes da coleta do meu sangue, o exame apontaria o resultado com precisão. Depois disso, não haviam garantias, eu poderia estar infectada e a amostra ser lida como “não-reagente”. Além disso, o resultado do exame poderia demorar até um mês para ficar pronto, pois os laboratórios públicos tinham uma alta demanda de amostras para avaliar.
Quem trabalha cotidianamente com a prática sexual sabe o quão ineficaz um exame de terceira geração pode ser. Sífilis, hepatite ou qualquer outra infecção pareciam estar fora de cogitação naquele lugar. Eu, mesmo assim, decidi tentar.
Assinei o documento e retornei para a sala de espera. Fiquei contemplando o vazio preenchido por bancos de plástico e cartazes informativos colados nas paredes, alguns feitos à mão e outros produzidos digitalmente. Tentei procurar certo conforto naquela paleta de cores educativa. Não sei se consegui.
Assim que a enfermeira me chamou para fazer a coleta, uma sensação estranha me habitou. Fui levada para uma sala que servia como uma espécie de arquivo, de almoxarifado. Havia muitas caixas espalhadas pelas prateleiras e pelas mesas. A enfermeira me disse para sentar de frente para uma delas e esticar o meu braço ali, sobre uma mesa de escritório.
Fiquei com um nó na garganta, mas ainda assim a obedeci. Ela rapidamente higienizou suas mãos e, sem luvas, abriu a gaveta, retirou a seringa dali e me mostrou que aquela agulha, extremamente grossa, era a única que tinha para extrair meu sangue.
Inerte, eu comecei a acreditar que tudo aquilo, toda a precarização na estrutura do lugar e no tipo de atendimento feito, era uma punição pensada. E mais, a paranoica possibilidade de que aquela seringa e aquela agulha já tinham sido usadas em outras pessoas me percorria de maneira perturbadora e asfixiante.
“Pare. Respire fundo!”, eu pensava.
Quanto mais aquela agulha me penetrava, mais seca e pesada se tornava a minha garganta. Para o meu azar (ou sorte, vai saber), não saía uma gota de sangue sequer. A enfermeira, insistente, me picou algumas vezes. Três vezes no braço direito e duas vezes no braço esquerdo. E nada.
Me lembro de ela ter chamado uma médica, que veio do andar de cima ajudá-la. A médica, sim, estava com luvas e propôs a utilização de uma agulha mais fina. Mas aparentemente não tinha no local.
No fim, todo aquele pesadelo resultou em um grande fracasso. Fui para casa com dores nos braços e não hesitei em procurar pelo laboratório que cobrava $40 mil pesos. Lá, não me fizeram muitas perguntas e me entregaram o resultado de quatro exames em 15 minutos, todos eles de quarta geração, cuja janela imunológica de precisão do resultado calculava-se em até 21 dias antes da coleta de sangue.
A sensação de vertigem, multiplicada por certas angústias existenciais, adquiridas com essa e com outras experiências, foi o que mobilizou o meu desejo de escrever esta coluna. “Vertiginosa Carne” é dedicada a toda pele já tocada por uma sexualidade destemida e dissidente.
Hoje, falo em primeira pessoa, pois quero que você saiba que sou um ser humano vivo, sexualmente ativo e curioso.
E é com essa curiosidade que quero te aproximar da expressão sexual, da arte erótica e dos movimentos autogestionados de trabalhadoras e trabalhadores sexuais. Quero te informar sobre políticas de acesso a saúde, educação e trabalho para as mais diversas sexualidades. E quero também te lembrar que muitas delas foram conquistas, frutos de combate aos longos anos de estigma e exclusão sexual que ainda ecoam em muitos de nós.
Sou brasileira e vivi um ano no Chile. Meu olhar se desloca pelos tempos e espaços, mas não se esquece de suas origens.
Entre uma visceralidade rebelde e uma ética cidadã, quero te trazer para o campo sensorial do conhecimento empírico e transcendê-lo, associando-o com informação científica e estatística.
Do salto agulha em corda bamba, quero te levar a um pouso em terra firme e, quem sabe, para um mergulho, onde prazer e desprazer coexistem, numa insurgência de consciência e responsabilidade para viver o sexo de maneira livre.
Você me acompanha nessa?