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O Brasil é um dos países com a legislação mais completa sobre exploração sexual no mundo. Casos incluindo crianças e adolescentes são amparados pelo ECA, no artigo 244-A, pela Constituição Federal, no artigo 227, pelos artigos 213, 214, 217, 218 e 234 do Código Penal e pelas leis nº 8.072/90, 11.829/08, 12.015/09 e 13.441/17.

A bem consolidada legislação, no entanto, contrasta com a realidade de 500 mil vítimas de exploração sexual infantojuvenil por ano no país, o que coloca o Brasil em 2º lugar no ranking mundial, segundo panorama organizado pelo Instituto Liberta. Ainda, um estudo realizado pela Childhood Brasil, em 2019, apontou que esse número, por mais alarmante que seja, corresponde a apenas 10% dos casos, considerando que a maioria deles não é notificada às autoridades.

Para Eva Degler, gerente de programas e relações empresariais da Childhood Brasil, a quantidade de leis não impede que a exploração sexual aconteça porque há uma resistência em se cumprir a legislação e isso acaba influenciando na forma com que as pessoas enxergam esses crimes.

“É comum ouvir pessoas dizendo ‘denunciar para quê?’ não vai dar em nada’”, conta ela, “é preciso que a justiça seja feita para que a sociedade comece a acreditar que denunciar dá resultado, que crimes desse tipo devem ser punidos, e que não podem ser considerados como algo normal”, completa.

Ela ainda diz que é a partir das denúncias que as sociedades civis, como a empresa em que trabalha, e demais profissionais da assistência social podem apoiar crianças e adolescentes vítimas dessa realidade, atuando em conjunto com a polícia, o judiciário e demais órgãos.

A exploração sexual infantojuvenil pode ser denunciada pelos números de emergência 100 ou 181, pelo número 190, pertencente ao Centro Integrado de Operações de Defesa Social (Ciodes), pelo contato com a Polícia Militar e/ou Conselho Tutelar da região, ou, finalmente, pela Delegacia Virtual do Ministério da Justiça.

A DESUMANIZAÇÃO COMO CAUSA DO PROBLEMA

Na música “Geni e o Zepelim”, Chico Buarque canta a história de uma prostituta que é explorada sexualmente desde a infância e por isso é humilhada na cidade onde vive. A forma na qual a mulher é tratada muda quando um invasor chega a tal terra e diz que não roubará a cidade com uma condição: Geni ter relações sexuais com ele. Sabendo disso, os moradores imploram para que a prostituta aceite o pedido e começam a tratá-la bem.

Apesar de todas as humilhações, Geni aceita a condição para salvar a cidade. Ao amanhecer, com o invasor já longe, os moradores voltam a cuspir e a bater na mulher porque, para eles, ela só tem valor na cama. O ciclo da exploração sexual funciona de forma parecida, segundo Kelly Melatti, conselheira do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS).

“A exploração sexual faz com que haja uma cultura em que a criança e o adolescente sejam vistos como objetos na nossa sociedade. Eles são colocados como coisas quando são abusados, quando são abandonados e quando deixam de ser prioridade no desenvolvimento de políticas públicas”, diz ela.

Em contradição à realidade explicada por Kelly está O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece que pessoas entre dois e 18 anos de idade não devem “[…] ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão […]”.

A desumanização da criança e do adolescente está presente não apenas em atrocidades como a violência e a exploração sexual, mas também em pequenas atitudes praticadas pelos adultos. Dentre elas, por exemplo, dizer que o filho “não sabe de nada porque é pequeno” ou não respeitar as escolhas do mesmo por considerá-lo incapaz de tomar decisões.

Essas ações tendem a interferir na percepção que crianças e adolescentes têm de si mesmos como sujeitos capazes de discernir situações comuns das anormais e isso, de acordo com Eva Degler, é benéfico para o sistema de exploração sexual infantojuvenil.

“Em um trabalho de conscientização sobre a exploração sexual é importante destacar que a criança e o adolescente são pessoas, seres pensantes que merecem ser respeitados. Além disso, a escuta também é muito importante na rede de proteção; a vítima deve ser ouvida em um espaço acolhedor”, explica a gerente.

OS PERFIS DAS PESSOAS EXPLORADAS SEXUALMENTE

Historicamente, ser pobre e negro no Brasil é sinônimo de uma vida marcada por violências. A partir do nascimento, já se sabe que terminar o Ensino Superior será mais difícil; que será o alvo preferido dos tiros e, no caso de mulheres, que serão desacreditadas regularmente em diversos campos da vida. Há proteção para essas pessoas no Brasil?

Segundo relatório do Ministério da Saúde produzido entre 2011 e 2017, a exploração sexual infantojuvenil atinge um perfil específico no país: das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, 84,9% são meninas e 45% das vítimas totais são negras.

Além do gênero e da cor, a vulnerabilidade social também é fator determinante para que pessoas se tornem alvos da exploração sexual.

“Crianças e adolescentes que estão em uma situação de falta de proteção social ficam mais suscetíveis à situação de um adulto as comercializar, por exemplo. Esse aspecto conversa com a pobreza do país”, explica Eva.

Ela conta que já ouviu muitas histórias sobre as variáveis que rodeiam a exploração sexual: “Uma vez, um pai de família nos contou que começou a vender uma das filhas para cuidar das outras sete. Em outro momento, quando estávamos fazendo uma pesquisa sobre o crime nas rodovias, um caminhoneiro comentou a exploração sexual contra uma menina de 14 anos; ele disse ‘Não fiz nada de errado porque quando fiquei com a menina, ela já não era mais virgem. Então, já era adulta, já sabia o que estava fazendo’.”

A falta de educação em ambas as situações narradas por Eva apresenta-se como ponto chave na realidade de exploração sexual no Brasil. A legislação, como já mencionado, existe; mas entre a teoria e a prática o abismo é grande.

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