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Gilda Maria é conhecida pelas pessoas como uma mulher cheia de vida. A costureira anda pelo bairro onde mora desejando bom dia, distribuindo sorrisos e dando conselhos. Toda essa vivacidade vai embora quando Gilda precisa encher a dispensa: “Quando eu vou ao supermercado eu sinto desespero, indignação, tristeza”, conta. 

Segundo a Organização para a Alimentação e Agricultura, das Nações Unidas, a FAO, os preços mundiais dos alimentos bateram recordes este ano. Os números mostram isso: o índice de preços dos produtos básicos que mais circulam no mercado global teve média de 140,7 pontos em fevereiro, frente aos 135 de janeiro. Não bastasse o aumento no segundo mês do ano, em março o mesmo índice aumentou 12,6%, chegando a 159,3 pontos. O último cálculo, referente ao mês de junho, indicou uma queda, totalizando 154,2 pontos, mas que ainda é insuficiente para encher as despensas da população.

No Brasil, a situação não é diferente. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado pelo IBGE, aumentou de 0,47% em maio para 0,67% em junho, indicando maior taxa para o mês desde 2018. A inflação específica para o setor de alimentos e bebidas aumentou 0,80% no mês passado, configurando o maior impacto no aumento do IPCA.

Quem mais sente essa variação são as pessoas de baixa-renda, que agora veem o café e o óleo de cozinha se tornarem inacessíveis como a carne. Gilda é uma profissional autônoma, acostumada a economizar por não ter um valor fixo mensal em conta, mas as privações alimentares às quais tem se submetido são atípicas.  

“Eu tive que abrir mão de muita coisa. Não estou conseguindo comprar derivados de leite sem lactose e sou intolerante. Até algumas frutas saíram do meu carrinho, como a graviola e a banana, que era uma fruta básica e hoje está custando R$ 10 o quilo”, diz a costureira.  

Gilda mora em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, porém, a indignação dela ecoa por todas as regiões do Brasil, que voltou ao Mapa da Fome.  

VOLTA ATRÁS NA SEGURANÇA ALIMENTAR

O Brasil é destaque na produção de grãos, frutas e gado a nível global. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Empraba), o café, a laranja, o milho e a soja, só para citar alguns itens, ocupam espaços importantes na vitrine do país para o mercado internacional.  

A produção desses alimentos só perde destaque nessa vitrine para as barrigas com fome dos brasileiros. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em dezembro de 2021 retrata bem isso: 32 milhões de pessoas no país pularam uma refeição porque não tinham condições de comprar comida, e 55% de indivíduos comeram menos do que o estômago pedia, para economizar. 

Um passo atrás na história nos mostra que, não há muito tempo, a situação do Brasil em relação à alimentação era de melhora. Entre 2002 e 2013, a quantidade de pessoas em situação de subalimentação caiu 82%, o que, segundo a FAO, só foi possível por meio de ações contínuas do Governo Federal. 

Dentre elas, destacam-se a maior quantidade na oferta de alimentos, o aumento da renda das pessoas mais pobres através do programa de Acesso à Renda, e o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), colocado em prática para criar, monitorar e fiscalizar os projetos do Governo Federal no combate à fome e o relacionamento da União com organizações da sociedade civil, para fortalecer a segurança alimentar no país. 

O GOVERNO BOLSONARO, O FIM DO CONSEA E A FOME NO BRASIL

Era 1° de janeiro de 2019 em Brasília quando o então deputado federal Jair Bolsonaro deixava para trás os anos de mandato para os fluminenses e declarava que daquele dia em diante governaria em prol de todos os brasileiros. Nesse dia, o recém-empossado presidente assinou a Medida Provisória 870.  

O documento colocava em ação uma das propostas mais comentadas por Bolsonaro durante a campanha: o plano de extinguir ministérios e órgãos que, para ele, não tinham motivo para existirem e ocupavam lugar grande no orçamento da União. O Consea entrou na lista de corte com o apoio de 299 parlamentares. Foi um dos primeiros atos do mandato de Bolsonaro, o que diz muito sobre a posição do atual governo sobre a importância da segurança alimentar no Brasil. 

Apesar da exclusão do Consea Nacional, seus órgãos municipais e estaduais continuam funcionando. Porém, sem a orientação do conselho federal, que era o responsável por estabelecer planos de ação contra a insegurança alimentar. Quatro anos se passaram e os dados mostram que tem muita gente precisando dessa articulação.  

A última coleta realizada pelo CadÚnico identificou mais 1,8 milhão de famílias em situação de extrema pobreza entre janeiro e fevereiro deste ano, número 11,8% acima do registrado em 2021. As pessoas inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais são as que mais precisam do auxílio do Governo Federal para alimentação, educação e moradia, três direitos previstos na Constituição. 

Esse auxílio não é garantido instantaneamente; pessoas solicitantes precisam aguardar a vez em uma lista de espera, que é atualizada pelo Ministério da Cidadania, de acordo com o orçamento da União. 

Durante o Governo Bolsonaro, o valor liberado para emendas parlamentares, dinheiro utilizado por deputados federais e senadores para realizar projetos em suas cidades, triplicou. Os parlamentares não precisam dizer com o que vão gastar o valor, que deve chegar a R$ 35,6 bilhões neste ano, segundo a Associação Contas Abertas. Enquanto isso, milhões de brasileiros passam fome.  

ORGANIZAÇÕES CIVIS FAZEM O QUE PODEM

Frente à situação, ONGs se movimentam para levar comida a quem precisa. Os membros do Instituto Misturaí começaram a distribuir quentinhas por Porto Alegre no início da pandemia e continuaram o projeto, nomeado Amparaí, devido ao aprofundamento da fome no país. 

“A pandemia agravou a situação. A desigualdade sempre existiu e o descaso com a economia nesses dois anos, com ausência do Estado nas políticas voltadas ao trabalhador, principalmente aos mais pobres, com certeza corroborou para a volta do Brasil no mapa da fome”, opina Adriana Queiroz, vice-presidente do Instituto.  

Pelas ruas da capital gaúcha, Adriana vê apenas uma possibilidade para melhoria no cenário atual: ações das autoridades competentes. “Se não houver políticas públicas sérias voltadas à segurança alimentar, vai ser difícil um futuro sem fome. Taxação das grandes fortunas, reforma tributária. Tem muita coisa que o próximo governo deverá abraçar. Não se pode deixar tudo nas costas da sociedade civil”. 

Valéria Burity acompanha e participa da luta de sociedades civis pelo direito à alimentação adequada desde 2002. Atualmente secretária-geral da FIAN, a advogada especialista em nutrição vê a falta de comida no prato do brasileiro para além do arroz e do feijão. 

“É através da alimentação que nos constituímos como gente e é através da alimentação que conseguimos energia para viver e para celebrar a vida. Uma alimentação adequada nos garante saúde para vivermos em plenitude. Quando nos é negado o acesso a uma alimentação de qualidade, nos é negada não só a saúde, mas a própria vida e muitas possibilidades”. 

A falta do que comer afeta a capacidade das pessoas de pensarem além da próxima refeição. Uma campanha em combate à fome realizada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2020 destacou que uma criança de 1 ano que ingere menos calorias diárias do que a quantidade recomendada pode ter consequências nos sistemas neurológico, imunológico e cognitivo a longo prazo. 

Para Valéria, a longevidade dos problemas trazidos pela fome deve ser combatida com planejamento das autoridades competentes. Mas de acordo com ela, não é isso que vem acontecendo. 

“O Consea era um canal em que as políticas públicas referentes à nutrição eram propostas e discutidas pela sociedade civil. Sem a compreensão dos diferentes contextos não se fazem políticas públicas efetivas. Para entender o cenário é fundamental ouvir os sujeitos de direito. É essa voz que foi calada”, completa a especialista.

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