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Em 02 de dezembro de 2020, Maria Isabel Pezzi Klein, juíza federal do Rio Grande do Sul, concedeu liminar para uma haitiana vir ao Brasil sem a necessidade de visto. A princípio, a embaixada teria 30 dias para fornecer o documento, porém, uma fala do embaixador do Brasil no Haiti, Marcelo Baumbach, foi considerada para a mudança do pedido na justiça. Segundo o ConJur, Marcelo afirmou que não existem condições técnicas de expedição de vistos e que os funcionários da embaixada brasileira trabalham com a possibilidade de evacuação.

Esse não foi um caso isolado; outros aconteceram no sul do país chegando a trazer 183 haitianos sem a documentação necessária, somente com a autorização judicial cedida pela 6º Vara Federal de Porto Alegre. Muitos deles afirmam estar tendo problemas com o agendamento no site da Organização Internacional para as Imigrações (OIM) e alguns, inclusive, afirmam ter pago cobranças indevidas para a obtenção dos documentos.

Fautene Thanis, de 42 anos, mora há nove anos no Brasil e tem três pessoas da família – a filha, a sobrinha e a sogra – ainda no Haiti, batalhando para conseguir vaga no site da OIM. “O visto está acabando com a gente, é só sofrimento”, desabafa. Suas familiares fazem parte de um grupo de 48 pessoas que acessaram a Organização dos Haitianos que Vivem no Brasil e tentam começar uma vida nova aqui.

Apesar da solicitação de emissão de vistos estar passando por problemas, João Jarochiski Silva, professor da Universidade Federal de Roraima e pesquisador das migrações internacionais e do refúgio, afirma que “o Brasil não tem uma tradição de grande irregularidade migratória e o país procura vários mecanismos de facilitação. Criaram-se normas infra legais que cuidam de certas nacionalidades, inclusive da haitiana, para que não houvessem muitas dificuldades em relação a isso”.

Ainda segundo João, existem dois problemas com relação a não regularização: o primeiro seria a falta de direitos que a pessoa encontra; e o segundo seria com relação ao Estado, que não consegue realizar políticas públicas efetivas para esse grupo.

Sobre os vistos, o Itamaraty afirmou em nota que “os pedidos de visto passam por tramitação prévia no centro da OIM, que inclui apresentação de documentos originais e entrevistas presenciais. Após essa fase, os pedidos são repassados à Embaixada do Brasil no Haiti, que decide definitivamente pela concessão ou não dos vistos. Além disso, para inibir fraudes, o software que gerencia o agendamento de horários é administrado diretamente pela sede da OIM, em Genebra (Suíça)”.

Já sobre as cobranças indevidas, o órgão informou que são cobradas taxas pelos serviços da OIM, mas que nenhum pagamento tem ligação com o Brasil. O journal48 entrou em contato com a OIM e com o Ministério da Justiça (responsável pela migração e refúgio), mas não teve respostas até o fechamento desta reportagem.

Site da OIM para agendamento de vistos para os haitianos.
Falta de vagas para agendamento de vistos no site da OIM. Haitianos usam esse meio para conseguir as entrevistas.

MIGRANTE X REFUGIADO

A condição de refugiado e de migrante é diferente. O migrante é uma pessoa que se desloca para estudar, trabalhar ou por outros motivos, ou seja, não está saindo do seu país por conta de ameaça, perseguição ou morte. Na condição de migrantes, as pessoas podem voltar aos seus países e continuam recebendo proteção da terra natal.

Diferentemente, as pessoas refugiadas têm o contexto migratório forçado, como explica o professor da UFRR. “A pessoa é refugiada em virtude de uma perseguição, ou de um dado temor de perseguição. Em razão de raça, nacionalidade, pertencimento a um grupo social, religião e opinião política”, explica ele.

João também relata que o Brasil expandiu o entendimento de refúgio para casos de grave e generalizada violação de direitos humanos “é uma situação em que não fica tão clara a dinâmica da perseguição, mas é uma situação de muita vulnerabilidade que gera muita violência”.

A 6ª edição do documento ‘Refúgio em números’, realizado pelo Observatório das Migrações Internacionais, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e pelo Comitê Nacional para os Refugiados, apontou que, em 2020, o Brasil recebeu 6.613 pedidos de refúgio de haitianos. Esse número corresponde a 22,9% do total de pedidos feitos ao país. O que justifica tantas solicitações é uma dívida histórica que deixou o Haiti em profunda falta de estrutura, que muitos desconhecem.

DA INDEPENDÊNCIA À EXTORSÃO,

Uma narrativa construída com base nos estudos do programa de pós graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

O Haiti foi o primeiro país da América Latina a conseguir a emancipação, assim como a segunda república a ser formada. O país tem 215 anos de independência, mas para conquistá-la teve que pagar aos colonizadores uma alta quantia em dinheiro.

Em 1492, o navegador espanhol Cristovão Colombo chegou à ilha, mas foi sob o comando da França que ela passou a ser chamada de São Domingos e se tornou a mais rica do Caribe. A “pérola das Antilhas” (como ficou conhecida) chegou a produzir 75% do açúcar do mundo e liderou a venda de diversos produtos durante o século XVIII.

A ilha gerava muito lucro aos colonizadores, mas tudo isso às custas de um violento sistema escravocrata. No final do mesmo século, um terço do comércio dos escravos do Atlântico ia para São Domingos, que chegou a ter 450 mil escravos.

A revolução Haitiana começou em 1791, impulsionada pelos ideais de igualdade e liberdade da Revolução Francesa. A rebelião foi tão grande que resultou na abolição dos escravos em todas as colônias francesas.

Após a abolição, liderados por Toussaint Louverture, os ex-cativos passaram a realizar ataques contra os franceses que estavam na ilha que revidaram e levaram Toussaint para a França, onde morreu vítima de má nutrição e tuberculose.

Os ex-escravizados não desistiram da luta e com um novo líder, Jean-Jacques Dessalines, retomaram a luta contra os franceses, desta vez com êxito. Em 1º de janeiro de 1804 a ilha de São Domingos se tornou independente e Jean-Jacques se tornou o primeiro governante do país. Sob seu governo a ilha passou a ser chamada de Haiti e foi ordenado que todos os brancos fossem condenados à morte. Estima-se que de três a cinco mil brancos tenham morrido no que ficou conhecido como “massacre do Haiti”.

Desalines liderava a revolução haitiana
Representação de Desalines durante a revolução haitiana / Reprodução: Manuel Lopes; UFJR.

DEPOIS DA LUTA VEM O DESASTRE

Cerca de 170 mil pessoas ficaram no país para ajudar em sua reconstrução, mas a guerra rendeu ao Haiti a rejeição dos outros países, e a falta de reconhecimento diplomático dificultava o desenvolvimento das plantações e estrutura perdidas.

Se aproveitando da situação, o rei Carlos X, da França, ofereceu a Jean-Pierre Boyer, então governante do Haiti, um acordo de reconhecimento diplomático. O problema é que o país teria que reduzir em 50% as tarifas de importação e deveria pagar uma indenização aos produtores franceses pelas terras e pelos escravos que haviam perdido, no valor de 150 milhões de francos (equivalente a 22 milhões de dólares atualmente), que equivalia à receita anual do país, e deveria ser pago em cinco parcelas. Caso o Haiti não aceitasse o acordo, continuaria isolado diplomaticamente e seria atacado por frotas francesas que estavam a postos.

PAGAMENTO À FRANCESA

Para pagar a quantia, o Haiti começou a depender de ajuda alheia. A primeira que recebeu foi de um banco francês, que deu ao país 30 milhões de francos (valor da primeira parcela), mas teria que deduzir seis milhões em comissões bancárias. O dinheiro nem ao menos saiu da França, da instituição foi direto para governo. Mesmo assim, o Haiti continuava devendo os seis milhões de francos deduzidos em comissões.

A dívida era alta, e o país estava se enrolando cada vez mais. A situação piorou em 1844, quando o lado leste do Haiti se declarou independente e formou a República Dominicana. Os empréstimos foram crescendo e a receita nacional ficando cada dia mais comprometida.

Após 122 anos pagando por sua independência o Haiti conseguiu finalmente se ver livre dos custos franceses. Mas esse não foi o fim dos problemas.

A SITUAÇÃO HOJE

Localizado em uma área de instabilidade de placas tectônicas, o Haiti sofre com diversos desastres naturais, causado pelos tremores de terra. O último deles aconteceu em agosto do ano passado, de magnitude grave de 7,2, e deixou 2,1 mil mortos e 30 mil desalojados.

Situação do Haiti após o desastre do ano passado.
Foto tirada por haitianos após o terremoto de agosto de 2021 / Reprodução: ONG Associação dos Haitianos que Vivem no Brasil.

Além disso, o país enfrenta muita pobreza. Segundo a Organização das Nações Unidas para alimentação e Agricultura (FAO) o país já está com 6% do território perdido por processos erosivos. Desde o último desastre natural, haitianos estão com dificuldades de encontrar comida e abrigo, e dados da ONU indicam que cerca de 980 mil deles estão em situação de insegurança alimentar aguda.

Fautene Thanis confirma que a realidade do país é complexa; a população vive de doações, de ajuda humanitária e do dinheiro enviado por familiares.

“A situação da nossa família no Haiti é de passar fome, lá não tem emprego, não tem nada para sobreviver. Essa é a situação lá. Eles estão dependendo de nós, sem o que a gente manda, eles passam fome”, conta.

Na política, os haitianos tem o Poder Legislativo desde 2020, quando as eleições foram canceladas. Jovenel Möise – ex-presidente assassinado no ano passado – governava por decretos e tentava sancionar uma Constituição regida por aliados, o que fez com que os grupos armados fossem às ruas. Segundo a Unicef, 8.500 pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas por conta de disputa armada.

A pandemia também gerou sérios problemas no país mais pobre do hemisfério Ocidental. Com a crise econômica, muitos haitianos que vivem em outros países perderam o emprego, e com isso deixaram de enviar dinheiro para os familiares. Essa é mais uma das dificuldades vividas por Fautene:

“O que nós ganhamos aqui, temos que usar para pagar conta, pagar aluguel, o que sobra não dá para mandar para o Haiti. Aí dá um sofrimento na gente. Ficamos pensando na família lá. Por isso que estamos pedindo ajuda”, relata.

Como ajudar?

A ONG Organização dos Haitianos que Vivem no Brasil recolhe doações de medicamentos e alimentos para os haitianos. Para mais informações clique aqui.

Já a PUC-SP conta com apoio jurídico para migrantes e refugiados desde 2019. Para mais informações clique aqui.

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