Na edição atual do reality show Big Brother Brasil (BBB22), o participante do camarote Tiago Abravanel explicou para alguns colegas de confinamento um pouco dos problemas em relação à gordofobia no sentido social:
“Uma discussão que tem tido bastante e as pessoas precisam cada vez entender mais é que gordo não significa falta de saúde. Apesar de existir preconceito às pessoas muito magras, a gordofobia é uma questão de condição social. Uma pessoa magra não tem problema em viajar de avião”, exemplifica ele, além de falar sobre as sessões plus sizes nas lojas de roupa.
Como colocou Abravanel, para muito além da questão estética, devemos focar que ser gordo ou magro não define saúde ou a falta dela. A própria OMS define o conceito de saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças”.
Ao analisar essa definição oficial, a nutricionista Daiana Parisato diz que “o sobrepeso e a obesidade divergem do estado homeostático físico, já que pressupõem um processo inflamatório crônico e por isso não podem ser conciliados com saúde. Porém, assim como inúmeras patologias visíveis pela estética recebem compostura da sociedade, percebo uma isenção de um tratamento análogo uma vez que nem sempre a causa do sobrepeso é simplista, má nutrição e indisciplina, como pessoas leigas asseguram”, completa a profissional.
Parisato explica, ainda, como preconceitos intrínsecos podem ser mascarados de preocupação com a saúde, já que corpos magros com transtornos alimentares, que são visíveis assim como o dos corpos gordos, não são alvos de preocupações por se aproximarem do padrão estético estabelecido.
“Nessa mesma atmosfera de preocupações falsas, encontramos vários discursos semelhantes como o tema da ‘romantização da obesidade’, que está atualmente em ascensão e me soa alarmante, uma vez que o ato de exigir respeito e espaço na sociedade nunca foi uma romantização”, diz a nutricionista.
“A apologia à obesidade, contudo, apresenta-se em formato de negligência e muitas vezes ignorância. Quando se ignora a realidade alarmante que a obesidade representa num geral e faz-se acreditar que é uma realidade saudável, estamos diante de um problema de saúde pública que pode incidir em aumento dos casos. Para estes casos, cabe sim a definição de apologia. Respeito não se discute, inverdades, entretanto, sim”, complementa ela.
DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS
A atriz Mariana Xavier fala abertamente sobre assuntos como aceitação corporal, relacionamento abusivo e saúde mental e, para ela, o imaginário coletivo atribui essa ideia de que o corpo gordo não é saudável, não é ativo e não é capaz de realizar atividades comuns do dia a dia.
No entanto, “o que as pessoas precisam entender é que, ao olhar para a figura estética de alguém, não somos capazes de detectar os índices de glicose, triglicérides e colesteróis [que determinam, de fato, a saúde física]”, explica.
Segundo ela, que já foi acusada de fazer apologia à obesidade diversas vezes, a luta anti-gordofobia é para diminuir os preconceitos, aumentar a acessibilidade e os direitos sociais. E ela completa: “quando as pessoas dizem que estamos romantizando a obesidade, logo imagino uma coisa que nunca vi acontecer: pessoas gordas incentivando outras a serem gordas também“.
O contrário, por outro lado, acontece. De acordo com a atriz, romantizações e incentivos perigosos à magreza são frequentes em espaços diversos, inclusive em programas de alcance nacional como o BBB.
Nesta edição do reality, três participantes ressaltam, mesmo que inconscientemente, inúmeras questões de má nutrição que podem influenciar negativamente o público consumidor e que, muitas vezes, não são tão visíveis. São eles: o ator e cantor Arthur Aguiar, que demonstra excesso alimentar pós restrição; a modelo Bárbara Heck, que passa por privações alimentares sequenciais; e a criadora de conteúdo digital Jade Picon, que faz sacrifícios alimentares para obtenção da estética.
Mariana Xavier fez uma publicação nas redes sociais chamando atenção do público para o que acontecia dentro da casa. “Da mesma forma que não se pode julgar a saúde de uma pessoa apenas pela estética do corpo dela, também não posso afirmar que o Arthur, a Bárbara ou qualquer pessoa tenha um transtorno alimentar”, explica ela, lembrando que esse é um diagnóstico que é e deve ser feito por uma equipe multidisciplinar.
“Mas realmente são comportamentos que acendem uma luzinha amarela, principalmente, para quem viveu algo parecido ou já conviveu com pessoas que passaram por isso. Quando falamos disso num reality que atinge milhões de pessoas, o perigo é normalizarmos ainda mais essa situação. Inclusive, os vários comentários que eu recebi só mostram que a minha preocupação faz sentido porque teve gente falando ‘eu também sou assim’ ou ‘chupar limão nunca fiz, mas agora vou fazer’”, completa a atriz.
Para a nutricionista Daiana Parisato, nenhum dos participantes faz o que faz por mal, eles estão apenas se nutrindo da maneira que acham que devem. “Por isso os enquadro dentro de uma problemática nutricional global, que é realidade também no Brasil: a de sacrificar alimentos em prol de um corpo perfeito ao invés de encontrar o equilíbrio quantitativo e qualitativo destes”, conta.
“Em síntese, visualizo como lição nesse reality a importância da divulgação de uma nutrição eficaz e sustentável para o mundo. Dessa forma, lutaremos a favor da diminuição das proibições e aumento da liberdade alimentar consciente”, finaliza a profissional.
NUTRIÇÃO E FOME
No documentário disponível no YouTube “Muito além do peso”, é possível observar como a má nutrição é extremamente prejudicial para a saúde. Deixando a estética de lado, o filme mostra que ingerir alimentos ultra processados (industrializados) gera fatores muito piores do que “os quilos extras”, como diabetes e colesterol alto, doenças muito perigosas para o nosso bem-estar.
A nutricionista Parisato diz que toda a obesidade é multifatorial e vem a partir de um superávit calórico sequencial, ou seja, consumir sem estratégia alimentos (sejam eles nutritivos ou não), que ultrapassem o gasto energético total (GET), sequencialmente.
“O que acontece é que ao consumirmos alimentos ultra processados, esse superávit vem mais rápido e muitas vezes sem que a gente perceba. Como a indústria de alimentos se baseia em criar produtos com muitas calorias em pouco volume, come-se mais, mas a saciedade é menor. O resultado converte-se em um indivíduo com carência de vitaminas e excesso de gordura corporal”, descreve.
“Dissociar a definição ‘saúde’ de um padrão estético comercial e voltar-se ao que não se vê – nutrientes limpos, alimentos naturais e pensamentos saudáveis – é uma necessidade imediata para reestruturar a vitalidade perdida pela sociedade que se preocupa em satisfazer a indústria ao invés do próprio corpo”, defende a profissional. Em resumo, serão as condutas pensadas de dentro para fora que entregarão real saúde ao indivíduo, e não uma busca inalcançável pelo padrão imposto.
Curiosamente para muitos, mas não para quem entende do assunto, a fome faz parte do quadro de má nutrição onde se encontra a obesidade. Informações da FAO, da ONU e da OMS, indicam que o Brasil voltou a fazer parte do mapa da fome e a insegurança alimentar quase dobrou, considerando que entre 2018 e 2020 a condição atingiu 7,5 milhões de brasileiros; entre os anos de 2014 a 2016, esse número chegava a apenas 3,9 milhões.
Atualmente, 49,6 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar moderada ou grave no país, ou seja, quase 10% da população brasileira não tem o que comer. O dado nos coloca no mesmo patamar do início dos anos 2000.
Segundo Parisato, essa é uma das razões mais comuns do desenvolvimento de compulsão alimentar, que gera indivíduos com sobrepeso diariamente, pois pessoas que crescem no panorama da fome recebem reforços mentais frequentes ligados ao armazenamento de comida para a sobrevivência.
“Muitos conseguem sair do quadro fome com o passar do tempo. Contudo, o cérebro não compreende a realidade de que o perigo eminente passou. Por consequência, continua enviando impulsos mentais de comer a fim de armazenar para outros dias e sobreviver”, afirma a nutricionista.
A Organização Mundial da Saúde, inclusive, estima que aproximadamente 2,6% da população mundial sofre de Transtorno Compulsivo Alimentar (TCA) e o Brasil tem uma das taxas mais altas do mundo, de 4,7%, quase o dobro da média global, sendo mais recorrente entre jovens de 14 a 18 anos.
A realidade, portanto, é de alerta. Da gordofobia pela pressão estética à insegurança alimentar assoladora no país, entendemos que a relação entre pessoas e comida está desestruturada. Sendo a alimentação adequada e suas consequências um direito humano, está óbvia a necessidade de mudança para a garantia da saúde comum.
Parabéns ao jornal, por ter um corpo técnico do nível apresentado nesta reportagem. Isso valoriza essa profissão tão importante para o esclarecimento da sociedade sobre diversos assuntos.
Parabéns para a profissional que conduziu a matéria.
Agradeço pelo comentário! 🙂