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Quando o Babalorixá – Pai de Santo – Adauto Brito do Terreiro AxéYanguí teve a sua primeira experiência com o Candomblé, ainda não tinha tamanho para ver o mundo por janelas altas, mas sabia que aquela reza em família acabaria em festa: “Samba, toques de instrumentos de percussão e o transe aconteciam naturalmente em festejos aos santos e aos orixás, que meus avôs denominavam de nagôs”, conta ele. 

A memória feliz do Pai de Santo existe em paralelo a uma dura realidade que circunda as religiões de matriz africana. Dados mostram que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) recebeu 586 denúncias de intolerância religiosa em 2021 contra 243 queixas realizadas sobre o crime no ano anterior. Um aumento de 141%.

As informações mais recentes do MDH expõem o preconceito contra diversas religiões, mas a aversão às crenças de origem africana é destaque no Brasil. Os fiéis que têm como altar o terreiro, em especial das religiões Candomblé e Umbanda por serem mais populares, encaram a intolerância no caminho da adoração. Como exemplo, há os casos da menina de 11 anos, em 2015, que foi agredida na saída de um culto de Candomblé, no Rio de Janeiro, e dos três terreiros de Umbanda atacados em Sumaré, São Paulo, em 2021.

O temor da perseguição coopera para que São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro, capitais com mais praticantes das religiões, não tenham documentos atualizados de mapeamento dos terreiros, já que, para isso, é preciso que os fiéis digam onde eles estão.

“Parte dos meus filhos de santo têm receio de manifestar a fé por uma questão de sobrevivência. Eu mesmo, enquanto sacerdote, aconselho que eles se resguardem sempre quando forem minoria entre as pessoas porque a vida e a saúde vêm em primeiro lugar. Nossa fé está aqui, não precisa ser dita ou mostrada para ninguém. Eu sei o quanto é importante a exposição por uma questão de representatividade, mas, como eu disse, temos que prezar por nossa vida e bem estar”, conta Pai Adauto.

Pai Adauto é o guia espiritual dos fiéis que frequentam o seu terreiro. Na foto, ele está sentado de pernas cruzadas em uma poltrona do terreiro. Ele veste chapeu, sapatos e camisa de mangas curtas brancos e uma calça azul clara. Ele comenta sobre a intolerância religiosa sobre as religiões de matriz africana.
Pai Adauto é o guia espiritual dos fiéis que frequentam o seu terreiro. Foto: Arquivo Pessoal/ Pai Adauto Brito

É em Vitória da Conquista onde o Babalorixá dá tais conselhos. A cidade fica a mais de sete horas de carro de Salvador, onde está a segunda maior população de fiéis do Candomblé no país, segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda assim, parte das pessoas que seguem a religião vivem com medo de celebrar os orixás.

A UMBANDA É BRASILEIRA, ASSIM COMO O APAGAMENTO DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

No artigo “História da formação e renovação da Umbanda no Brasil: um estudo de caso no terreiro Zambi-Iris, Bocaiuva/MG”, o doutorando em Desenvolvimento Social, Fábio da Silva Gonçalves, e o Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Doutor Daniel Coelho de Oliveira, focam no mistério que ronda a religião desde a sua criação.

Na pesquisa, os autores destacam que a crença se formou a partir da mistura de “Catolicismo, Candomblé, rituais indígenas, entre outros segmentos religiosos” e que o decreto da criação da religião, como compartilhado por muitos fiéis, aconteceu quando um jovem incorporou o espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas.

Em 1908, Zélio Fernandino de Moraes andava muito doente, apresentando sintomas de epilepsia e até ficando paralisado em alguns momentos, e resolveu procurar ajuda médica, marcou horário com padre e benzedeira, mas nada adiantou. Até que um dia decidiu ir a um templo espírita kardecista, a Federação Espírita de Niterói.

Dizem que o espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou em Zélio em 15 de novembro para anunciar que, no dia seguinte, uma nova religião que valorizaria espíritos de pessoas negras e indígenas seria criada. O comunicado se espalhou pelo subúrbio carioca e várias pessoas cercaram a casa de Zélio em São Gonçalo, cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, na outra manhã.

A promessa se mostrou verdadeira quando o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou mais uma vez em Zélio para contar o nome da nova religião, os seus princípios e os seus rituais. Aí se fez a Umbanda, em meio ao povo majoritariamente negro e de baixa-renda, pessoas socialmente marginalizadas no país.

Altar com imagens da Umbanda, flores em arranjo e demais elementos da religião, umas das mais atingidas por crimes de intolerância religiosa no Brasil.
Altar com imagens da Umbanda. Foto: arquivo Pessoal/Pai Flávio Banditt

A exclusão da religião foi uma realidade no início, até que, em 1920, kardecistas de classe média se tornaram líderes dos terreiros cariocas e implantaram uma política de corte em relação às particularidades da crença que eram mal vistas por parte da sociedade. O acontecimento é relatado no artigo “A força social da Umbanda”, publicado no portal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Assim, o que fazia a Umbanda ser o que era foi sendo invisibilizado. Os rituais considerados mais “primitivos” foram descartados e racionalizados e os fiéis foram educados nos princípios da caridade kardecista. A Umbanda foi transformada para ser aceita por quem tinha medo do que não conhecia.

O CONHECIMENTO LIBERTA

O Babalorixá Flávio Banditt nunca temeu os ritos da Umbanda. Quando ainda tinha um ano de idade, sua família saiu de Itabirito, interior de Minas Gerais, e foi viver no Rio de Janeiro, cidade em que a avó já falecida costumava realizar rituais da religião que ele ainda não conhecia.

“Minha família era, em maioria, de origem católica e minha mãe era uma dona de casa com quatro filhos para criar, então não se falava sobre a religião da minha avó paterna”, conta o Babalorixá Flávio. O conhecimento racional do que era a Umbanda levou alguns anos para chegar, mas o subjetivo do menino foi impactado ainda na infância com a imagem de Cosme e Damião.

O Babalorixá lembra emocionado de quando viu as figuras dos santos pela primeira vez: “Eu tinha quatro ou cinco anos quando olhei para a imagem de Cosme e Damião. Foi amor à primeira vista, eu ainda não entendia o que aquilo significava nem que a imagem era da minha vó, mas senti algo diferente dentro de mim”.

A passagem dos anos só aguçou o sentimento que foi descoberto e redescoberto pelas memórias que Babalorixá Flávio desenterrou de sua avó. “Vivi a infância preso dentro de casa, não existia isso de sair, de ter amigos da rua. Quando cresci, decidi que queria conhecer o mundo e parte dele era a história da minha avó com a Umbanda”, explica.

Na foto, um templo de religião de matriz africana, a Umbanda. O Babalorixá Flávio está em primeiro plano, ajoelhado no chão, com roupas brancas. Ao seu lado, um boque de flores, uma vela acesa e imagens da religião.
Babalorixá Flávio dediuca a sua vida para orientar fiéis da Umbanda. Foto: Arquivo Pessoal/Pai Flávio Banditt

Em 1988, o então Flávio, sem o posto de Babalorixá, teve sua primeira experiência mediúnica, que é quando um espírito se incorpora em um ser humano. “Uma preta velha que atendia em casa veio fazer limpeza onde a gente morava porque a minha irmã mais nova sempre teve questões espirituais. Eu observava tudo, quieto, como sempre, em um canto, até que comecei a sentir um peso nas costas e isso começou a me deixar desconfortável”. O Babalorixá continua dizendo que o incômodo se espalhou pelo corpo quando, de repente, ele, tão retraído, começou a interagir com as outras pessoas. A preta velha se aproximou, encostou nele e tudo o que ele sentiu foi paz.

OS TERREIROS NÃO CONHECEM A PAZ E OS BRASILEIROS NÃO CONHECEM OS TERREIROS

P-A-Z, paz. Essa palavra costuma ser usada frequentemente quando um fiel fala sobre a religião que segue. A crença pode trazer segurança em uma realidade de incertezas, ser a resposta para dúvidas existenciais ou a prova de que há algo maior do que a realidade em que habitamos.

Quem acredita em religiões de matriz africana talvez não fuja dessas suposições, mas certamente adiciona palavras menos confortáveis ao falar das crenças. E isso não acontece porque o Candomblé ou a Umbanda são prejudiciais, mas porque o desconhecimento de parte das pessoas sobre eles é.

“Há uma onda de ataques aos diversos terreiros daqui”, desabafa Pai Adauto, “recentemente, tivemos o caso do terreiro de Pai Louro de Oxalá, de um amigo meu, e do AxéYanguí. Ele sempre foi uma pessoa reservada, nunca fez mal a ninguém e sofreu essa violência no seu espaço de fé. Aqui no estado da Bahia, a Casa de Logun Edé também sofreu ataques. Derrubaram os seus objetos sagrados, fizeram um verdadeiro estrago ao espaço”, completa.

No Rio de Janeiro, a história se repete: “Moro próximo ao meu terreiro e na região nunca sofri violência por ser umbandista, mas já senti que fui alvo de preconceito no setor de produção cultural, em que tenho especialização. Ainda hoje sinto que sou meio descartado, colocado de canto por fazer parte da Umbanda. As pessoas têm uma ideia irreal do que é a religião”, comenta o Babalorixá Flávio.

Para entender algo desconhecido é preciso ser apresentado a ele. Como popularizar as religiões de matriz africana no Brasil, onde a principal instituição responsável por promover a cultura afro-brasileira é chefiada por quem é contra ela?

O DESMANTELAMENTO DA FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES

Segundo o ex-presidente da instituição, Eloi Ferreira de Araújo, “o mapeamento busca conhecer a realidade dessas comunidades, criando as condições necessárias para que as políticas públicas cheguem até elas. Além disso, garante a sua preservação cultural e proteção como patrimônio imaterial”.

As palavras de Araújo não conversam com os pensamentos do outro ex-chefe da Fundação, Sérgio Camargo. O jornalista assumiu o cargo em 2019 e foi exonerado no dia 31 de março de 2022, e, durante sua presidência, se destacou não pelas ações em prol da exaltação da cultura negra, mas por ataques contra a própria.

Em 27 de agosto de 2019, o Camargo postou em uma rede social que “A escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes”. Em setembro do mesmo ano, ele classificou o racismo no Brasil como “Nutella” em uma rede social, escrevendo o seguinte: “Racismo real existe nos Estados Unidos. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda”. Já em novembro de 2019, escreveu em uma rede social que “sente vergonha e asco da negrada militante. Às vezes, pena. Se acham revolucionários, mas não passam de escravos da esquerda”.

Além dessas declarações, o ex-presidente da Fundação já comentou diversas vezes ser contra Zumbi dos Palmares, que é quem dá nome à instituição, por acreditar que ele também escravizava pessoas.

Nesse cenário, quem continua a enfrentar dificuldades são as minorias. “Até aqui, muitos de nossos ancestrais escravizados sofreram e morreram para que hoje pudéssemos contar as suas histórias e levar adiante esse legado de fé e saberes ancestrais. Quando o governo deixa de passar informações sobre quem somos e que, na verdade, o nosso culto é de paz, a ignorância cresce entre as pessoas e consequentemente sofremos violência com esse efeito. Enquanto, por outro lado, há um grupo que aproveita desta onda incentivada pelo governo atual para manifestar seu desrespeito e racismo religioso conosco”, destaca Pai Adauto.

Apesar da realidade atual, as religiões de matriz africana e seus fiéis resistem, como pontua o Babalorixá Flávio: “O desmantelamento da Fundação está acontecendo, mas isso não faz a religião agonizar. Até porque orixá é força e ele não permite que isso aconteça. Umbanda é força, Umbanda é caridade, Umbanda é luz. E como o próprio hino da Umbanda diz: avante filhos de fé!”.

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