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Com quase 110 milhões de pessoas declaradas pretas e pardas, de acordo com o último censo do IBGE, o Brasil é o segundo país com maior população negra no mundo, ficando somente atrás da Nigéria. Não é mera coincidência que a ordem do ranking seja essa, já que o país africano foi um dos mais explorados pelo tráfico escravista no período colonial brasileiro.  

Os números que indicam isso ainda não são concretos, mas uma pesquisa realizada pelos geneticistas Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolini, em 2017, revela que o material genético brasileiro oriundo do Oeste Africano – entre Senegal e Nigéria – pode ter sido de duas a quatro vezes maior do que o contabilizado até o momento do estudo. Outro mapeamento genético publicado pelo American Journal of Human Genetics também apontou forte descendência nigeriana na América Latina. 

As consequências dessa ancestralidade repercutem em várias esferas da atual sociedade brasileira, ainda que sejam, muitas vezes, completamente desconhecidas. “A cultura Iorubá [que provém de um dos maiores grupos éticos da Nigéria] que está aqui no Brasil, em diferentes estados, está na nossa linguagem, na nossa comida, muitas vezes na forma como a gente se veste, e está na religiosidade, principalmente no Candomblé”, afirma Carolina Maíra Morais, historiadora, produtora cultural e fundadora da African Pride, que atua na promoção de conferências, exposições de arte e história africana no Brasil e na Nigéria. 

No entanto, segundo ela, alguns fatores contribuem para a pouca relação entre os dois países: o primeiro deles exige que voltemos ao século XVI, no Brasil colônia, quando, em virtude do tráfico, vínculos familiares foram rompidos entre as pessoas escravizadas aqui e suas famílias que ficaram no continente africano.  

Quando as pessoas escravizadas chegavam aqui, eram automaticamente batizadas com um nome português e essa ideia era justamente para que elas entendessem que haviam se tornado outras, que suas personalidades e relações anteriores já não eram mais válidas. Por isso, hoje, quando vamos procurar a história de nossos antepassados, não a encontramos porque não sabemos o nome original deles”, explica Carolina. 

Outro fator destacado pela especialista, também derivado da colonização, é o idioma oficial de cada um dos países. “Na Nigéria, por conta da colonização inglesa, o idioma oficial é o inglês, o que nos distancia linguisticamente das nossas origens”. 

Finalmente e, desta vez, mais atual, o terceiro motivo para a não conexão entre Brasil e Nigéria é a própria mídia. “Qual é a Nigéria que aparece na mídia do Brasil?”, questiona Carolina, “Muitas vezes é a Nigéria do grupo terrorista Boko Haram, da fome, da pobreza e da guerra. Enquanto isso, o Brasil que aparece na mídia da Nigéria é resumido a desmatamento, futebol e Carnaval”, completa.  

PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS 

Rei da Nigéria fala sobre conexão entre o país africano e o Brasil.
Rei Iorubá Joseph Adebayo Adewole, Oba Ajero do Reino de Ijero, em participação no evento no Rio de Janeiro. Foto: Divulgação

Em ambos os lados da relação Brasil-Nigéria estereótipos são reforçados. “Eles são, sim, parte da realidade, mas não a totalidade dela”, afirmou o rei Iorubá Joseph Adebayo Adewole, Oba Ajero do Reino de Ijero, em entrevista exclusiva ao journal48. No último mês da consciência negra, ele esteve no Brasil, junto com a comitiva do Palácio de Ifé, em evento para proporcionar conexões entre os dois países. 

De acordo com ele, a imagem internacional que se tem da Nigéria está muito vinculada à falta de segurança no país que, apesar de verdadeira em algumas regiões, não é a realidade de todo o território. Ao ser questionado sobre os estereótipos brasileiros que existem dentre os nigerianos, o líder confirmou alguns dos já apontados por Carolina Morais, mas garantiu que eles são vistos como traços que unem ambas as culturas.  

“Na Nigéria também nos dedicamos muito às festas, celebrações e ao futebol, então podemos olhar para esses estereótipos como uma coisa positiva, algo que nos une”, explica.  

O objetivo de promover eventos como o do mês passado, para o rei Iorubá, é relembrar as populações brasileira e nigeriana de toda a cultura que compartilham e reforçar aos brasileiros, sobretudo negros, que são bem-vindos na Nigéria, quando quiserem. “Somos irmãos e irmãs e precisamos fortalecer nossa unidade. A Nigéria é a casa dos brasileiros Iorubás e todos são convidados a retornar, se desejarem”, diz.  

Para a historiadora e produtora cultural Carolina, a consolidação dessa união também permite o desenvolvimento de estratégias sociais e culturais nos dois países, mas exige a desmistificação que temos acerca do continente africano como um todo.  

“Nós temos duas Áfricas no nosso imaginário: aquela África tradicional, na qual todas as pessoas vivem em aldeias e têm uma vida muito pacata; e a África da fome, da miséria e da doença. Na verdade, quando você pisa no continente, você descobre que existem muitas outras Áfricas. A gente tem a África que tem a maior hub de tecnologia, que é em Lagos; a gente tem a África que tem a maior indústria de cinema do mundo, que é Nollywood, também em Lagos; a gente tem a África que produziu e produz esculturas em bronze, marfim e madeira, que valem milhões no mercado internacional de arte, dentre tantas outras.” 

ALGUMAS CAUSAS PARA A NÃO CONEXÃO 

Para quem deseja conhecer a Nigéria, um vôo até lá, partindo do Rio de Janeiro, dura sete horas. Isso na teoria. Na prática, a viagem dura 24 horas, já que não existem conexões diretas entre o Brasil e o país africano. A alternativa, portanto, é passar pela África e parar no Qatar, no Oriente Médio, para, então, voltar.  

A inexistência de linhas aéreas que façam esse trajeto – e outros até o continente africano – não é à toa. “Para nós, os países africanos não são opções no cardápio de turismo”, conta Carolina Morais, “as escolhas primeiras são sempre Estados Unidos e Europa e se queremos inovar, vamos para o México, no máximo. Isso porque existe uma ideia de que a relação com a África não é uma via de mão dupla, na qual o intercâmbio pode existir, mas, sim, de que é um território que precisa da nossa doação, da nossa caridade”, completa.  

Além de uma mentalidade interna e racista que desincentiva a relação entre Brasil e Nigéria, existem forças externas que se beneficiam dessa não conexão. Carolina explica que o desenvolvimento das relações comerciais entre os dois países significaria a ruptura do sistema de mercado internacional vigente, no qual o Brasil se relaciona com outras potências.  

A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO PARA O RESGATE DAS ORIGENS AFRICANAS 

Conexão entre Brasil e Nigéria é reforçada por líderes africanos e promove resgate de identidades perdidas pela escravidão.
Carolina Morais e Ajoyemi Osunleye, presidente do Instituto Casa Herança de Oduduwa. Foto: Divulgação

Sancionada em 2003, a lei nº 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras em instituições de ensino no Brasil. No inciso 1º, descreve-se que os currículos escolares devem incluir “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. 

Ainda, o inciso 2º reforça que tais conteúdos devem ser ministrados, em especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras, mas que devem estar presentes no âmbito de todo o currículo escolar. Dezessete anos depois, no entanto, o corpo docente de várias escolas enfrenta dificuldades para colocar a lei em vigor e, em outros casos, a responsabilidade de cumpri-la recai sobre os ombros de apenas um ou dois professores.  

A importância da legislação, para a fundadora da African Pride, é proporcionar um ensino que não conte a história a partir da escravidão. “Antes de chegarem aqui os negros eram proprietários de seus corpos, de sua língua, de sua música e de sua cultura. Eles foram escravizados no meio do caminho, mas eles não nasceram escravos. Isso é uma coisa que precisamos aprender no chão da escola”, afirma.  

Ela completa discorrendo sobre a relevância dessa nova perspectiva de ensino para crianças e adolescentes: “Ninguém quer ser reconhecido como descendente de escravos, principalmente em um momento de formação de autoestima, como o ensino fundamental e médio. Ninguém quer ficar pensando em um passado de dor e sofrimento, mas sim em um passado que traga orgulho e, para isso, precisamos ensinar nas escolas que toda a diáspora negra descende de reis e rainhas que foram escravizados.” 

Finalmente, a mídia, para Carolina, deve colaborar para com essa narrativa alternativa (e mais realista). “Estamos todos muito cansados de notícias repetidas sobre o continente africano que se resumem a guerra, fome e miséria; a gente precisa aprofundar mais isso, mergulhar em outros territórios”, diz. A solução, ela aponta, é se perguntar “quais são as fontes das quais a gente bebe?”, e ouvir o que as pessoas negras têm a dizer, favorecendo o protagonismo de quem, de fato, é sujeito da história. 

DE VOLTA À CASA 

O convite realizado por Oba Ajero do Reino de Ijero, tanto no evento no último mês como na entrevista ao journal48, é uma extensão do programa idealizado pelo rei Ooni de Ifé, chamado “Back to Home” (De Volta à Casa, em tradução livre) e que será lançado no ano que vem.  

“Nossa ideia é reunir as famílias que foram separadas pela escravidão”, explica o rei Iorubá, “queremos levar os filhos brasileiros de Oduduwa de volta para a Nigéria, onde serão recebidos com muita festa e com um novo nome Iorubá. O movimento é para devolver identidades e o sentido de pertencimento, além de potencializar as possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional no continente africano”, finaliza o líder. 

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