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Apesar de ser um direito garantido pela Constituição, a moradia digna não é acessível para boa parte dos brasileiros. De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2019, o déficit habitacional do país era de 5,8 milhões de moradias, o equivalente à falta de moradia digna para a população de todo o estado de Alagoas somada ao Distrito Federal.

Ainda que seja o maior problema, a falta de moradia não é a única questão; obras inacabadas e projetos que nem ao menos saíram do papel significam enormes gastos de dinheiro público, além de não resolverem a situação. Ao procurar o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), o journal48 foi informado de que, atualmente, 84.350 unidades de moradia popular estão paralisadas devido a problemas com construtora, terreno ou prefeitura; outras 37.087 estão acabadas, porém ainda não foram entregues e 3.801 projetos não foram iniciados.

Dados das obras do programa Casa Verde e Amarela, do governo Federal. Fonte: Ministério do Desenvolvimento Regional

“Um imóvel, um espaço, uma terra que está de alguma forma improdutiva e não está exercendo a sua função social é uma violação de direitos em uma sociedade desigual como a nossa”, explica Renato Abramowicz, pesquisador do LabCidade da Universidade de Arquitetura e Urbanismos da USP. “Esse direito à moradia precisa ser garantido, e precisam existir formas de viabilizar isso, o que a gente vê pouco, principalmente nos últimos anos”, completa ele.

Segundo o MDR, em acordo com a fala de Renato, em 2018, foram construídas 529 mil habitações, número 59,4% maior do que o construído em 2022 e que representa uma queda de 314 mil unidades habitacionais.

PANDEMIA E A FALTA DE MORADIA

Com a pandemia da Covid-19, muitas famílias foram viver nas ruas, já que boa parte perdeu o emprego ou vivia na informalidade. Para tentar evitar que tantas pessoas ficassem sem casa, o projeto Despejo Zero se movimentou para juntar o número de famílias que seriam despejadas e lutar pelos direitos delas. 

A Lei 14.216, de 2021, foi criada durante a pandemia e tem como objetivo suspender o despejo ou a desocupação de imóveis urbanos. Ela chegou a ser promulgada, mas, mesmo assim, de acordo com os dados da campanha Despejo Zero, mais de 27 mil famílias foram despejadas desde o começo da pandemia. Além disso, o projeto contabilizou que, entre março de 2020 e fevereiro de 2022, 132.290 famílias foram ameaçadas de despejo no Brasil. 

“A pandemia agravou muito o quadro que já era de emergência habitacional. A crise que era sanitária vira uma crise econômica, que vira uma crise social. No Observatório de Remoções, por algum momento no começo da pandemia, acreditávamos que as remoções iriam parar. Isso em um momento em que ainda não tinha vacina e que ficar em casa era a forma mais segura”, explica Abramowicz. 

À ESPERA DE UM DIREITO

No Brasil, seis milhões de famílias aguardam por uma moradia digna e, enquanto esperam, sobrevivem em construções abandonadas. De acordo com o Despejo Zero, 86% das ocupações estão em terrenos vazios. Nesses locais, as famílias correm risco de vida, já que, normalmente, essas estruturas estão comprometidas e propensas a pegarem fogo. 

Em São Paulo capital, maior metrópole do país e, também, a cidade com maior arrecadação, existem 51 ocupações e, de acordo com a Prefeitura, dez podem desabar ou pegar fogo. Vale lembrar que em 2018 um incêndio de grandes proporções atingiu 24 andares do prédio Wilson Paes, no Centro, resultando em sete óbitos e dois desaparecimentos.

Cinco anos se passaram após essa catástrofe, mas o retrato da cidade de São Paulo continua o mesmo: pessoas vivendo nas ruas ou em ocupações e sem perspectiva de ter uma moradia digna.

“[Ocupar um lugar] é um ato permeado de riscos, tanto de repressão policial, quanto de incertezas jurídicas. Existe uma série de violências e indeterminações em torno do ocupar. Ninguém mora em uma ocupação porque quer, mas porque, diante da situação que vivemos de políticas públicas e de crise econômica, é a forma encontrada para conseguir uma moradia”, diz o pesquisador do LabCidade.

INVASÃO DE TERRAS: UM RESQUÍCIO HISTÓRICO

Povos indígenas manifestam-se contra o PL 490 em marcha na Esplanada dos Ministérios. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Para Renato Abramowicz, a problemática da terra é uma questão fundante no Brasil, já que fomos colonizados e muitas pessoas, em sua maioria negras e indígenas, não tiveram a oportunidade de acesso à terra. “A questão do acesso à terra e as disputas em torno disso é uma permanência histórica nossa, um conflito constituinte deste país”, diz.

Em 1850, foi instituída a Lei de Terras, a primeira a definir a propriedade privada sobre a terra. Antes disso, todo o território pertencia ao rei, porém, depois, foi regulamentado o direito de compra e concessão. Apesar de parecer um processo democrático, a compra dessas terras era realizada em leilões, onde homens brancos, ricos e imigrantes compravam as terras em dinheiro ou em ouro, passando a ter o direito de fazer com elas o que quisessem. 

Pessoas escravizadas, indígenas e pobres não participavam dos leilões. Elas conseguiram algumas terras por meio da posse, ficando conhecidas como “posseiras”, mas isso não lhes garantia as mesmas liberdades de uso e venda do território. Algumas das posses que restaram se tornaram quilombos.

Outro resquício histórico da colonização portuguesa e que ainda acontece no Brasil é a invasão de terras indígenas. Durante o governo Bolsonaro, a exploração ilegal dessas terras triplicou, os dados são relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O estudo apontou que, em 2021, 305 casos de invasão de terras com o objetivo de manter posse do local aconteceram; em 2018, esse número havia sido de 111. Estima-se que, ao menos, 226 terras foram afetadas com as invasões e dentre os povos mais impactados estão os yanomâmis, mundurukus, pataxós, muras, uru-eu-wau-waus, karipunas, chiquitanos e kadiwéus.

O Cacique Karijó, responsável por 12 povos na região do Amazonas, contou ao journal48 sobre a realidade de 750 indígenas que vivem próximos ao rio Sucunduri, diante desse cenário de invasão.

“São sempre invasões violentas. Aqui no sul do amazonas eles invadiram atrás da aldeia e vieram derrubando [as árvores] até que pararam a 300 metros da aldeia. Eles foram lá e tacaram fogo bem próximo a aldeia. O fogo foi queimando tudo, nós temos idosos que não conseguem correr, crianças pequenas, e mães. Eles ficaram todos ilhados em um círculo de fogo. Tem outros [invasores] que já chegam derrubando o que tem e matam tudo que eles vão vendo”, conta o cacique. 

De acordo com ele, agentes do Instituto Chico Mendes (ICMBio), chegaram a atear fogo na aldeia onde eles estavam, e quebraram apetrechos de pesca. 

Os povos originários estão em locais de difícil acesso, muitas vezes sem contato direto com a Polícia Militar, Guarda Municipal ou qualquer tipo de apoio e segurança para prevenir esses ataques. Para Daniel Luis Dalberto, procurador da república e coordenador do Grupo de Trabalho de Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF), falta política de prevenção por parte do governo. 

“O quadro atual é decorrência de falta de política de enfrentamento. Em primeiro lugar, por falta de vontade política mesmo, depois, de estruturação e recursos para que órgãos essenciais como Funai, Ibama, Incra e Icmbio atuem com profissionalismo e eficiência, em políticas permanentes e concatenadas”, explica.

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS, UM DIREITO NEGADO 

A demarcação de terras indígenas é um direito previsto em lei e assegurado na Constituição Federal de 1988. Porém, muitos dos povos originários ainda lutam por esse direito. O cacique Karijó conta que a aldeia esperou por tanto tempo que desistiu e vários de seus membros foram morar na cidade. De acordo com ele, a Funai está há mais de 30 anos sem prestar atendimento ao local. “Nós somos nômades, hoje estamos aqui, amanhã na cidade porque não tem assistencialismo. A gente precisa de educação, saúde e assistência.”

Ele completa dizendo que os grileiros já estão na zona de amortecimento da unidade de conservação e isso gera preocupação, pois os indígenas já passaram por momentos de terror em suas terras. 

O procurador Dalberto explica que o problema da demarcação de terras deveria ter sido resolvido cinco anos após a promulgação da Constituição de 88 e que, apesar do prazo curto e da impossibilidade da resolução do problema nesse período, a demora não é justificável. 

“Nada justifica a demora e o ritmo devagar quase parando ou totalmente parado das demarcações nos últimos governos. Isso, além de violar direitos fundamentais, agrava conflitos fundiários.”

Para ele, a invasão de terras é um processo longo e que está demorando muito para ser solucionado pois contraria o modelo econômico que visa interesses individuais e o lucro acima de tudo.

“É preciso primeiro querer atuar com rigor para impedir invasões e, depois de querer, é preciso dar condições materiais aos que têm obrigação legal de agir”, finaliza.

Entramos em contato com a Funai e com o ICMBio, mas até o fechamento desta matéria, não obtivemos respostas.

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