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Em 22 de abril deste ano, o Decreto nº 10.686 formalizou o bloqueio de R$2,7 bilhões do Ministério da Educação (MEC) para o exercício financeiro de 2021, uma redução orçamentária dos recursos discricionários da Rede Federal de Ensino Superior na ordem de 16,5% em relação à Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020. 

Ao journal48, o MEC replicou a nota de esclarecimento publicada no dia 29 de abril, quando afirmou que o bloqueio ocorrido representava “13,8% para as universidades e institutos federais e reflete exatamente o mesmo percentual aplicado sobre o total de despesas discricionárias, sem emendas discricionárias, sancionado e publicado na Lei n° 14.144 – LOA 2021”. Diante do anúncio, 30 das 69 universidades federais alertaram que não conseguiriam chegar ao fim do ano com o orçamento atual, podendo fechar prédios, atividades essenciais, pesquisas e descartando a possibilidade de retorno presencial este ano.

Na mesma nota, a assessoria de imprensa do MEC confirmou a disponibilização, no início de maio, de mais R$6,1 bilhões por meio da portaria ME n° 5.545, que estavam bloqueados no órgão 9300. A verba, contudo, não é um valor adicional. “Não se trata, portanto, de crédito adicional, pois o orçamento já estava alocado nas unidades, apenas não estava disponível para empenho”. Desse montante, R$2,59 bilhões foram destinados às universidades.

Recursos discricionários dizem respeito à verba que paga as despesas básicas como contas de água, luz, contratos com empresas de segurança, bolsas de pesquisa, alimentação e apoio a alunos carentes, não impactando nos salários e aposentadorias, que são obrigatórios por lei. No entanto, garantir o pagamento dos corpos docentes não é suficiente para manter as universidades funcionando.

Em matéria publicada pelo jornal O Globo no dia 07 de junho, várias universidades compartilharam suas situações. A Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) afirmou que conseguirá manter as atividades apenas até setembro, uma vez que o corte representa três meses de despesas. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) avaliou a necessidade de desativar prédios e serviços, como leitos para tratamento da Covid-19. Já a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), reduziu 869 bolsas de pesquisa e diminuiu o valor das que pagam a assistência estudantil. Além disso, demitiu 307 funcionários terceirizados.

Sobre os R$2,59 bilhões desbloqueados, Edward Madureira Brasil, presidente da Andifes e reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), afirmou ao site G1, no último dia de maio, que “isso dará um fôlego de algumas semanas ou, no máximo, dois meses. A situação é terrível. Estamos tendo que cancelar coisas elementares”.

O cenário de 2021 regrediu o aporte aos patamares anteriores aos últimos 10 anos. Hoje, o recurso disponível é 37% menor, se comparado com 2010, corrigido pela inflação.

O VERBETE “CRISE”

O dicionário Michaelis define a palavra crise, em sua aplicação sociológica, como sendo “conjuntura desfavorável; situação anormal e grave, conflito, tensão, transtorno”. No que diz respeito à educação no Brasil, não existe nada de anormal no cenário acima descrito. O corte de verbas para o ensino público superior não é recente. Desde 2016, a destinação de verbas pelo governo federal para a pasta da Educação tem sido reduzida. E, conforme apresentado no Projeto Fênix, plano de governo do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, investir nas universidades não estava na proposta original.

No documento, o futuro governo prometia melhorar a educação com “o valor que o Brasil já gasta” e “inverter a pirâmide: o maior esforço tem que ocorrer cedo, com a educação infantil, fundamental e média”.

Fonte: Projeto Fênix, página 45.

Das 81 páginas da proposta, sete são dedicadas à Educação. O compromisso firmado no documento é que “é possível fazer muito mais com os atuais recursos” seguindo estratégias educacionais nos moldes do Japão, Taiwan e Coreia do Sul. “Em uma geração, países pobres ficaram ricos”.

No plano de governo, Bolsonaro informa de que forma as melhorias seriam feitas: “o conteúdo e método de ensino precisam ser mudados. Mais matemática, ciências e português, SEM DOUTRINAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO PRECOCE. Além disso, a prioridade inicial precisa ser a educação básica e o ensino médio / técnico”.

Nesse contexto, caberia às universidades “gerar avanços técnicos para o Brasil, buscando formas de elevar a produtividade, a riqueza e o bem-estar da população. Devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e pesquisas com a iniciativa privada. Fomentar o empreendedorismo para que o jovem saia da faculdade pensando em abrir uma empresa”.

A proposta discorria, também, sobre uma mudança no método de gestão, incluindo “a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire, mudando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), impedindo a aprovação automática e a própria questão da disciplina dentro das escolas”.

Segundo Daniel Cara, professor de economia da educação e política educacional na Universidade de São Paulo e membro do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as críticas ao BNCC feitas pelo governo Bolsonaro não dizem respeito à racionalidade econômica, mas sim ao pensamento crítico de ordem moral e religiosa.

“Em muitos aspectos, a reforma proposta por Temer em 2017 enfatiza aspectos que alimentam o bolsonarismo, como neutralizar a violência contra a mulher, por exemplo. São medidas de recrudescimento de uma visão ultra conservadora dentro de uma estrutura neoliberal”.

O professor explica que o que chama de bolsonarismo é uma atualização, no século XXI, do pensamento escravocrata existente no Brasil nos séculos XVIII e XIX. “É um pensamento recorrente da nossa história como sociedade, que só temos coragem de expressar em momentos muito específicos, como na ditadura”, contextualiza.

O Projeto Fênix aponta, portanto, que os rumos que a educação deveria seguir no Brasil valorizam uma educação básica, que investe no raciocínio lógico em detrimento ao pensamento crítico e desenvolvimento socioemocional (“sem doutrinação e sexualização precoce”), com o objetivo de formar futuros empreendedores que possam impulsionar a economia.

ESCOLHAS COERENTES PARA CUMPRIR A PROMESSA

Para tornar a proposta feita em campanha em um plano de governo coerente, Jair Bolsonaro, desde que foi eleito presidente, já nomeou quatro ministros da Educação:

Ricardo Vélez Rodríguez (janeiro a abril de 2019): filósofo e professor, foi indicado por Olavo de Carvalho. Ficou no cargo por 3 meses e 1 semana, uma das gestões mais curtas desde 1985. O ex-ministro caiu após uma disputa entre as alas “ideológica” (dos seguidores de Olavo de Carvalho) e “pragmática” (militares).

Abraham Weintraub (abril de 2019 a junho de 2020): economista. Ficou um ano e dois meses no cargo, tendo saído em meio a polêmicas como o inquérito que apura crime de racismo e o crime e inquérito que apura ameaças a ministros do STF. Em novembro de 2019, sua declaração de que “há plantações de maconha e laboratórios de produção de drogas nas universidades federais” gerou uma condenação à União pela Justiça Federal em São Paulo a pagar uma indenização no valor de R$50 mil à sociedade.

Carlos Alberto Decotelli (26 de junho a 1° de julho de 2020): economista e professor. Chegou a ser nomeado, mas não tomou posse em razão de polêmicas envolvendo seu currículo.

Milton Ribeiro (16 de julho de 2020 – até o presente momento): Pastor da igreja Presbiteriana e professor. Discreto, o atual Ministro coordenou o veto à diversidade no edital do Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) e o repasse equivocado de apenas 65% do valor total da verba destinada aos municípios brasileiros pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Fundeb). Mais recentemente, na CPI do Senado Federal, no dia 01 de julho, foi questionado sobre as ações que a pasta tem tomado para garantir o retorno seguro das aulas presenciais nas escolas públicas, ainda no segundo semestre.

Além dos ministros da Educação, o Governo conta com o Ministro da Economia, Paulo Guedes, cuja visão sobre a educação brasileira está alinhada com o pensamento da pasta. Em vídeo divulgado pelo portal Metrópoles em maio deste ano, Guedes criticou a educação no país: “Vocês estão vendo o que está virando a universidade pública […] Ensinando sexo para crianças de cinco anos, maconha em quantidade, circulação livre. Maconha, bebida, droga dentro da universidade. Estado caótico”.

O próprio presidente afirmou, em maio do ano passado, durante sua visita a Dallas, nos Estados Unidos, que “a maioria ali (nas universidades) é militante. Não tem nada na cabeça, são uns idiotas úteis e imbecis que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais no Brasil”. Declaração que confirma sua percepção de que existe “doutrinação” no ensino público superior.

Diante desse cenário, o estrangulamento do Ensino Superior no país nada mais é que o resultado de um plano de governo estruturado. “Diferente de outros presidentes, Jair Bolsonaro está levando a sério aquilo que ele prometeu e o projeto só não avança porque está encontrando muita resistência”, afirma Cara.

“O projeto Future-se (programa de autonomia financeira da educação superior que começou a tramitar no Congresso Nacional em maio do ano passado), proposto pelo Governo, prevê a privatização e a financeirização, inclusive do terreno, das universidades federais; um reforço à reforma iniciada por Temer, ambas neoliberais. O resultado é formar o cidadão para ser empreendedor”, completa.

“A CRISE DA EDUCAÇÃO NO BRASIL NÃO É UMA CRISE, É UM PROJETO”

Essa era a visão sobre a educação do sociólogo, antropólogo, historiador e político brasileiro Darcy Ribeiro. Para José Murilo de Carvalho, historiador brasileiro, o problema da educação no Brasil passa por um entrave na visão de cidadania entre as classes sociais.

“Seja pela intencionalidade de um projeto consciente, como dizia Darcy Ribeiro, seja o pensamento de José Murilo de Carvalho, que acredita que educação e direitos sociais não se realizam no Brasil porque a burguesia se imagina como cidadã e os demais brasileiros, como cidadãos de segunda classe, fato é que há uma convergência articulada que coloca o Brasil no mesmo lugar: um país onde o atraso não se encerra”, afirma Daniel Cara.

Pilar Lacerda, historiadora, diretora da Fundação SM Brasil e ex-secretária de Educação Básica do MEC, explica que os problemas da educação no Brasil são estruturais.

“O nosso projeto de escolarização foi feito com muito atraso, se comparado com países da América Latina. Ele é fruto de uma mentalidade escravocrata, latifundiária, que se acostumou com uma estrutura desigual”.

Ela conta que viveu pessoalmente um ensino educacional que aplicava uma prova aos alunos que chegavam no antigo quarto ano primário para que pudessem passar para o ginásio (atual segundo ciclo do ensino fundamental). “Nessa época, grande parte do Brasil vivia nas áreas rurais, sem acesso à escola e não conseguiam passar para o ginásio. Esse modelo existiu há sessenta anos, isso é nada para o tempo da história”, explica. Para Pilar, esse é um dos exemplos de que o modelo escolar nunca foi para todos, na medida em que já fazia uma seleção excludente nos primeiros anos escolares. 

Até a Constituição Brasileira de 1988, as escolas podiam expulsar alunos que tinham duas reprovações na mesma instituição. “Mais um mecanismo de subterfúgio para reforçar as desigualdades”. Ela defende que para ter um projeto de educação concreto é preciso entender a dinâmica da desigualdade brasileira. “Se não olharmos para a desigualdade, vamos seguir sempre responsabilizando o aluno ou o professor pelo fracasso, nunca o sistema”.

Segundo ela, “o crescimento do capitalismo bancário e dos fundos de investimento educacionais vem tornando a educação um produto, não um direito. Mas esse mesmo sistema capitalista já compreendeu que precisa de uma mão de obra qualificada que a educação que temos hoje não resolve, por isso, vemos movimentos de empresários em prol da educação. A falta de educação prejudica a economia”.

Além da necessidade mercadológica, outras mudanças nos últimos anos vêm transformando a educação no Brasil, como a implantação de política de cotas, que fez com que as Universidades deixassem de ser majoritariamente ocupadas por alunos oriundos das escolas particulares.

Soma-se a isso, a precariedade nos programas de ensino de instituições particulares que veem a educação como negócio. O resultado é a chegada de uma nova geração nas salas de aula, mais diversa, mais consciente e mais engajada nos estudos.

“É interessante acompanhar o desenvolvimento de alunos vindos de instituições públicas e privadas. Num primeiro momento, existe uma diferença no repertório de texto, mas o nível de esforço para superar é maior nos estudantes vindos das escolas públicas e, no médio prazo, tendem a tornar-se alunos melhores. É uma revolução silenciosa, não tem como controlar essa garotada que está chegando nas universidades. Cai uma Marielle e várias se levantam”, finaliza Cara.

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Caroline Queiroz
Caroline Queiroz
3 anos atrás

Excelente Matéria!! 👏🏻👏🏻