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A educação inclusiva no Brasil por pouco não sofreu um retrocesso em setembro de 2020, de acordo com entidades especializadas no tema. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), conhecida popularmente como “decreto da exclusão”, foi barrada no Supremo Tribunal Federal (STF) e não entrou em vigor.

Em resumo, o decreto propunha que as escolas fossem desobrigadas a matricular alunos com deficiência, além de permitir a volta do ensino regular em escolas especializadas. As mesmas entidades que chamaram atenção para o retrocesso que a PNEE causaria também pontuaram a violação à Constituição por conta da segregação dos estudantes proposta pela iniciativa.

Apesar da derrubada da legitimidade do decreto por parte do STF, alguns redatores da Organização das Nações Unidas (ONU) escreveram, em fevereiro deste ano, uma carta sigilosa ao governo brasileiro pedindo que o presidente revogasse o decreto.

O documento é assinado por Gerard Quinn, relator especial para o direito de pessoas com deficiências, e Koumbou Boly Barry, relatora especial para o direito à educação, de acordo com Jamil Chade, colunista do UOL que teve acesso à carta com exclusividade.

A discussão mais recente sobre o assunto é esta, mas esse tópico gera reflexão há muito tempo, a começar pela diferenciação entre os termos educação inclusiva e educação especial: “a educação inclusiva é uma concepção de organização dos processos educacionais, podendo ser encontrada em escolas especializadas ou no ensino regular. A educação especial é um serviço, uma forma de atender”, afirma Mirian Guebert, professora doutora do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Assegurada no Brasil por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), número 9.394/96 – que pontua em um de seus incisos que “é dever do Estado garantir o atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino” – a educação especial no Brasil tem um histórico antigo.

Segundo Guebert, os serviços foram se organizando conforme a demanda do desenvolvimento da população do Brasil. “Começamos na época de Dom Pedro, com o Instituto Benjamin Constant para pessoas com deficiência visual. Depois, tivemos organizações para os surdos, depois para deficientes intelectuais, para autistas e assim por diante”.

Atualmente, de acordo com a professora, encontramos no Brasil escolas com uma perspectiva inclusiva que vai de acordo com a legislação.

A EDUCAÇÃO NA PRÁTICA

Em função das políticas educacionais, hoje nós temos no Brasil o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que é um serviço complementar. Ele não é um substitutivo do processo de escolarização; ele serve de apoio para garantir o desenvolvimento pleno das pessoas que precisam”, pontua a professora.

A equipe que faz parte do AEE é, na maioria das vezes, multidisciplinar. Guebert explica que, entre os profissionais, estão obrigatoriamente professores com ensino superior, – sendo que a maioria tem especialização no campo da educação especial -, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e pedagogos.

Quando se fala da AEE, se fala de processo de educação, aponta a especialista: “as escolas especiais se transformaram em escolas na modalidade educação especial. A educação especial é um nível. Nós temos a educação básica, o ensino médio e a educação superior. A educação especial perpassa todos esses eixos, esses níveis. Por isso, ela é caracterizada como uma modalidade”.

Essa modalidade tem um grupo específico para qual é destinada, denominado público-alvo da educação especial. De acordo com Guebert, algumas deficiências não estão incluídas neste grupo: “crianças que têm doença mental são atendidas no ensino regular sem nenhum acompanhamento, por exemplo. A política acaba limitando à quem se destina a educação especial”.

Outro problema encontrado na questão é a precariedade do ensino regular. Segundo Pedro Demo, pós-doutor em Sociologia e atuante na área de políticas sociais para educação, a AEE pode funcionar na prática e, se não funciona, a culpada é a falta de melhorias na escola regular.

“É muito difícil a gente aceitar que as pessoas com deficiência já estão incluídas só por estarem na escola. A escola regular é muito excludente. Colocar a pessoa com deficiência nessa escola é incluir ou excluir?”, pontua Demo a respeito dos sinais de exclusão presentes dentro da escola regular.

O ENSINO SUPERIOR

Quando o aluno com deficiência chega à universidade, cabe à instituição de ensino fazer com que ele tenha toda a assistência necessária para se desenvolver academicamente. Porém, cada caso é um caso.

“Existe uma normativa que afirma que todas as instituições de educação superior devem ter serviço de acompanhamento ao aluno em processo de inclusão, porém, nem toda pessoa com deficiência precisa de um acompanhamento do AEE ou da educação especial. Vamos pensar que o sujeito é surdo. Se ele usa Libras, normalmente tem uma intérprete na sala que realiza a tradução. Ele não necessita de nenhum recurso para acompanhar, pois não é uma questão cognição, é uma questão de comunicação”, afirma Mirian Guebert.

O limitador da educação superior, segundo ela, é que os professores são formados em profissões: “o médico fez Medicina. Então, o processo de intervenção é clínico, não pedagógico. Portanto, ele precisa que a instituição de ensino faça uma intervenção e um acompanhamento de como fazer adaptação de atividade, enriquecimento ou flexibilização dela e tempo de avaliação diferenciado”.

Por mais que essa seja uma das maiores barreiras, ainda assim não tem como culpar os professores, aponta Pedro Demo, porque dificilmente esses profissionais têm alguma formação durante a graduação voltada para isso.

Felizmente, ainda há motivos para comemoração: “atualmente, nós temos muitos estudantes com deficiência formados na graduação”, afirma Mirian Guebert. A celebração é pautada em números: de acordo com os dados mais recentes do Censo Superior da Educação, divulgados em 2018 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de estudantes com deficiência matriculados na universidade por meio da reserva de vagas cresceu mais de 70% de 2017 para 2018.

*Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação não respondeu às perguntas enviadas até o fechamento desta matéria. O journal48 aguarda as respostas para futuras atualizações.

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