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Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem cerca de 30 mil crianças e adolescentes distribuídos em 4.533 unidades de acolhimento. A situação é temporária com prazo máximo de permanência de 18 meses e a medida é aplicada quando considerada pela Justiça como situação risco, maus-tratos, abandono ou negligência. A criança acolhida pode ter a reintegração familiar ou ser encaminhada para o processo de adoção.

Mais de 7 mil acolhidos têm idade de até 6 anos, período crucial para o desenvolvimento cognitivo e emocional. A denominada primeira infância compreende a faixa etária de 0 a 6 anos e as vivências dos primeiros anos de vida influenciam diretamente nos estágios posteriores de vida. Segundo o UNICEF – órgão das Nações Unidas cujo objetivo é promover a defesa dos direitos das crianças – para cada ano que uma criança reside em uma instituição de acolhimento, são perdidos 4 meses de desenvolvimento. Com essa informação, algumas perguntas a serem respondidas são: Como fica o desenvolvimento de bebês dentro das instituições de abrigo? E, há uma forma melhor de amparar crianças acolhidas na primeira infância?

É então que entra a Política Pública de famílias acolhedoras no Brasil, pouco difundida na sociedade e que está baseada no Art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A Política é uma modalidade de acolhimento que consiste em encaminhar crianças para famílias que possam cuidar delas, sobretudo bebês, por período transitório até que judicialmente seja decidido se ocorrerá o retorno para a família de origem ou não. Ainda segundo o UNICEF, a violência em abrigos é seis vezes mais alta do que em lares de acolhimento, onde o cuidado e amparo são maiores.

COMO FUNCIONA O SERVIÇO DE FAMÍLIAS ACOLHEDORAS?

As famílias acolhedoras prestam um serviço social de tomar conta e conferir cuidados durante o período de acolhimento. Não há o compromisso de assumir a criança como filha ou de ter a guarda definitiva sobre ela. Para ingressar no programa, a família passa por treinamento e avaliação e, estando apta, poderá acolher meninos e meninas temporariamente recebendo uma ajuda de custo prevista por lei de um salário mínimo. Os requisitos para ser uma família acolhedora são:

  • Ter mais de 25 anos;
  • Ter disponibilidade afetiva e de acomodação;
  • Estar em boas condições de saúde física e mental;
  • Não possuir antecedentes criminais;
  • Possuir situação financeira estável;
  • Possuir uma convivência familiar estável e livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes;
  • Não estar no cadastro de adoção.

A assistente social e coordenadora do serviço de acolhimento familiar do Instituto Fazendo História, Sara Luvisotto, afirma que desde o início do programa no instituto, em 2016, já foram quase 100 crianças acolhidas por mais de 30 famílias cadastradas. Ela diz que o critério de seleção e capacitação dessas famílias é bem rigoroso pois deve haver um bom preparo psicológico para lidar com despedidas ou possíveis preconceitos envolvendo a história da criança.

“As famílias não cuidam só de uma criança, elas acolhem uma história e isso envolve a família de origem também. Por isso, uma pessoa com muitos preconceitos, por exemplo, não é apta a participar do programa. Nós avaliamos muitos aspectos importantes no processo de seleção, que em média dura 6 meses.”

Depois que as famílias são aprovadas, começam a participar de um grupo de supervisão com todas as demais famílias, a fim de trocar experiências. Também há um acompanhamento quinzenal em que especialistas abordam diversos assuntos como nutrição, racismo, sexualidade, entre outros; tudo para levar conhecimento e oferecer suporte aos lares acolhedores. Informações cotidianas também são compartilhadas com psicólogos através do WhatsApp.

A contadora, Elaine da Fonseca Pinto, mora com o marido, Sergio Aguilar, e os dois filhos; juntos, eles são uma família acolhedora desde 2018. Elaine conta que, desde o início, o processo de adaptação do acolhimento foi tranquilo.

“Após sermos aprovados, estava muito claro para nós qual era o nosso papel: acolher a criança por um período em nossa casa e que em algum momento a gente teria que se despedir dela. Conversamos desde o princípio com nossos filhos e quando um bebê chega, nós conversamos com ele também, dizemos que nós vamos cuidar dele até que a sua vidinha se organize.”

A economista Lumena Alleoni Mariconi também faz parte de uma família acolhedora, junto com o marido e as duas filhas, desde 2016. Hoje, ela está no sétimo acolhimento e diz que não consegue mais se ver fora do programa.

“Eu me identifiquei muito, para mim foi um divisor de águas. Acredito que o acolhimento familiar é um meio de a gente dar a mão a uma família que não pôde estar organizada naquele momento e está precisando de ajuda”, relata.

ACOMPANHAMENTO DA FAMÍLIA DE ORIGEM

A reintegração familiar é um dos principais objetivos a serem alcançados quando uma criança é acolhida. Quando isso não é possível, ela é encaminhada para o processo de adoção. Por lei, sempre que identificada a necessidade, a família de origem deve ser incluída em programas oficiais de orientação, apoio e promoção social para que tenha estrutura suficiente para receber a criança de volta.

A coordenadora Sara aponta que o problema possui, sobretudo, um cunho socioeconômico carregado de preconceitos, inclusive por parte de profissionais do sistema de garantia de direitos que deveriam amparar as famílias.

“As famílias que têm seus filhos retirados são pobres que não têm acesso às políticas públicas. Ninguém acolhe uma criança de família rica, mas isso não quer dizer que ela não passe por dificuldades. E apesar da pobreza não ser motivo de acolhimento, pois não é o que está escrito no papel, na verdade esse é o principal motivo”, explica.

Segundo ela, no âmbito nacional, a negligência é a principal razão para o afastamento da criança das famílias de origem “A negligência está totalmente ligada à pobreza, porque se uma mãe trabalha em um local distante de onde mora e não há vaga na creche, por exemplo, ela deixa o bebê sob o cuidado dos outros filhos e é tida como negligente.”

Sara afirma, ainda, que existem casos de violência severa e uso de drogas, mas que visando os índices nacionais, a negligência é a principal causa de acolhimento.

O Instituto Fazendo História, que atua na região central da cidade de São Paulo, procura as famílias biológicas quando recebem a notificação de acolhimento. É feito um trabalho para entender a realidade e a história de cada criança.

“Nós realizamos tratamentos psicológicos com as famílias de origem. Chegamos sempre de forma muito respeitosa e cuidadosa, porque não sou eu, de dentro do meu escritório com ar-condicionado, que vou falar para uma mulher negra que está em situação de rua o que ela deve fazer. Eu pergunto ‘o que você acha que precisa para ter seu filho de volta?’ Então vamos construindo juntas os próximos passos”, afirma Sara.

A família biológica também é trabalhada para entender que a acolhedora não está “roubando” a criança, mas que está tomando conta dela por um período para que se restabeleça. Por esse motivo, as famílias acolhedoras não chamam os acolhidos por “filho” e sim pelo nome, além de não possuírem nenhum vínculo com o processo de adoção. O acolhimento familiar é um serviço social em que uma família ajuda outra família temporariamente.

A coordenadora conta que é transformador o trabalho realizado com as famílias de origem. Ela diz que as crianças chegam frágeis e assustadas e que, no final do período, a grande maioria retorna à família biológica.

DESPEDIDA

A economista Lumena afirma que passou a desconstruir muitos pensamentos a partir do programa de acolhimento e que nem sempre é um processo fácil, mas que vale a pena.

“É preciso trabalhar muito internamente, isso é difícil porque faz com que você reveja conceitos e questões pessoais. Todo mundo nos diz ‘você se acostuma com a criança, mas ela vai embora’ e eu respondo que o acolhimento dela aconteceria de qualquer forma. No abrigo também são criados laços, então é melhor que seja com uma família que consiga dar amor e cuidados. No processo de reintegração é perceptível que o bebê está pronto para voltar para sua família”, conclui.

Lumena diz que a despedida faz parte da vida e que o grande legado é que o acolhimento familiar é muito bom e de grande ajuda para a sociedade. Através da experiência com o programa, ela resolveu iniciar o curso de serviço social e está no segundo semestre.

Segundo a contadora Elaine, a despedida é feita com muito carinho e que na verdade não é uma despedida, mas sim uma transição.

“O nosso papel é cuidar dessa criança e amá-la muito. A coisa mais gostosa do mundo é você ver o olhinho do bebê olhando no seu olho e sorrindo, do tipo ‘eu sei que sou amado e estou seguro aqui em sua casa’”, finaliza.

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