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Aline Simões era como qualquer outra criança: gostava de brincar com os amigos, assistia desenhos por horas e passava os dias desejando crescer. Hoje, já com 22 anos, ela teve tempo para desenvolver características muito próprias com relação a sua aparência física e a personalidade. Apesar disso, suas roupas largas, relógio grande no pulso e a paixão por tocar bateria fazem com que a sociedade que a olha chegue a uma rápida conclusão: “ela tem cara de sapatão”. 

O jeito de se vestir da Aline Simões faz com que as pessoas automaticamente assumam sua sexualidade. Foto: Arquivo pessoal.

“Me sinto mais confortável vestindo roupas que, digamos, são masculinas e isso faz com que as pessoas me olhem e assumam minha sexualidade”, relata Aline. E essa conclusão não é feita apenas por pessoas de fora de seu meio; ela já recebeu a sentença, inclusive, de gente da própria comunidade LGBTQIA+.  

De fato, Aline é lésbica. Mas é desde muito antes de usar roupas largas, ou de ter um relógio no pulso, ou de tocar bateria. Ela já sentia sua sexualidade antes dos 13 anos, quando se assumiu para a irmã que a criou e o cunhado. “Eu contei para aliviar o peso; e depois contei para os meus pais. Para mim, apenas essas pessoas mereciam qualquer satisfação acerca disso”, explica. 

Se Aline é lésbica, estaria, então, o espelho da sociedade refletindo uma imagem correta sobre ela? A resposta é “não” porque a Aline gosta de se definir de outro jeito quando olha no espelho: ela prefere a palavra “mudança”. A resposta também é “não” porque o que embasa a caracterização de Aline pela sociedade são estereótipos, muito mais vinculados a preconceitos do que à assertividade. 

Por mais de duas décadas estudando a comunidade LGBTQIA+ e as variáveis relacionadas a ela, o pós-doutor em Educação e diretor-executivo do Grupo Dignidade, Toni Reis, identificou que, no Brasil, os indivíduos fora do espectro da sexualidade heteronormativa são vistos como doentes, pecadores e promíscuos.  

Então, quando alguém olha para Aline na rua e diz que “ela tem cara de sapatão”, está, mesmo que de forma inconsciente, reproduzindo e reforçando esses preconceitos. De acordo com Toni Reis, isso embaça o espelho de autoaceitação das pessoas e, muitas vezes, faz com que elas tentem entrar no padrão da heteronormatividade. 

“Infelizmente, a autoestima em geral da nossa comunidade é baixa e eu já vi muitas pessoas perderem quem são pelo olhar de outros. Muita gente LGBTQIA+ tenta entrar no padrão para se aceitar e para receber a aprovação da sociedade”, conta o pesquisador. 

Ainda assim, ele reforça: “Há uma variedade de jeitos de viver e nós temos que entender que somos todos iguais em direitos e totalmente diferentes nas formas de vida”. 

QUANDO O ESPELHO EMBAÇA

O sociólogo canadense Erving Goffman dedicou a vida aos estudos dos estigmas, que são jeitos de categorizar as pessoas negativamente. Em sua teoria, as maiorias de cada sociedade, que estão relacionadas ao maior acesso a bens e não à maior quantidade numérica, têm poder para aceitar ou excluir pessoas.  

Em um país no qual os homens cis-hetéro-brancos ocupam 90% das posições de CEO nas empresas e são a maioria nos cargos políticos, os membros da comunidade LGBTQIA+ parecem ser reduzidos a estigmas que tiram as suas identidades. 

A homossexualidade de Adilson Júnior, por exemplo, o atormentou durante anos. A sensação ficava mais latente quando ele ia à igreja, já que a sua orientação sexual “é um pecado aos olhos cristãos”. No caminho da autoaceitação, ele viu o seu reflexo embaçar sob as vistas de quem o definiu como gay por ‘isso’ ou ‘aquilo’. 

Adilson Júnior tem sua sexualidade frequentemente definida por seu jeito de ser. Foto: Arquivo pessoal.

Quando ainda estava na escola, Adilson foi categorizado como “viadinho” por um colega de classe, que o taxou assim porque ele só andava com meninas e não gostava de comentar sobre a aparência delas. “Me senti péssimo”, lembra ele. 

Ao contrário do que acontece com Aline, não são as roupas de Adilson que levam parte da sociedade a dizer que “ele tem cara de gay”, mas sim o seu jeito de ser. Vez ou outra, a sua gentileza é encarada por olhos tortos, assim como o seu senso de humor sempre no ponto. 

Mas, diferentemente do menino que se sentiu péssimo quando chamado de “viadinho” na escola, hoje, Adilson se aceita muito mais e até se acostumou com os olhares. Agora, com o espelho refletindo, de fato, a realidade, ele escolhe a palavra “gentileza” para se definir. 

SEXUALIDADE TEM CARA?

A opinião das outras pessoas nunca teve um grande impacto na vida de Fernanda de Sousa. A mulher de 23 anos se olha no espelho e sabe muito bem quem é: alto astral, divertida, determinada, verdadeira e que acontece de amar mulheres. Apesar dessas certezas, parte da sociedade insiste em defini-la pela aparência.  

“Já ouvi de várias pessoas, até mesmo de amigos, que eu não parecia ter ‘cara’ de lésbica porque meu cabelo é grande, por vestir saia, vestido e passar batom. Chegaram a me falar que tenho muita cara de ‘menininha’ para isso”, conta ela.  

Pessoas duvidam da sexualidade de Fernanda por conta de suas características físicas. Foto: Arquivo pessoal.

A classificação do que alguém é ou deixa de ser baseada apenas no superficial, como definiu o conhecido sociólogo Stuart Hall, é a forma que as pessoas encontram para entender o mundo de um jeito mais simples. Segundo ele, recebemos centenas de informações diariamente e escolhemos priorizar algumas delas, geralmente as que temos facilidade de entender.  

Nesse cenário, olhar para uma mulher com cabelos longos, vestindo saia e usando batom e entender que ela é heterossexual é muito mais fácil para quem faz parte de uma sociedade conservadora e heteronormativa, do que deduzir que essa pessoa é lésbica. E compreender quem é essa mulher, no caso a Fernanda, pode complicar quando ela tem um estilo diverso.  

“Nem sempre uso o cabelo solto e já me disseram que eu tinha cara de sapatão por causa de certo penteado, ao mesmo tempo em que algumas mulheres não chegaram em mim porque pensaram que eu era heterossexual”, comenta Fernanda, que encara a situação de forma leve: “Isso não me incomoda, costumo responder ‘Ah, que bom, sou sapatão, mesmo’. Apenas acho que definir alguém pela aparência é vazio”, completa.  

Os sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann acreditavam que para sair da superficialidade é preciso conhecer o outro. No livro “A construção social da realidade”, os autores exemplificam a crença ao contar a história de um homem que é amigo de um inglês. Antes de serem próximos, o primeiro personagem da história relaciona todas as ideias do que é um homem inglês ao agora amigo.  

Quanto mais se conhecem, menos os estereótipos relacionados ao inglês fazem sentido, até que o primeiro homem nem se lembra mais deles porque quando olha para o amigo vê um ser único, com qualidades e defeitos que não têm nada a ver com a sua nacionalidade. 

Seguindo essa premissa, entende-se que é preciso conhecer a Aline, o Adilson e a Fernanda para entender que a Aline tem cara de Aline, o Adilson tem cara de Adilson e a Fernanda tem cara de Fernanda. O que realmente vale conhecer não está na superfície.  

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