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O país do futebol tem traços que não dão orgulho ao esporte, principalmente no que tange pessoas da comunidade LGTBQIA+. Assim, a representação dentro dos times profissionais se torna invisível. Atualmente, temos mais de 742 times de futebol profissional masculino e, segundo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), nenhum desses clubes têm sequer um jogador gay ou bissexual assumido.  

O Brasil e também outros países tradicionalmente acobertam ou não aceitam que seus jogadores assumam a sua orientação sexual por vários receios de que esse fato prejudique a imagem do time, bem como ocasione a perda de patrocínio. É fácil contar quantos jogadores se assumiram ao longo da história. Muitos penduram suas chuteiras antes mesmo de se assumirem, pois, em um ambiente machista – fora e dentro de campo –  a única opção, muitas vezes, é se proteger dessas agressões. 

Assim sendo, constantemente, clubes que lutam contra a homofobia sofrem com ataques homofóbicos da própria diretoria ou dos torcedores. Recentemente no Brasil tivemos dois casos que repercutiram no país inteiro. Em maio deste ano, Gilberto Nogueira, ou melhor, Gil do Vigor e ex-BBB, sofreu ataques homofóbicos por parte do conselheiro do Sport Clube Recife, localizado em Pernambuco.   

O time convidou  Gilberto para receber uma homenagem por sua passagem pelo programa, isto porque o ex-BBB exaltava e cantava o hino do seu time de coração durante sua trajetória na casa.  Durante a homenagem, ele pôde conhecer a Ilha do Retiro, estádio do time, e fez uma de suas danças, a “tchaki tchaki”, sua marca registrada durante o reality. 

O conselheiro do Sport não gostou do vídeo gravado no gramado da Ilha do Retiro e inoportunamente, em um áudio vazado, fez críticas à dança de Gil. “Se ele tivesse feito essa dancinha na casa dele ou no bordel, ou onde ele quisesse, eu não estava nem aí. Mas foi dentro da Ilha do Retiro, né rapaz? Isso é uma desmoralização. Isso é ausência de vergonha na cara. É isso que a gente está vivendo. Esses tempos novos, é isso. Não tem mais respeito. […] É a depravação”, disse ele.  

Em uma rede social, Gilberto se manifestou sobre o ataque sofrido: “Primeiro ataque homofóbico que me deparo após o BBB e posso garantir, ainda machuca MUITO! Mas sigo firme e providências serão tomadas. Tirando o dia off para não perder minha alegria por tudo que venho vivendo…É muita dor!”, postou no Twitter. 

O Sport Club do Recife se pronunciou por meio de uma nota e disse que o time é de todos e que o ex-BBB sempre será um legítimo representante das cores do Sport Clube Recife. “Um clube plural, do povo. Não segregamos quem ama o Sport. O amor que une nossa torcida ao clube é incondicional”, disse, na nota. Ainda, informou que o Sport e o Conselho Deliberativo tomariam as providências “para que todo ato de preconceito seja devidamente penalizado”. Até hoje, tais providências não foram tomadas.  

Além do Sport, outro time se manifestou diante do preconceito no futebol. No mês de junho, mais conhecido como mês do Orgulho para as pessoas da comunidade LGBTQIA+, o Vasco anunciou o lançamento de um novo uniforme confeccionado em homenagem ao movimento.  Para o time “o caminho é longo, mas o Vasco dará quantos passos forem necessários neste debate (…) O Vasco de 1923 não aceitou o racismo, naturalizado no século anterior. O Vasco do século XXI se nega a aceitar a homofobia e a transfobia que marcaram o século XX”, ressaltava a nota divulgada para o lançamento da camisa.  

TORCIDA LGBTQIA+ DENTRO DE CAMPO?

No país do futebol, o preconceito enraizado dificulta a aceitação de LGBTs em suas torcidas e times
Torcida LGBTQIA+ nos estádios. Foto: Reprodução/Canarinhos Arco-Íris.

Qual é a sensação de ir ao estádio de futebol e ter que evitar ficar junto do seu namorado ou namorada, ou ser uma pessoa trans? Ainda, ter evitar andar de mãos dadas com seu parceiro e não expor sua orientação sexual para não sofrer nenhum olhar de reprovação? É assim que muitos LGBTs se sentem quando frequentam estádios de futebol.  

Eles temem agressões físicas e verbais e não se sentem seguros para frequentar jogos, assim, preferem, muitas vezes, não se manifestar nos estádios, permanecendo invisíveis ou se portando como o “ideal” do futebol masculino – construído pelos torcedores, para evitar constrangimentos, preconceitos e até confusões. 

Apesar disso, existem, hoje em dia, coletivos que ajudam torcedores e clubes a acolherem pessoas da comunidade LGBTQIA+ em seus estádios, criando ações conjuntas que visam combater a LGBTfobia nesses espaços. Um desses coletivos é o Canarinhos Arco-íris (Articulação Nacional de Torcidas LGBTQIA+) que acompanha 17 torcidas de times diferentes no país, defendendo o futebol como um lugar para todos.  

Um dos integrantes do Canarinho é Gleyson Oliveira. Torcedor do Payssandu, ele conta que já alcançou muitas conquistas desde que o coletivo surgiu. “O nosso marco, foi uma capacitação para todos os funcionários do time, para reconhecer torcedores e torcedoras transexuais com seus nomes sociais nas carteirinhas”, conta.  

Esse processo de mudança nunca é fácil, muitas pessoas sofrem preconceito, são ameaçadas e até são agredidas por defender a causa. Mas, para o time do Payssandu, as coisas mudaram desde que Glayson começou a lutar por mais espaço. “Eu me sentia muito mal quando tinha cânticos homofóbicos, mas isso foi banido e dentro da torcida do Payssandu, não existe mais.”   

Ele relata que, antes, “tinha muito mais medo de frequentar os estádios do que agora. Uma das coisas mais emocionantes é ver um hétero pedindo para parar com cânticos homofóbicos que citam o termo ‘viado’. Ver pessoas do meu time, reclamando com outras pessoas de outros times por causa de lgbtfobia, isso é maravilhoso”, diz o torcedor, esperançoso com seu time.  

É necessário, segundo ele, que essa mentalidade dos torcedores, e das pessoas, evolua, até porque a luta contra a LGBTfobia não o faz gay, apenas o faz uma pessoa mais humana. 

FORA DO ARMÁRIO, SÓ NO AMADOR?

Parece distante da realidade brasileira quando vemos jogadores assumidamente gays em campo. Os clubes fazem campanhas contra a LGBTfobia e o preconceito; criam ações, defendem a liberdade de expressão e a diversidade dos torcedores, mas, não obstante, não estão dispostos a enfrentar isso diariamente com seus jogadores, visto que é um trabalho mais árduo e necessita de apoio diário para que estes conquistem seus espaços. 

O que acontece é que muitos jogadores não tem mais clima para seguirem lutando, terminam por se calarem ou não têm chances no futebol. Dessa maneira, surge o futebol amador, como forma de acolhimento para essas pessoas. Atualmente, a Ligay (Federação Brasileira de Futebol LGBT+) está presente no Brasil todo com mais de 71 clubes LGBTQIA+ cadastrados e é responsável por promover torneios de futebol voltados para a comunidade desde o final de 2017, quando surgiu.   

Um desses times cadastrados é o Besscats, o primeiro clube de futebol gay no estado do Rio de Janeiro e o vice-campeão mundial de 2018 pelo WorldGaysGames, em Paris. O time foi fundado em maio de 2017 com a ideia inicial de reunir amigos para jogar a famosa “pelada” semanal. Contudo, as pessoas se empolgaram e começaram a criar campeonatos, os quais passaram a atrair muitos jogadores. 

Um dos jogadores do time amador é Douglas Braga, ex-atleta de futebol profissional do Botafogo, que atualmente segue sua carreira como psicólogo e jogador do Beescats. 

Para ele “participar do time, é uma quebra de paradigmas. Eu digo que eu bebo dessa água machista, porque cresci no meio do futebol homofóbico, entendia que gay não jogava futebol. Então, eu brinco que a primeira vez que eu fui no jogo da Ligay, pensei: não, isso não combina. A ideia que eu tinha era de que seria gente de salto alto jogando, e pode parecer muito simples, mas é muito bom você fazer o que você gosta e jogar futebol”. 

Para o psicólogo, quebrar esses paradigmas foi essencial para romper com o machismo que existia em si. “Durante muito tempo eu fui o homofóbico. A quebra de paradigmas começa quando você deixa de ser o jogador gay para ser só o jogador. É o que nós [Besscats] estamos buscando, e para mim é maravilhoso”, afirma ele entusiasmado.  

Douglas ressalta: “Quanto mais gente atinge, melhor. O que a gente quer é causar incômodo, eu quero que as pessoas pensem sobre isso”. Ele também acredita que para transformar o futebol é necessário estar inserido dentro do sistema. “Eu vou mudar o futebol como gay e é de lá que eu vou falar, porque de fora ninguém vai me ouvir; a ideia é que exista um futebol sem rótulos”, conclui.  

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