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Hoje em dia, existem aplicativos para ver filmes, ouvir músicas, editar fotos e textos, pagar contas,  fazer monitoramento de segurança, ou seja, é uma gama de apps que podem ser utilizados para diversas funções no nosso dia-a-dia. Inclusive para conhecer pessoas.

Entre os homens homossexuais e bissexuais, se tornou comum o uso de aplicativos de relacionamento, como Grindr, Scruff, Hornet ou Tinder, sendo que esse último não é exclusividade do grupo. O uso desses apps é muito simples: a pessoa instala no celular, cria um perfil e conversa com as outras pessoas que aparecem na timeline. No perfil, o usuário pode colocar fotos e escrever na bio um pouco sobre si.

Estes aplicativos também abriram outros tipos de portas, como por exemplo, para casais poliamoristas encontrarem um novo membro para a relação, e até mesmo para garotos de programa divulgarem seus trabalhos, não se limitando apenas a anúncios em jornais ou sites especializados. Por outro lado, há muitos criminosos que usam esses aplicativos para aplicar golpes ou traficar drogas, além da presença de pedófilos. Bom lembrar que todos os apps de relacionamento proíbem perfis com menores de 18 anos, porém é fácil burlar esse sistema.

Ter um aplicativo de relacionamento voltado para homens que sentem atração sentimental, emocional e/ou sexual por outros homens é uma ótima ideia, pois torna o processo de encontrar parceiros, de certa forma, mais prático para este público. Como todos ali sentem atração pelo mesmo gênero, o momento da conquista, no qual se tenta descobrir o que a outra pessoa gosta, fica livre de equívocos – o que, em situações presenciais, para qualquer pessoa LGBT é um momento delicado, para não dizer complicado, pois a outra pessoa pode reagir de uma forma preconceituosa e até mesmo violenta.

Entretanto, mesmo estando em um lugar virtual, onde há pessoas  que partilham da mesma atração, os aplicativos possuem um lado sombrio, isto porque, os próprios usuários se discriminam entre si. Gordofobia, racismo, etarismo, sorofobia e até LGBTfobia são praticadas neste ambiente.

Se tornou comum ver descrições de perfis com as seguintes falas: “Não curto afeminados, nada contra, só tesão”, “Não sou e não curto afeminados”, “Curto macho com jeito de macho”, além das descrições que utilizam emojis de placa proibido com a exigência do lado “🚫afeminados, 🚫gordos, 🚫velhos”. Alguns usuários, principalmente estes que se encaixam nos perfis rejeitados, são bloqueados ou não obtém nenhuma resposta quando tentam uma aproximação.

Foto: Seminário Internacional Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos)

Quem já sofreu com esse tipo de preconceito foi RP, nome fictício, pois ele não quer ser identificado. Atualmente, RP está com 26 anos, mora em Florianópolis e trabalha como auxiliar administrativo. Ele conta que usa os aplicativos de relacionamentos desde os 17 anos, o que foi possível, apesar da idade, pois ele slecionava o ano anterior ao que nasceu no momento do cadastro.

O aplicativo que RP prefere usar é o Grindr. Segundo ele, o app dá a opção de flertar com a pessoa antes de mandar a primeira mensagem. “Geralmente eu dou um ‘tap’ na pessoa primeiro, se ele responde meu ‘tap’, eu dou um oi”. O tap é uma opção da plataforma que serve para o usuário chamar a atenção de outro, essa função lembra a cutucada do Facebook ou a opção de fazer a tela tremer do MSN.

Quando perguntado sobre o preconceito que sofreu ao tentar se aproximar de alguém, RP relata que o que mais acontece é ser ignorado e muitas vezes bloqueado, mas teve um caso que lhe fez deixar a plataforma por cerca de cinco meses: “Isso foi em 2019. Eu abri o Grindr na faculdade e vi um cara interessante que tinha um bigode igual ao do DJ Alok. Mandei mensagem dizendo ‘oi. Lindo esse bigode’. O cara me respondeu ‘sai daí Free Willy'”.

RP relata que foi pego de surpresa com a mensagem do rapaz e no mesmo momento excluiu a conta do aplicativo e desinstalou o app de seu celular. “Na hora nem pensei em denunciar ele para o Grindr. Só queria sair dali”, relembra ele.

O jovem diz que o sentimento na ocasião era de vergonha. Começou a se sentir feio e insatisfeito com o corpo depois do comentário do rapaz do Grindr, mas aos poucos foi voltando ao normal. No entanto, ele só foi reinstalar o aplicativo na época de festas de fim de ano, pois segundo ele, há bastante turistas na região onde mora e sempre “rola” de conhecer alguém interessante de outro lugar. Foi justamente nesse retorno que ele conheceu o atual namorado.

Desde então, ele não voltou a sofrer outro ataque como o de antes, mas por ser gordo, de vez em quando, é bloqueado por alguns perfis. “Ser bloqueado é o de menos. Entendo que tem pessoas que têm dificuldade em falar que não curtiram você. O que não pode rolar são essas ofensas gratuitas. Só acho que o Grindr e outros apps devem ser mais severos com esse tipo de violência”, pontua.

PRECONCEITO E OS PADRÕES DE GÊNERO

Quem também usa aplicativos de relacionamento, porém de forma sazonal, é GR, recrutador de 24 anos, que também pediu para não ter seu nome identificado. Morador de Balneário Camboriú-SC, ele conta que houve uma época da vida que usava os apps com frequência, mas hoje em dia utiliza por dois ou três meses, depois se afasta da plataforma por cerca de seis meses.

Nos momentos em que tem o aplicativo ativo, GR se identifica através das iniciais ou de codinomes. Além disso, também por precaução, ele não coloca fotos no perfil quando está na cidade onde mora.

A segurança, conta ele, é muito importante, principalmente nos momentos de encontrar alguém pessoalmente. Dentre os cuidados que ele toma, estão o de marcar o encontro em lugares onde possa ver a pessoa de longe (podendo ir embora, caso perceba algo suspeito); mandar sua localização para algum conhecido; não sair tarde da noite; e tirar prints da conversa com a foto da pessoa que está conhecendo.

GR se considera um homem afeminado, ou seja, um homem com trejeitos considerados femininos, e por conta disso já foi discriminado por outros usuários no aplicativo. “Já aconteceu de eu chegar na pessoa e ela ficar olhando, para então reclamar ‘ai nossa! Você é muito afeminado’, e tem aqueles que gostam de fazer textão, eu bloqueio e nem leio”, relata.

Os ataques por não possuir o jeito masculinizado esperado pelos usuários das plataformas vieram ainda na adolescência, período em que começou a usar os aplicativos. Ele lembra que a violência aparecia em forma de conselho.

“Vinham com frequência mensagens que diziam: ‘Você é afeminado demais’, ‘Ainda dá tempo de mudar’, ou ‘Não tem problema ser gay, mas não precisa ser espalhafatoso’. Isso me marcou porque eu era muito novo, estava começando nesse mundo. E não foram nem uma, nem duas, foram várias mensagens”, diz.

GR tem o costume de denunciar os comportamentos preconceituosos que presencia nos aplicativos. Dentre eles, os que mais lhe incomodam são os que vêm de pessoas que exigem um padrão de corpo, modos e trejeitos que nem sequer possuem; e os reproduzidos por pessoas que também sofrem com rejeição, por exemplo, homens gordos que são gordofóbicos. “Não sei se é para tentar caber no padrão, mas é bem problemático”, completa GR.

O jovem revelou ter recorrido à terapia para superar traumas que passou dentro da própria comunidade e, atualmente, além de trabalhar como recrutador, atua voluntariamente em palestras, eventos e manifestações de um grupo militante pela causa LGBTQIA+.

AS NUANCES DO RACISMO

Além dos preconceitos relacionados a porte físico e padrões de gênero, muitos homens são vítimas de racismo nos aplicativos de relacionamento.

Luiz Gustavo Nazarito, de 25 anos, morador de Itajaí-SC, assim como os outros rapazes entrevistados, usa aplicativos desde a adolescência; começou aos 16 anos com intuito de se aproximar de outros meninos, já que tinha dificuldade para fazer isso na “vida real” por ter a autoestima baixa.

No momento em que está na plataforma, Luiz diz que não coloca o próprio nome, mas coloca fotos além de permitir acesso dos usuários a suas redes sociais. Ele acredita que, para além de relacionamentos superficiais, é possível se apaixonar nessas plataformas, mas, ao mesmo tempo, se indigna com as manifestações preconceituosas de alguns usuários.

De acordo com Luiz, há uma linha tênue entre preferência e preconceito. Ele revela que prefere jovens da mesma faixa etária que ele, e que essa questão se encaixa no quesito preferência. “Eu prefiro ficar com um cara com um certo limite de idade, porque depois disso já soa estranho pra mim. Não quero ficar com um cara que parece com meu pai”, pontua.

Mas ao pensar na questão dos homens afeminados, Luiz Gustavo percebe um preconceito mais escancarado, que deriva de um local complexo. “Eu tenho um preconceito muito grande comigo mesmo em relação a isso. Sempre tive medo de parecer afeminado demais para os caras: trejeitos, voz e vestimentas. Isso já criou vários bloqueios em mim. Só que eu não tenho nenhum problema em me relacionar com pessoas afeminadas, é algo que gosto”, esclarece.

O tipo de preconceito que mais perseguiu o rapaz foi o racismo. Ele diz que nunca viu ninguém colocar no perfil “não gosto de negros”, mas, sim, muitas situações antagonicas a isso, e que podem ser ainda mais problemáticas.

“Às vezes você está numa conversa incrível com um cara até que ele manda: ‘amo sua cor’ ou ‘sou tarado na sua cor’. Essa parada me deixa mal”, declara. Para Luiz, a partir do momento que um rapaz quer estar com ele única e exclusivamente pela cor de sua pele, se torna racismo e dói, pois sente seu corpo fetichizado. 

Ele expõe que quando alguém age dessa forma pessoalmente, rebate de forma incisiva, explicando que este tipo de fala e pensamento são racistas. Quando está no aplicativo, ou para de responder, ou bloqueia. “Pra mim, o ignorar e só deixar a pessoa falando sozinha é um contra ataque mais adequado. Quando você ignora, demonstra que não se irritou com aquilo e eu não gosto de dar esse gostinho para as pessoas”, conta.

A LINHA TÊNUE ENTRE GOSTO E PRECONCEITO

A frase “gosto não se discute” é como se fosse uma regra social. Por mais que algo que gostamos tenha defeitos, continuaremos gostando. Por outro lado, nem tudo que é considerado como bom, nos agrada, necessariamente. Entretanto, essa frase tem sido usada como desculpa por usuários nos aplicativos de relacionamentos para não refletir sobre as próprias preferências.

Será mesmo que a rejeição a gordos, afeminados, negros e homens mais velhos se trata de uma questão de gosto ou é um preconceito internalizado?

O Doutor Bruno Forato Branquinho, psiquiatra com enfoque em saúde mental da população LGBTQIAP+, explica que o gosto é, sim, construído baseado nas nossas experiências dentro do contexto sociocultural. Além disso, somos ensinados desde pequenos pelas pessoas em nossa volta, pela mídia e pela sociedade de uma forma geral, sobre o que é belo e o que deve ser admirado.

“Se hoje o valorizado pela sociedade é o corpo ‘padrão’, com muito músculos e pouca gordura, isso nem sempre foi verdade. Se pensarmos, por exemplo, na Antiguidade, no tempo das cavernas, o corpo admirado e reproduzido na arte, por exemplo, era o corpo gordo e grande, porque isso era sinônimo de força, abundância e fertilidade”, pontua Doutor Bruno.

Nesse contexto, o psiquiatra expõe a importância da representatividade para que as pessoas possam assimilar que todos, independente de corpo, raça, identidade e expressão de gênero,  possam ser atraentes, bem-sucedidos e capazes:

“Se a todo momento é mostrado na mídia que os protagonistas de filmes e capas de revistas têm um corpo musculoso e com pouca gordura, por exemplo, isso é internalizado dentro de nós como um corpo a ser admirado, porque aprendemos desde cedo que isso é o ‘belo’, o ‘saudável’”, explica.

Por meio da Teoria do Estresse, Doutor Bruno elucida que a comunidade LGBTQIA+, como um todo, já tem índices de saúde mental piores que a população cis e heterossexual por conta de toda a violência, preconceito e sentimentos negativos internalizados vividos de forma crônica ao longo da vida na sociedade. Os ataques nos aplicativos de relacionamento são mais um exemplo da violência que pode contribuir para a piora da saúde mental, aumentando as chances de desenvolver transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade.

Ele ainda expõe que é difícil dizer como cada pessoa que sofre um ataque preconceituoso deve lidar com a violência, mas aponta que nos últimos tempos há uma discussão sobre diversidade e maior aceitação, e isso tem avançado na direção de maior contemplação de corpos, orientações sexuais e identidades diversas. “É sempre interessante que tenhamos algum suporte emocional para lidar com sentimentos negativos, seja da nossa rede familiar e de amigos, seja de um profissional”, afirma o doutor.

O psiquiatra conclui dizendo que é importante que a pessoa reconheça o que ela consegue ou quer lidar, até para poder evitar situações, por meio de bloqueio e denúncia dos perfis preconceituosos. “Cercar-se de pessoas que a aceitam e frequentar ambientes inclusivos é uma boa alternativa para que suas qualidades e sua diversidade sejam valorizadas e enaltecidas. Cada um vai lidar como conseguir, mas é significativo que essa pessoa sinta que não está sozinha e que suas queixas são justas e válidas” arremata o especialista.

APLICATIVOS SÃO RESPONSÁVEIS PELAS DENÚNCIAS

Em todos os aplicativos de relacionamento há a opção chamada ‘denunciar usuário’. Nos apps usados por homens bissexuais e gays, quando uma denúncia é feita, o sistema dá a opção de bloquear o usuário. Quando o usuário é bloqueado, a pessoa que denunciou não vê mais aquele perfil. Porém, excluir a conta e refazê-la novamente é algo simples, nada impede o usuário denunciado de criar outro perfil e voltar a atacar aquela mesma pessoa.

Doutora Bruna Cristina Santana de Andrade é advogada e fundadora do perfil no Instagram Bicha da Justiça, no qual fala sobre questões judiciais para pessoas LGBTQIA+. Ela explica que existe uma determinação da constituição federal no sentido de não discriminação como um todo, em especial das minorias.

“Existem duas legislações em específico dentro desse recorte: uma é a legislação que trata do racismo/LGBTfobia, a lei número 7.716 de 1989. E nós temos a legislação que trata da discriminação das pessoas com HIV e sorofobia, que é a lei 12.984 de 2014”, esclarece a Doutora Bruna.

Nenhum dos principais aplicativos usados pelos homens LGBT é criptografado, fato este que os torna inseguros, entretanto, é da responsabilidade do aplicativo garantir um ambiente seguro para que os usuários possam interagir como a legislação determina. É o que diz a Doutora Bruna, que ainda elucida sobre como funcionam as denúncias nos aplicativos.

“A polícia vai notificar o aplicativo, e o aplicativo vai passar as informações de ip e de acesso à conta, capaz de gerar a identificação do agressor. Sem os dados de parâmetro inicial, que é de responsabilidade, sim, do aplicativo fornecer, dificilmente conseguem se identificar os agressores”.

Uma questão muito importante que deve ficar clara é que a vítima não tem qualquer responsabilidade de investigar quem seria o agressor. Mas para quem a pessoa deve se queixar, quando passa por uma situação de violência?

A Doutora Bruna explica que o primeiro passo é entrar em contato com os canais de comunicação e denúncia do aplicativo e esperar uma resposta da plataforma. “Depois, a vítima irá relatar um boletim de ocorrência para que a polícia faça o processo de investigação e identifique essa pessoa do ponto de vista criminal. Mas independente da investigação e da responsabilização criminal do ofensor, o usuário vítima pode entrar com uma ação de indenização contra o próprio aplicativo”, esclarece a especialista. A advogada ainda conta que existem duas formas de entrar com uma ação contra o aplicativo: por meio de um advogado ou defensor ou pelo Juizado Especial, no setor de Atermação.

Conforme finaliza Doutora Bruna, para que a discriminação nos aplicativos de relacionamento diminua, é preciso uma série de ações. O primeiro passo é uma codificação no sistema que possa bloquear mensagens ofensivas, como é feito no Instagram, por exemplo, no qual o usuário coloca palavras que permitem o bloqueio. O segundo passo é uma política de identificação mais contundente, que, segundo a advogada, precisa ser mais eficiente para que possamos evitar questões de preconceito.

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Jon
Jon
8 meses atrás

No grinder e difícil demunciar pq o app assim que a pessoa bloqueia a conversa some. Já vo casos de pedofilia e não pude denunciar

Stephanie Abdalla
Reply to  Jon
8 meses atrás

Jon, agradeço por compartilhar essa informação. Infelizmente, faltam regulamentos mais rígidos para que os próprios apps levem essas questões mais a sério. Temos que seguir disseminando informação sobre isso!