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Conhecido por ser um dos papas mais humanitários até o momento, o Papa Francisco se difere de seus antecessores ao falar da comunidade LGBTQIA+ , em especial quanto ao tratamento de relacionamentos homoafetivos. Claro, o Vaticano ainda tem a visão de que essas relações não seriam bem quistas por Deus, mas Francisco se distancia das ideias antigas, que colocavam essas relações como pecado extremo, quando defende os direitos do casamento civil, por exemplo.

Em outubro de 2020, na estreia do documentário Francesco, o papa disse: “O que temos que fazer é criar uma legislação para a união civil. Dessa forma, eles ficam legalmente cobertos”. A fala vai de encontro ao que dizia o vaticano na década de 1990 e início dos anos 2000, quando um texto chamado Considerações Sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões Entre Pessoas Homossexuais foi publicado. O documento trata especificamente sobre as uniões entre pessoas homossexuais e foi assinado pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger, futuro Bento 16 (2005 – 2013).

Esse pronunciamento, feito em 2003 pelo então cardeal e aprovado pelo sumo pontífice da época, João Paulo 2º (1920 – 2005), dizia que seus fiéis deviam respeitar as pessoas com orientação sexual diferentes da heterossexualidade, mas que “reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade”.

Além da nova postura com relação a uniões homoafetivas, foi em 2018, depois que o Papa Francisco assumiu o cargo, que a Igreja Católica, pela primeira vez, se referiu à comunidade LGBTQIA+ pela sigla de preferência em um documento oficial que viria a ser uma bússola para a Assembleia do Sínodo dos Bispos daquele ano. Até a publicação do documento, o Vaticano usava “pessoas com tendência homossexuais” para se referir aos indivíduos da comunidade.

Para o sociólogo e mestrando da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Adriano Sousa, essa postura do papa atual é um avanço no sentido de humanização da comunidade. “É uma transição de uma atitude e postura hostil que a igreja sempre teve. Seja demonizando ou transformando em patologia a pessoa LGBT”, reflete.

Sousa também indica que mais mudanças positivas podem vir dessas atitudes no futuro. “Pensando principalmente a longo prazo. Considerando que a igreja católica foi uma instituição que durante a santa inquisição condenou e inclusive assassinou pessoas com sexualidades e identidade de gênero ‘desviante’, essa postura do Papa realmente é um avanço, e é um sinal de que o catolicismo está aberto a acolher de forma mais humana as pessoas LGBT”, afirma.

O sociólogo adverte, no entanto, que nem tudo é um mar de rosas e show de conscientização. “Temos de considerar que a igreja, assim como qualquer instituição, é um campo de disputas entre projetos políticos e ideológicos distintos. Com relação a essas pautas de gênero e sexualidade, estão as disputas entre conservadorismo e progressismo, principalmente. Ainda são temas muito polêmicos”, diz.

Adriano continua sua reflexão com tom otimista em relação ao sumo pontífice e pondera: “é fundamental que exista um papa mais empático, né? E favorável. Mas ao mesmo tempo temos que considerar que o conservadorismo na instituição é muito forte. Tanto que a postura do papa ainda é de não avaliar o casamento entre pessoas do mesmo gênero com o mesmo nível de importância que o matrimônio entre homem e uma mulher”, completa.

Nesse caso, ele se refere ao que é dito na exortação apostólica de 2015 “Amoris Laetitia”, onde o Papa Francisco enfatiza que “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”. O sociólogo comenta que “essa é uma representação muito estabelecida na Bíblia e é difícil isso mudar no curto prazo, mas só dessa postura do Papa de acolher mais as pessoas LGBT através dos discursos dá uma abertura para que mais mudanças aconteçam. É uma instituição que se transforma muito lentamente, mas, basicamente, eu concordo que é um é um avanço para humanizar mais as pessoas LGBT na percepção da igreja”, conclui.

A discussão ultrapassa os limites acadêmicos e da própria comunidade que segue a doutrina, como no caso do agnóstico e estudante de farmácia na Universidade de Brasília (UNB) Luiz Moennich, que vê o sacerdote como uma ponte entre novos pensamentos e velhos membros da igreja. “Ele [o Papa], na verdade, é um meio de comunicação. Eu penso que existe um processo de retroalimentação onde você, fazendo parte da nova geração da igreja, traz um pensamento novo para a comunidade velha da igreja. Ainda assim, é meio difícil pessoas que têm uma forte crença católica terem o pensamento mais liberal”, pondera.

A dificuldade de entendimento por parte da comunidade católica mais velha, para Luiz, é uma das partes mais difíceis, e que pode gerar experiências desagradáveis ou até traumáticas para outros membros da igreja. Essas experiências desagradáveis por muitas vezes “furam a bolha” da comunidade católica e acabam atingindo pessoas que nem mesmo seguem a religião católica, como no caso de pessoas LGBTQIA+ que se encontraram em outra fé.

Mas existem, é claro, situações positivas, como, por exemplo, a permissão da celebração de casamentos homoafetivos na igreja anglicana no Brasil desde 2018. Dioceses, a partir desta data, puderam escolher se fariam ou não a união entre pessoas LGBTQIA+. Outra dessas situações positivas foi o discurso acolhedor feito por Francisco no dia 22 de janeiro de 2022, no qual o sacerdote pediu que pais e responsáveis não julgassem seus filhos.

“Pais que veem diferentes orientações sexuais em seus filhos, lidem com isso e acompanhem seus filhos. Não se escondam atrás de uma atitude condenatória. Nunca condenem seus filhos”, afirmou em reunião semanal.

O CATOLICISMO NA PELE DOS LGBTQIA+

Will Dágansú de Sousa, pessoa trans não-binárie, preta, candomblecista e Educadora de Infância, dividiu com o journal48 um pouco de sua história e experiência com a Igreja Católica. Ela conta que sua relação com a igreja começou, como muitas outras, com a família.

“Antes de estabelecer uma relação voluntária com a Igreja Católica, eu estabeleci uma relação social religiosa por conta da prática da minha família, e daí eu fui induzida a manter-me relacionada com aquela instituição”, reflete, “dessa forma, fica bem claro para mim que a minha relação começou a partir de uma prática social que o Brasil adotou de maneira perversa”, continua.

O olhar de Will não é otimista quanto aos Papas anteriores, mas ela faz um adendo, reconhecendo que Francisco tem um olhar mais progressista e, com isso dito, pondera:

“Por ele ter essa visão e por perceber a gente enquanto seres humanos, adota uma postura de trazer conforto a quem está ali, dentro dessa instituição toda poderosa.”

“Quando percebo essa movimentação do Papa Francisco em trazer dignidade para essa comunidade que existe dentro da instituição católica eu fico feliz. Fico feliz porque socialmente as pessoas que fazem parte da legenda nunca foram acolhidas, nunca tiveram vez e voz, nunca foram observadas como seres humanos dignos. Então, quando o Papa Francisco versa, explica, determina e legisla que as pessoas LGBTQIANP+ existem e precisam encontrar esse conforto religioso, faz com que a gente se sinta confortável em professar a fé.”

Apesar dessa colocação, Will confessa ter tido uma relação com a Igreja Católica, que durou aproximadamente 22 anos, “de muita dor, mentira, sofrimento, fingimento e fuga”. Hoje, fiel ao Candomblé, ela percebe muito mais do que é pregado dentro do catolicismo, estando fora dele.

“Eu não acho que [minha relação com a Igreja] tinha que ter sido assim [tão dura], eu acho perverso que tenha sido assim, mas de alguma forma me serviu para admirar e para perceber o quanto que a fé que eu professo é o lugar onde eu me encontro”, finaliza a educadora.

Para Breno Luiz Morais, bissexual e estudante de Engenharia Florestal na Universidade de Brasília (UNB), a relação com a Igreja Católica foi menos intrínseca do que a de Will. Ele conta ter se distanciado, desde cedo, das práticas católicas; mesmo assim, percebe a diferença no tratamento do vaticano com a comunidade LGBTQIA+.

“A partir dos 15 anos comecei a me distanciar, tanto na questão de não querer ir à Igreja, quanto de não acreditar e criticar algumas práticas”, lembra, “mesmo assim, eu percebi a diferença, até porque, depois de adulto, eu acompanhei o Papa Francisco e o discurso dele, e tudo mudou. Não apenas com a comunidade, mas com tudo que era muito conservador, por mais que ainda seja conservador para quem vê de fora”, explica o estudante.

O universitário conta que, na época em que participava da igreja, ainda não sabia que era bissexual. “Acabei me descobrindo apenas alguns anos depois de deixar a igreja de lado. Sempre foi uma experiência boa, mas muito forçada para mim, não era apenas vontade minha que eu estivesse presente, o que seria ideal.”

Atualmente, ele não tem religião, o que o faz sentir que sua sexualidade não tem relação direta com o catolicismo. Ainda assim, sente interferências externas: “as pessoas, sendo ou não da minha família, geralmente não fazem os melhores comentários sobre como eu sou”, finaliza, ponderando que isso poderia ser diferente.

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