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Em 2017, a TV Globo produziu a telenovela “A Força do Querer”. De autoria de Glória Perez, o folhetim tinha como trama paralela a história de Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte, um homem trans que teve sua autodescoberta e transição retratadas com detalhes, passando a se chamar Ivan.

Antes de descobrir seu gênero, Ivan pegava escondido as roupas do irmão para poder usar; nas cenas em que ia à praia, usava roupas que escondiam seu corpo ao invés de biquíni; em um diálogo que teve com a prima, a questionou perguntando se ela nunca pensou em não ter os seios para poder andar sem blusa; e a cena mais impactante, para não dizer triste, foi quando o personagem socou os próprios seios diante do espelho.

Por meio de sessões com uma psicóloga e uma conversa com outro homem trans, Ivan se entendeu como um também e iniciou o processo de hormonização. Injetava em si mesmo ampolas de testosterona, o que fez com que desenvolvesse barba e engrossasse a voz. Próximo do fim da trama, fez a cirurgia de retirada dos seios, a mastectomia.

Personagem Ivan, um homem trans, interpretado por Carol Duarte, na telenovela "A Força do Querer". Ele é um homem branco, de cabelos curtos e castanhos. Na foto, veste uma camisa de mangas largas e segura um cartão na mão, que parece ser um documento.
Personagem Ivan, um homem trans, interpretado por Carol Duarte, na telenovela “A Força do Querer”. Foto: Globo

Foi a primeira vez que a transexualidade havia sido abordada em uma obra de ficção na TV aberta no Brasil. A história gerou protestos por parte do público conservador e, em compensação, parte da comunidade trans se sentiu bem representada pela história da personagem, que foi contada de forma delicada, respeitosa e com muita informação.

As histórias de ficção são alegorias dos acontecimentos e conflitos cotidianos. Se está na obra é porque existe, tem voz, e precisa ser visto. Pessoas trans existem.

A moradora de Joinville, em Santa Catarina, Maria Vitória, que prefere não revelar seu sobrenome, iniciou a transição de gênero em 2018. Ela conta que descobriu ser uma mulher aos três anos de idade, quando teve contato com as histórias de conto de fadas. As princesas que protagonizaram os enredos lhe chamavam muito a atenção. “Eu me sentia representada de fato com as coisas de menina. Então, eu sempre me vi como uma menina”, lembra.

A descoberta foi aos três anos, mas só foi assumida aos 19. De acordo com Maria, foi somente nesta fase que ela entendeu que para ser a mulher que sempre viu e idealizou, precisaria transicionar e ficar no local da sociedade de mulher trans. Ao ser questionada sobre quando se enxergou como mulher trans, ela relata: “A partir do momento em que coloquei minha primeira roupa feminina, meu primeiro batom, minha primeira calcinha, saí na rua e fui para a faculdade.”

Ao lembrar disso, ela cai na gargalhada. “Vamos ser sinceros. Naquela época eu não era arrumadinha, não. Eu não combinava”, recorda ela. Porém, justifica dizendo que como “não foi ensinada a ser uma mulher”, ela possuía uma “postura masculina”, usando roupas largas e com voz grave. “Mas a Maria Vitória, quando chegou, não queria isso. Ela queria uma identidade. Queria ser a menina que sempre sonhou”, explica.

Desenho de uma mulher trans retirando uma máscara masculina, para simbolizar a sensação de assumir a identidade de gênero, que, para muitas, começa no processo de hormonização.
Muitas mulheres trans têm receio de buscar ajuda médica para realizar o tratamento de hormonizaçao. Foto: Freepik/Ilustrativa

As vestimentas e a maquiagem são apenas a ponta do iceberg na hora da transição de gênero. O grande momento é a hormonização. É o encontro entre a mudança corporal e o gênero com o qual a pessoa se identifica.

Maria divaga que há uma certa ansiedade entre mulheres trans na hora de realizar a transição. Por isso, muitas delas não procuram ajuda médica para realizar o tratamento.

“A maioria faz o que eu fiz: chega para uma trans mais velha e pede conselhos. Elas me diziam ‘eu experimentei tal hormônio, e tal hormônio fez tal efeito no meu corpo’. Só que aí tem um problema: cada organismo é um organismo, o hormônio pode fazer bem para um corpo e mal para outro”, explica a jovem.

Ela sabia dos riscos que um tratamento hormonal mal feito poderia acarretar, mas, mesmo assim, iniciou a hormonização. “Poderia acabar levando a uma embolia pulmonar, trombose, várias doenças bem pesadas só por esta questão de não cuidar com a dose”, elucida Maria.

Outro ponto levantado pela moça é o caso de muitas pessoas acharem que a injeção em excesso dos hormônios pode trazer resultado mais rápido, porém isso pode provocar problemas já citados, pois somente através de um exame médico é possível descobrir a dose certa para cada organismo.

A ferramenta que Maria mais usou na busca pelo hormônio certo foi a internet. Em grupos de redes sociais e vídeos em plataformas digitais, foi juntando as informações necessárias para iniciar o tratamento hormonal. “Cheguei em alguns com respostas quase iguais e comecei a usar aqueles hormônios. Quando vi que um deles não estava me fazendo bem, decidi procurar um endócrino. Comecei a ficar com dores e inchaço nas pernas”, relata.

Maria era estudante de jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí, a Univali, instituição localizada no litoral de Santa Catarina. Por questões pessoais trancou o curso. A Univali oferece curso de medicina e possui um ambulatório, que atende alunos e toda a comunidade. Foi lá que ela recebeu o primeiro atendimento com uma endocrinologista.

“Foi uma das pessoas mais respeitosas do mundo. Aliás, todos foram muito respeitosos. Na época era muito difícil me chamarem de ela e aquela mulher me chamava de ela numa frequência que eu achava muito massa. Realmente era uma profissional, ela quis me ouvir, entender minhas dores”, relembra Maria, com brilho nos olhos.

Infelizmente, por conta da correria do dia a dia, a jovem deixou de frequentar as consultas médicas, mas entende que todas as pessoas que estão passando por transição de gênero precisam estar indo ao médico, seja um endocrinologista, clínico geral ou psicólogo.

PARA ALÉM DA TRANSFORMAÇÃO FÍSICA

A hormonização mexeu com o corpo e a mente de Maria. Além das já citadas dores nas pernas e a sensação de inchaço, ela sentia dores no peito, por conta do crescimento dos seios. O corpo e a cabeça também doíam. Como nunca havia passado por isso na vida, todos esses efeitos mexeram com seu psicológico a ponto de ficar estressada. Outra mudança curiosa que ocorreu: sentia-se sensível à bebida alcoólica. “Antes eu saía para beber e virava a noite bebendo. Hoje em dia tomo duas ou três latinhas e já dou PT”, conta.

Outra dor que Maria passou foi para esconder seu órgão genital; ela relata que já se machucou com algumas técnicas de disfarce. Atualmente, Maria utiliza peças íntimas que não a machucam.

Os momentos em que precisou esconder o órgão genital lhe causaram disforia de gênero. Maria descreve a disforia como remorso por não se ver do jeito que é. Como se todo o esforço não adiantasse nada. “Quando a disforia bate, não importa o que você faça, não importa se você está se machucando, você só quer ficar com aquele corpo que você não tem. Isso é muito doloroso. Essa dor emocional é maior que a dor física”, conta.

Apesar dos efeitos colaterais que mexeram negativamente com seu corpo, quando Maria percebeu que não precisaria mais usar enchimentos para dar formas aos seios, não precisaria mais colocar perucas para ter cabelos longos e que seu corpo estava feminino do jeito que sonhou, se sentiu feliz e realizada.“Só de olhar para baixo e ver um carocinho ali, ver que meu peitinho já estava ali, eu já me achava, já me sentia bonita. E é isso que valia. A mesma coisa de esconder: doía, só que era um prazer ficar com aquele corpo, me olhar no espelho, olhar de novo e a roupa ficar bonita. É isso, um prazer que é curado de outra forma”, descreve Maria.

MAIS UM RELATO DE TRANSFORMAÇÃO

Quem passou pela mesma situação que Maria Vitória foi o paulistano Joseph Kuga. Hoje, aos 31 anos, seu corpo apresenta traços masculinos após seis anos de tratamento hormonal e mastectomia. Mas o início foi bem complicado.

Joseph nasceu em berço cristão. Ele participava de apresentações musicais na igreja em que seus pais eram membros ativos. Certo dia, uma moça que também ia ao mesmo templo beijou Joseph no banheiro. O beijo foi testemunhado por uma terceira pessoa que espalhou o boato para todos. O caso gerou uma crise na família de Joseph, que passou a tratá-lo como uma pessoa doente ou possuída.

Durante a adolescência e início da vida adulta, Joseph se identificava como mulher cis homossexual. Estava sempre em um relacionamento amoroso. “Alguns deles foram bem tóxicos, outros foram para provar algo para mim mesmo”, revela ele.

E foi justamente em um desses relacionamentos que Joseph entendeu que poderia ser um homem trans. Uma de suas namoradas, uma moça que ele descreve como mente aberta, apresentou questões de sexualidade humana, que segundo ele, são questões que não são apresentadas no dia a dia. “Ela começou a me ensinar e eu falei: ‘ah, então pode ser de fato que eu tenha nascido com o sexo biológico feminino, mas que psicologicamente me identifico como homem’. Pois eu ia para academia e via aqueles corpos sarados e falava ‘nossa que bonito’, mas não sentia atração nenhuma”, Joseph relata.

Foto de um homem trans, ainda com características física femininas, se olhando no espelho e vendo o reflexo masculino que deseja alcançar através do processo de hormonização.
O processo de hormonização deve ser realizado em paralelo ao acompanhamento psicológico, já que resulta em uma transformação corporal e mental. Foto: Dreamstime

Os questionamentos sobre a própria identidade de gênero fizeram com que Joseph procurasse uma psicóloga para conseguir entender o que sentia. A experiência de recorrer a este serviço lhe fez tão bem que até hoje recomenda.

Assim que descobriu ser homem, Joseph procurou o SUS para iniciar a hormonização. Porém, devido a extensa fila para poder começar o processo, decidiu contratar um convênio de saúde e realizar a transição por um sistema particular.

Com o convênio, conseguiu um laudo psicológico e iniciou o acompanhamento da hormonioterapia com ajuda de um endocrinologista. “Ele era um dos poucos em São Paulo que atendia especificamente pessoas trans. Ele não atendia só aqui, atendia no Nordeste também e a clínica acabou trazendo outros profissionais para a área”, conta Joseph.

Logo nas primeiras injeções de testosterona, Joseph sentiu significativas oscilações de humor e potencialização de ansiedade com princípios de depressão. “Eu já era uma pessoa ansiosa, fiquei mais ainda. Tive um ataque de ansiedade, que me obrigou a voltar à psiquiatra. Desde então, a profissional me acompanha”, recorda.

Fisicamente, o corpo de Joseph começou a ter mais pelos; as mamas começaram a diminuir e ficar flácidas; o maxilar doía, pois os hormônios fazem expandir a anatomia do rosto; teve aumento da força física, coisa que Joseph até hoje não consegue controlar. “Às vezes, quando vou pegar no braço da minha noiva, acho que estou pegando fraco, mas estou machucando”, descreve.

Ao longo de seu tratamento hormonal, Joseph descobriu que precisava maneirar no consumo de bebidas alcoólicas. No meio da hormonização, viajou para fora do país e exagerou no álcool, quando retornou ao Brasil e fez os exames, viu uma alteração no fígado, órgão que absorve a testosterona.

“Quem é uma pessoa trans, principalmente homem trans, precisa ter uma vida muito saudável. Você precisa comer bem, tomar muita água, e ser uma pessoa regrada com exercícios físicos”, alerta o jovem.

Se Maria Vitória ficou feliz ao ver seus seios nascendo, Joseph ficou emocionado ao retirá-los. Ele conta que, antes da transição, achava essa parte de seu corpo bonita, porém optou pela retirada para ter o corpo da forma que queria. Por um período, usou binder, uma faixa que muitos homens trans usam para esconder os seios. Entretanto, a faixa provocou-lhe dores na coluna e, por isso, mudou o método de camuflagem usando um top.

Ver seu corpo tomando a forma que sempre desejou é uma grande conquista para uma pessoa trans. Mas para que Joseph chegasse lá, foi necessário pagar uma grande despesa. Claro que, se fosse pelo Sistema Único de Saúde, ele não teria esse custo. Mas precisaria ter paciência.

Atualmente, Joseph é empresário e especialista em diversidade e inclusão; ele dá aulas em empresas e hospitais sobre o universo de pessoas trans. Joseph conta que nunca perdeu um emprego por ser trans, pois escolheu empresas que pudessem lhe dar esse suporte, mas entende que o cenário é bem caótico para a população trans, pois somente 4% desse grupo está empregado formalmente, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais

“Eu devo dizer que sou um homem trans hetero privilegiado. Eu trabalho, tenho pós-graduação, estudo, gosto do que eu faço, e eu tenho privilégio de escolher trabalhar onde eu quero. Esse não é um privilégio de muitos aqui no Brasil, muito menos da população da qual faço parte” finaliza.

A HORMONIZAÇÃO, DO PONTO DE VISTA ESPECIALISTA

No Brasil, o processo transexualizador, realizado pelo SUS, garante o atendimento integral de saúde às pessoas trans, incluindo acolhimento, uso do nome social, hormonioterapia e cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social.

Alguns requisitos básicos para tudo isso são: ser maior de 18 anos para iniciar o processo terapêutico e realizar hormonização; ser maior de 21 anos para cirurgias de redesignação sexual, com indicação médica; e passar por avaliações psicológicas e psiquiátricas durante um período de dois anos, com acompanhamentos e diagnóstico final de encaminhamento ou não para a cirurgia tão aguardada.

Tanto Maria Vitória quanto Joseph procuraram o SUS, mas desistiram da ideia de realizar suas transições de gênero desta forma por conta da demora nos atendimentos. Outro detalhe que ambos relataram foi que passaram por psicólogos antes da transição. Os dois alegaram que a terapia foi crucial durante a descoberta.

A endocrinologista, doutora Paula Cruz, do ambulatório da Universidade do Vale do Itajaí, a Univali, mesma instituição em que Maria estudou e foi paciente, explica que quando uma pessoa se descobre trans, é necessário que ela tenha um atendimento multidisciplinar com clínico, psicólogo e endocrinologista, a porta de entrada pode ser com qualquer um desses profissionais.

Ela ainda afirma que existem os chamados “melhores hormônios”, que são os naturais e que causam menos efeitos colaterais. “Tentamos fazer o mais parecido com o fisiológico. A ideia é que fiquemos mais próximos do natural para evitar efeitos colaterais”, elucida a médica.

Se a transição não for acompanhada por um profissional, o paciente pode ter trombose, e junto com esse efeito podem vir riscos de AVC, infarto, alteração de colesterol, câncer de mama e questões psicológicas, como depressão e ansiedade. “Antes de dar início a qualquer terapia, pedimos exames de imagem. Solicitamos uma vez por ano ou a cada seis meses, para minimizar ao máximo as complicações da terapia”, esclarece a doutora Paula.

Os efeitos colaterais podem ser diferentes para os gêneros. Nos casos das mulheres trans, que nasceram com o sexo biológico masculino, mas que se identificam com o gênero feminino, é aplicado hormônio feminino, o estrogênio, e bloqueado o hormônio masculino, a testosterona. O estrogênio pode aumentar esses riscos de trombose, infarto e AVC, e gerar alterações metabólicas, como ganho de peso e diabetes.

Já em situações em que o paciente é um homem trans, que nasceu com o sexo biológico feminino, porém se identifica com o gênero masculino, é dado o hormônio masculino, a testosterona, que já inibe o estrogênio. A testosterona pode aumentar o risco de pressão alta, AVC e câncer de mama. Ou seja, os efeitos colaterais são diferentes de acordo com a terapia que vai ser usada.

No momento da aplicação, é preciso estar atento à quantidade de hormônio, é a chamada dosagem segura, que varia de pessoa para pessoa, dependendo do quanto das características físicas do sexo biológico o paciente possui. Para entender melhor, a doutora Paula exemplifica: “Um trans feminino que não tem tantas características masculinas, tanta barba, por exemplo, às vezes fica maravilhoso só dando o estrogênio. Já em uma pessoa com mais carcaterísticas masculinas, a dosagem será outra.”

O tratamento hormonal é contínuo e vitalício. Em caso de interrupção da hormonização, há perda das características do gênero atual. No caso de homens trans, a menstruação pode voltar, e, em mulheres trans, pode haver o surgimento de pelos e aumento da libido.

Então, para que não haja a interrupção, a doutora Paula apela para que antes de procurar tratamento hormonal, o paciente busque ajuda psicológica, e se não puder fazer o acompanhamento com endocrinologista, faça pelo menos com um clínico geral.

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