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Vou te contar uma história sobre uma sociedade onde homens e mulheres possuíam deveres sociais diferentes. Os homens eram tidos como provedores e as mulheres eram vistas como responsáveis pelo andamento e bem-estar da família e da casa. Enquanto os maridos saíam para trabalhar, as esposas cuidavam da organização e limpeza de suas residências, garantindo que as refeições saíssem nos horários corretos, que não faltasse nada aos filhos e, ao final do dia, que seus maridos tivessem suas “necessidades” atendidas.

Pois bem, o que parece ser o roteiro de uma novela de época, é na verdade um retrato de valores sociais que atualmente ainda são cultivados. É verdade que aos poucos as mulheres foram conquistando cada vez mais espaço social e se destacando em seus ambientes de trabalho. Apesar dos direitos conquistados, mais de 70% das mulheres ainda são encarregadas das tarefas de casa, sendo que 63% delas também cuidam sozinhas de seus filhos.

Esses dados alarmantes foram divulgados por uma pesquisa realizada pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), que também mostra que apenas 16% das mais de 800 mulheres entrevistadas dividem com os maridos os cuidados com suas crianças.  

Aline faz parte desta estatística. É professora de uma escola particular e teve sua primogênita aos 15 anos. Ela e o namorado ficaram juntos por quatro meses após o nascimento da filha. Na época, ambos eram adolescentes, mas apenas ela se privava e sacrificava desejos: “Se tinha uma festa, bailinho na época, eu não podia ir. Tinha que ficar em casa cuidando dela, mas ele ia. Quando ele voltava tinham as brigas, porque eu também queria ter ido. Era um ciúme também. Queria estar vivendo aquilo e eu não podia”.

Atualmente com 39 anos, ela afirma que quem está sendo mãe hoje tem a oportunidade não só de ter uma gestação mais humana, mas um pós-parto também. Quando o assunto são os cuidados com a criança e as divisões das tarefas, Aline conta que não teve ajuda: “uma mãe solo também não tem ajuda, mas uma pessoa que tem um companheiro, não espera por isso; ajudar é o mínimo”.

A professora conta que antes de engravidar frequentava aulas de futebol, as quais se viu obrigada a largar. “Quando nasce uma criança, nasce uma mãe. É obrigatório você ser outra pessoa a partir daquele momento. Você não pode ser mais quem você é, mesmo que você não saiba quem você é”, e depois de um tempo completa, “eu não pude me descobrir. Eu me anulei em todos os sentidos”.

Essa reflexão de Aline é retratada na série “Sessão de Terapia”, exibida pela GloboPlay, que traz em sua última temporada a personagem Manu. Mulher forte, independente, mãe e estilista, que priorizou o trabalho e só depois resolveu adentrar a maternidade. Em dado momento, ela comenta em terapia que apesar de sua casa ter bastante espaço, agora só tem coisas de criança. O terapeuta devolve a observação com uma pergunta: “É assim que você se sente? Sem espaço para você?”.

A série aborda exatamente esse ponto: no qual a mãe se sente anulada e sem espaço para si. Por se sentir assim, Manu acaba sendo muito julgada por aqueles que a rodeiam e desenvolve um sentimento de culpa, acreditando não ser boa mãe por não querer se anular em prol da maternidade.

MÃES TAMBÉM TRANSAM, MAS NO TEMPO DELAS

Verdade seja dita, o ‘era uma vez’ não é história do passado, é presente. Laura é Designer e mãe de duas crianças pequenas. Em sua opinião, se o homem tivesse um papel mais ativo nos cuidados com o neném ou se tivéssemos uma rede de apoio mais presente, a mulher teria um “respiro” e a chance de conseguir se olhar.

“Os cuidados que se precisa ter com o neném são tão fortes que você se anula um pouco”, explica a designer, “você está ali cuidando [do neném], mas também precisa de alguém que cuide de você. Se você não tem isso, é muito difícil voltar a uma vida sexual ativa e confortável onde você precisa ser a mulher incrível que cuida do filho, da casa, do trabalho e ainda transe loucamente”, completa.

A pesquisadora, ginecologista e obstetra Juliana Giordano conta que é muito importante falar sobre as questões que envolvem a performance sexual, pois este é um ponto muito colocado para as mulheres antes da maternidade. “O pós-maternidade envolve o descobrimento de um novo corpo, desse vazio, das estrias, do leite caindo e onde está a mulher nisso tudo. Com isso, cai um pouco essa necessidade e preocupação com a performance. Para a mulher, o sexo só vai fazer sentido depois de ser mãe, se estiver dando prazer, caso contrário, não vai fazer sentido”, afirma.

A profissional conta que após o parto é importante respeitar o período de puerpério que, em regra, dura cerca de 42 dias, mas que na prática pode variar de mulher para mulher. Ela conta que no seu caso, o resguardo chegou a durar de 7 a 8 meses. Juliana explica que, na sua opinião, a volta do ciclo menstrual é o grande marco, pois acaba se relacionando com o retorno hormonal e da sexualidade da mulher.

Em complemento, Laura relata que além da sobrecarga dos cuidados com o bebê e da auto-anulação, ainda existe uma carga mental muito grande e uma pressão para que a mulher acompanhe o marido, ou seja, se ela não atender às necessidades sexuais básicas dele, será trocada por outra.

No entanto, o que ela ressalta é o quão injusta é essa pressão social, pois o corpo da mulher demora muitos meses para voltar ao lugar: “o peito não está no tamanho normal, a barriga ainda está um pouco flácida, os hormônios estão bagunçados e além de não estar se sentindo bonita, também não está cabendo nas suas roupas. Não é sexy”.

A professora Aline casou-se uma segunda vez e teve outras duas filhas com seu segundo marido. Ela conta que transar era quase uma obrigação e que se sentia compelida a fazer sexo oral nele. Para ela, o sexo era dolorido e remetia às dores do parto. “Inclusive, teve um caso de estupro. Ele me estuprou”, conta.

Ela lembra de ter desmaiado na sala e quando acordou estava sem roupa. “Não sei o que ele fez e o que ele não fez”, relata. Aline disse ter falado para o então marido que o que havia ocorrido era estupro, mas escutou: “não foi estupro porque você é minha mulher”. Segundo ela, até hoje ele não admite a situação. No entanto, Aline estava certa.

Falar sobre o pós-parto é importante para a conscientização social e a derrubada da romantização envolvendo a maternidade. Hoje, conta com orgulho que seu processo de autoconhecimento começou quatro anos após o nascimento de sua terceira filha. Ela prestou o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e passou na faculdade. “Só uns 12 ou 13 anos depois [do nascimento da primeira filha] que eu comecei a me conhecer”, relata.

Emocionada, ela conta que quando você cria uma consciência, deixa de se anular e começa a se conhecer, fica insustentável viver do mesmo jeito. Para ela, a separação foi um processo de libertação pessoal. Sobre o ex-marido, Aline complementa: “Eu não o culpo. Não culpo o homem. Eu culpo o sistema e a forma que educaram esses homens. Ele é um bom pai e, querendo ou não, me deu uma estrutura para que hoje eu esteja bem e viva, mesmo que essa estrutura seja patriarcal e machista”.

PARCERIA E APOIO: A CHAVE PARA A LEVEZA

Formada em marketing e mãe de duas crianças, Nayara conta que sempre soube que iria se dedicar totalmente ao cuidado dos filhos quando essa fase chegasse. Tendo essa vontade em mente, optou por sair do regime CLT (Código de Leis Trabalhistas) e passou a empreender. Com o nascimento da primeira filha, ela passou a conciliar a maternidade com o empreendedorismo e não nega, foi difícil.

No entanto, conciliar a vida profissional e a maternidade só foi possível, pois Nayara teve o apoio e a ajuda do marido. Ela explica que quando foi mãe, se dedicou 100% ao papel e, eventualmente, acabou se deixando um pouco de lado. “Estamos juntos a 12 anos, ele sempre respeitou muito meu momento e sabia que naquela fase que as meninas nasceram eu não seria a esposa dele. Quando eu estava mal por não estar me entregando ao papel de esposa, ele me consolava e apoiava”, conta.

Hoje, sua filha mais nova tem 2 anos e, apesar de ter pausado sua vida profissional em decorrência da pandemia, diz que se cuidar passou a estar no mesmo patamar de importância que a maternidade. “Se eu puder fazer a diferença com uma mensagem positiva para um, já valeu a pena. O ponto chave da rede de apoio que estou criando é mostrar que ela é esposa, ela é mãe, mas ela é mulher também e pode e consegue ficar bem”, afirma.

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Denise Carrenho Rosa
Denise Carrenho Rosa
2 anos atrás

Que bela matéria… tema bem especial e muito bem escrita … sem mencionar o áudio que deu um toque todo especial! parabéns a repórter Renata Duffles e ao jornal !