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O ano de 2021 foi marcado por diversos estudos sobre os impactos da pandemia na vida das pessoas. E um grupo foi especialmente afetado: o das mães. Em maio, o El País encomendou uma pesquisa para o Atlas Político sobre o assunto e constatou que 80% das mães brasileiras estavam cansadas e sobrecarregadas com a vida doméstica na pandemia contra 48% dos pais. Entre elas, 74% afirmaram que o trabalho doméstico e com os filhos aumentou por conta da suspensão das aulas presenciais.  

Em abril do ano passado, o journal48 já tinha retratado o dilema da volta às aulas no período da pandemia, um debate que extrapolava as questões educacionais e de saúde, e ganhava contornos de embate político-social. A pesquisa do Atlas desnudou essa realidade ao constatar que quanto maior a renda familiar, mais pais eram contra a retomada das aulas presenciais. Para 88% das famílias com renda superior a R$10 mil mensais, não era o momento de reabrir as escolas. Já para 72% dos pais que ganhavam entre R$2.000 e R$3.000, as aulas presenciais deveriam ser retomadas nos colégios.  

Isso porque, no cenário de pandemia, a desigualdade também determinou quem podia e quem não podia trabalhar no modelo de home office e, claro, a maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chance de figurar em todas as piores estatísticas: as pessoas mais pobres e negras, sobretudo mulheres.  

“Havia mudado de emprego recentemente e fui demitida por causa da pandemia. Fiquei desempregada e desesperada. Consegui um novo emprego, também presencial e em outra cidade, então foi muito difícil conciliar os filhos em casa, o medo de contaminar a todos, de deixá-los à mercê da internet. Como o trabalho era longe, eu ficava ainda mais horas fora de casa e, consequentemente, acompanhava menos os acessos à internet e a rotina de estudos em casa”. 

Essa foi a realidade da Maristela Leão, 39 anos, mulher negra e mãe solo de dois filhos, uma de 16 anos e um de 13. Para ela, as maiores dificuldades enfrentadas nesse cenário eram manter a saúde física e mental dela e dos jovens, além de arcar com todas as responsabilidades financeiras da casa.  

“Me senti sobrecarregada. Toda a demanda de trabalho doméstico duplicou aliada ao medo da contaminação, que gerava uma necessidade de limpeza excessiva. As crianças, 24h em casa, criando demandas cada vez maiores de alimentação, entretenimento e higiene. No nosso caso, com os dois em escola pública, sofremos ainda com a falta de acompanhamento dos estudos à distância pela rede pública de ensino”, relata.  

No Brasil, existem mais de 11,5 milhões de mães solo que, assim como Maristela, carregam sozinhas o acúmulo de tarefas, a sobrecarga mental e o peso da responsabilidade pelo sustento do núcleo familiar. 

No campo da saúde mental o impacto foi mais democrático. Independentemente de classe ou raça, grande parte das mulheres foram afetadas. Os dados do Atlas Político foram confirmados por outros estudos, como o da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, que mostrou que 83% das mães de crianças e adolescentes sentiram maior sobrecarga do cuidado dos filhos; e o da consultoria Think Eva, que publicou o e-book Mães na Pandemia, no qual identifica que 39% das mães entrevistadas apresentaram sintomas de estresse pós-traumático, 26% tiveram sintomas de ansiedade e 25%, sintomas depressivos. 

SOBRECARGA FEMININA PRÉ-PANDÊMICA

Um levantamento do site Gênero e Número constatou que 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém (familiares ou pessoas próximas) durante a pandemia. “O cuidado está no centro da sustentabilidade da vida. Não há a possibilidade de discutir o mundo pós-pandemia sem levar em consideração o quanto isso se tornou evidente nesse momento de crise global. Trata-se de uma dimensão da vida que não pode ser regida pelas dinâmicas sociais pautadas no acúmulo de renda e de privilégios”, defendem as autoras do estudo.   

No entanto, apesar de reforçada pelo cenário pandêmico, a responsabilidade de cuidar já era vinculada às mulheres muito antes da crise sanitária. O papel social de cuidadoras (do lar, dos filhos e da relação conjugal) faz parte de um cenário cruel que nenhuma das ondas ou dos movimentos feministas foi capaz de mudar.  

Em 2018, a publicação Outras Formas de Trabalho, apurada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou que as mulheres brasileiras ainda trabalham quase o dobro de horas que os homens nos afazeres domésticos e cuidados de parentes. Enquanto elas dedicam em média 21,3 horas com essas tarefas, eles investem cerca de 10,9 horas do tempo nas mesmas atividades. 

“Há um fenômeno estrutural, que é as mulheres fazerem mais afazeres domésticos que os homens. A taxa de participação dos homens até vem caminhando um pouco no sentido de melhorar, mas ainda é um problema estrutural no nosso país”, explicou Marina Aguas, analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE em matéria para o site Uol Economia, sobre o estudo. 

Além da questão do cuidado, antes da pandemia, mulheres já enfrentavam os empasses de conduzir jornadas múltiplas de trabalho, menos reconhecidas e remuneradas, na maioria das vezes. Salários menores, postos mais baixos, ocupações precárias e informalidade são alguns desses empasses, como apontou a docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Jordana Cristina de Jesus, em matéria para a Gama Revista, do Uol. 

Segundo ela, todas essas dificuldades têm a ver com a divisão social, sexual e racial do trabalho. “É como se elas [as mulheres] fossem constantemente penalizadas por ocuparem lugares não legítimos no mercado de trabalho. E, entre elas, as mais penalizadas são as mães, negras e solo”, completa.  

Outro estudo do IBGE, por exemplo, confirmou que apesar da diferença salarial ter sido reduzida, as mulheres, em 2018, ganhavam, em média, 20,5% a menos do que os homens naquele ano, enquanto, em 2017, a diferença era de 21,7%. Contudo, uma avaliação interseccional da situação indica uma realidade ainda mais desigual: 

De acordo com a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, publicada em 2019 pelo mesmo órgão, mulheres negras ganham menos da metade do salário de homens brancos no Brasil. Ainda, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, realizada pela consultoria IDados em 2018, constatou que as mulheres que são mães podem ter um salário até 40% menor se comparado ao das mulheres que não são mães, sendo que o nascimento do primeiro filho pode reduzir o salário em 24%. Quanto mais filhos, menor é o salário recebido por elas.  

dados sobre mães na pandemia

A INCOMPATIBILIDADE ENTRE MATERNIDADE E CARREIRA

“Trabalhe como se não tivesse filhos. Crie os filhos como se não trabalhasse”. A frase tem circulado amplamente na internet e sido replicada como o mantra de um ideal utópico no que diz respeito à maternidade. 

“Não é a carreira acadêmica que é incompatível com a maternidade. É o ideal de maternidade que é incompatível com qualquer carreira, pois temos arraigada na nossa cultura uma ideia do que é ser mãe, o que uma mãe deve ser, o que uma mãe deve fazer”, afirma a socióloga Marília Moschkovich, mãe de 34 anos, que há tempos investiga o assunto academicamente, em entrevista para a mesma matéria da Gama. 

Luana Simonini, 35 anos, publicitária, feminista e mãe de duas filhas de 2 e 4 anos, constatou essa realidade na rotina durante a pandemia. Ela conta que antes da crise sanitária trabalhava presencialmente e que essa era uma fuga para terceirizar os cuidados da filha mais velha.  

“Eu era obrigada a sair para trabalhar, logo, alguém precisava ficar com ela. Tudo caminhava conforme o padrão. Quando minha filha caçula nasceu, a pandemia chegou. Era uma mãe puérpera, com uma recém-nascida pendurada na teta e outra criança de dois anos no braço, trancadas em casa. O padrão, a partir daquele momento, era surtar”, diz. 

Ela passou a trabalhar em casa e, mesmo contando com uma rede de apoio e a parceria do marido, sentiu o peso do papel duplo: ser mãe e mulher. “No patriarcado, o caminho natural é a sobrecarga feminina. Como mulher, não fujo à regra. É algo naturalizado que cabe a nós cuidar, zelar, organizar, planejar e tantos outros verbos que ocupam energia emocional, física e mental”, conta a publicitária.  

“Com uma recém-nascida em casa, a conta não só não fechou como me partiu ao meio. A pandemia revelou o que eu e meu companheiro já sabíamos: a sobrecarga materna e feminina no que diz respeito aos filhos e à casa”, completa. Para ela, desconstruir esse processo exige conflito, luta e escuta, dos dois lados. “A sobrecarga não é pela pandemia, é pela herança cultural. Então, sim, me senti ainda mais sobrecarregada e até hoje batalho para quebrar esse ciclo”, admite.  

MULHER E MATERNIDADE: A CONTA QUE NÃO FECHA 

Luana Simonini é mulher branca e casada; Maristela Leão é mulher negra e mãe solo. Diferenças sociais e estruturais as separam, mas uma condição as aproxima em uma mesma reflexão: a soma de ser mãe e mulher é uma conta que nunca fecha.  

Para Maristela, “a situação que uma mãe solo sofre com o abandono dos seus filhos pelo progenitor, nunca é uma questão. Os sonhos e planos que uma mãe solo abandona para criar seus filhos, nunca serão importantes. Se a sociedade cobrasse um terço dos pais que abandonam emocionalmente seus filhos como cobram as responsabilidades das mães, seria tão mais justo. Isso é revoltante. A sociedade é cruel com as mulheres e ainda mais com as mães solo”, desabafa ela. 

Luana completa: “Não tá tudo bem. A sociedade adoeceu gerações atrás quando entenderam a mulher como quem cuida. Não é biologia, é maternidade compulsória. Não tá tudo bem em se sentir sozinha. Não tá tudo bem você assumir a culpa por estar sobrecarregada porque – afinal – é só pedir que ele faz. Não tá tudo bem o pai não saber nem o nome da professora do filho porque ele não se interessa. Não tá tudo bem um pai não se envolver na rotina das crianças porque não tem tempo, trabalha demais. Não tá tudo bem em não receber pensão, ou sentir medo do pai pegar a guarda da criança. Mulheres apoiam mulheres. Quero que as leitoras do journal48 contem comigo, mesmo à distância, mesmo em pensamento. Estarei por vocês e pelas minhas filhas sempre”, sentencia.  

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