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Foi para mostrar as partidas dos Jogos Paralímpicos de Tóquio, que o fotógrafo piauiense João Maia, 46 anos, deficiente visual desde 2004, desembarcou no dia 19 de agosto na capital japonesa. Além de registrar através de seu olhar a rotina dos atletas e alguns torneios, ele também viajou com o objetivo de evidenciar a cultura oriental e a acessibilidade do país. Antes disso, seu talento já havia sido observado, quando foi o primeiro fotógrafo com baixa visão a cobrir as Olimpíadas Rio-2016.

Atualmente, além de fotojornalista, João é formado em história e ministra palestras e oficinas de fotografia para pessoas com ou sem deficiência. O sonho de viajar para Tóquio só foi possível através de planejamento e esforço, que envolveram profissionais de várias instituições, como o Guia do Deficiente, a Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (Andef), a Prefeitura de Bom Jesus (Piauí) e a Fundação Dorina Nowil, referência no tratamento e reabilitação de pessoas com deficiência visual e na qual o fotógrafo é embaixador.

“Além disso, vendi camisetas e meus amigos ajudaram nessa corrente. Como diz a canção de Raul Seixas: ‘sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto, é realidade'”, relembra João.

Na capital japonesa, ele se juntou com outros colegas do ramo, como os fotógrafos esportivos Buda Mendes e Wander Roberto. “Acho incrível que muitos profissionais brasileiros e de demais países conhecem o meu trabalho. Às vezes, inclusive, recebo relatos positivos de pessoas falando sobre a Fotografia Cega”, conta.

De acordo com o fotógrafo, a segurança sanitária dos jornalistas, equipes esportivas e outros participantes em relação à prevenção da Covid-19, durante a cobertura dos jogos, foi bastante rígida, com aferição de temperatura constantemente e disponibilidade de álcool em gel.

“Essa festividade foi totalmente diferente por ocorrer em um momento de pandemia. Tínhamos o receio de contrair o coronavírus, porém, os cuidados foram excelentes, as ruas eram limpas, os ônibus chegavam no horário previsto e sem estarem lotados. Hoje, posso dizer que neste país as pessoas são muito educadas e respeitosas. Até o momento, só penso em coisas positivas e com certeza esse evento ficará na minha história”.

VIDA DE FOTÓGRAFO

Foto: Arquivo pessoal – João Maia

Natural de Bom Jesus (Piauí), João Maia mora em São Paulo desde a adolescência. A perda total da visão do olho direito ocorreu devido a uma uveíte bilateral – doença inflamatória na úvea, camada do olho que reveste a coróide, o corpo ciliar e a íris. Já no olho esquerdo sofreu uma lesão no nervo ótico, o que faz com que até 1,2m de distância ele só perceba vultos coloridos.

Na época em que adquiriu a deficiência, João tinha 29 anos e exercia a profissão de carteiro. A partir disso, começou a praticar esportes, dentre eles corrida de rua e natação, mas se identificou mesmo no arremesso de peso, lançamento de dardo e disco, tendo participado de campeonatos regionais como atleta de rendimento durante sete anos.

Consequentemente, a admiração pela fotografia só aumentou. “Acho que não somos nós que escolhemos a carreira; é ela que nos escolhe”, comenta, “a minha paixão pela fotografia está além da visão, a perda desse sentido não me impediu de seguir a minha vocação. Até então, mesmo com certas dificuldades, me sinto feliz quando as pessoas veem as minhas imagens e se surpreendem, às vezes até indagam: ‘poxa, como você conseguiu fazer isso?'”, completa.

Por meio de seu trabalho, João percebe que consegue incentivar e proporcionar uma transformação na vida das pessoas ao capturar uma imagem, uma vez que cada ser humano sentirá algo diferente, seja vendo em redes sociais, livros ou em qualquer lugar. “É nesse momento que se estabelece empatia e carinho pelo nosso trabalho”, conclui.

VISIBILIDADE ALÉM DAS NOTÍCIAS

Em 2017, o jornalista e ativista Rafael Ferraz Carpi iniciou nas redes sociais o projeto jornalistainclusivo.com, abordando questões referentes à reabilitação, direitos e tudo que envolve as pessoas com deficiência. A ideia ganhou força e, em 2020, foi lançado o site oficial, com parcerias de profissionais com e sem deficiência.

“Quando fiquei paraplégico, em 2011, esse novo universo era uma incógnita para mim. Mas segui trabalhando em casa, além dos estudos e pesquisas com assuntos vinculados às pessoas com deficiência. Percebi que podia contribuir juntando a minha profissão com a minha condição. Assim, passei a compartilhar as informações que tanto busquei quando me tornei uma pessoa com deficiência, escrevendo para blogs e sites relacionados, assinando como jornalista inclusivo”.

Rafael explica que embora a realidade esteja longe do ideal, tem visto nos grandes veículos de comunicação um progresso em conteúdos ligados às pessoas com deficiência, contudo, com menos evidência em comparação a outros grupos “minorizados”, como pessoas pretas, LGBTQIA+ e idosos, por exemplo.

“As pautas, em sua maioria, aparecem em datas comemorativas, crimes ou denúncias. Para mim, é mais bonito ver um paratleta cego correndo e batendo recordes do que ver outro que enxerga, bem como ver um amputado fazendo o que um não amputado faz. A Seleção Brasileira é top no futebol de 5, mas você não vê isso no dia a dia. Então, a minha visão para a cobertura dos jogos vai nesse mesmo sentido. Além de que, a mídia continua a acrescentar termos inadequados para se referir a esse público, com estereótipos que desvalorizam essas pessoas”, comenta.

O jornalista também destaca que a inclusão não deve ser tratada como superação. Ou seja, a mídia e toda a sociedade precisam entender que a pessoa com deficiência que trabalha, pratica um esporte, que se reabilita ou não, está apenas vivendo e nem por isso deve ser vista como super-herói.

Para Rafael, a trajetória de João Maia é um exemplo e mais uma prova de que é possível garantir a inserção de profissionais com deficiência através da tecnologia assistida, entretanto, no Brasil, o cenário ainda é desfavorável, sendo poucos os que têm essa oportunidade.

“O Brasil só será inclusivo quando crianças sem deficiência conviverem com coleguinhas com deficiência na escola, no shopping, nas ruas, enfim, diariamente. Para isso, é necessário acessibilidade física, arquitetônica e atitudinal. Começando pela educação de base, e, concomitantemente, respeitando as leis e os direitos à saúde, trabalho, cultura, etc.”, completa.

O TRATAMENTO DAS PARALIMPÍADAS NOS CONGLOMERADOS DA COMUNICAÇÃO

Foto: João Maia – Mulher Brasileira CT Paralímpico Modalidade Velocista Categoria deficiente visual e Guia SP Capital

Os tradicionais veículos de comunicação, por sua vez, escalam profissionais especialistas para expor suas opiniões e análises acerca das disputas olímpicas, como é o caso da Folha de São Paulo, que reforçou a cobertura das Paralimpíadas de Tóquio com três colunistas: Cristiano Barreira, Felipe Oliveira e Jairo Marques.

Cristiano Barreira é psicólogo e professor associado da Escola de Educação Física e Esportes da USP de Ribeirão Preto, e Felipe Oliveira é graduado em música e tem baixa visão, além de mais de 10 anos de experiência como repórter na editoria de Mercado e autor do blog Haja Vista. Já o jornalista Jairo Marques é pós-graduado em Jornalismo Social, tem paraplegia, possui mais de 18 anos de experiência e, atualmente, escreve para coluna Cotidiano sobre acessibilidade e conduz o blog Assim Como Você.

Durante os 12 dias das competições, os três profissionais publicaram textos opinativos e reflexivos bastante importantes para serem discutidos. Por exemplo, dentre os mais de cinco artigos escritos por Jairo, o que se sobressai é “Paralimpiadas mostram um Brasil ideal que só do Japão se vê”, que diz:

Atletas paralímpicos, todos com alguma deficiência, são responsáveis ​​por guardar em uma mala da história brasileira a marca de cem premiações de ouro ao longo dos jogos. São responsáveis ​​por elevar o Brasil à categoria de superpotência paradesportiva. São responsáveis ​​por cenas que nos emocionam, nos fazem refletir, nos fazem ter orgulho. Tudo de lá do Japão.

Só falta, agora, se transformar a distância de cerca de 17.000 km que separa os feitos realizados na terra do sol nascente das cenas de exclusão e capacitismo – o preconceito contra uma pessoa com deficiência – , que persistem por aqui, em um grande momento de virada de chave, reconhecimento legítimo do valor das diferenças, quaisquer diferenças”.

HOLOFOTE PARA ALÉM DOS GRANDES EVENTOS

É notável que o investimento sério no esporte fornece imensos benefícios sociais para o Brasil, seja para competições, ou para melhorar a qualidade de vida de uma pessoa com ou sem deficiência.

Nas Paralimpíadas de Tóquio, os atletas brasileiros demonstraram, mais uma vez, que ter habilidade é uma questão que envolve persistência, disciplina, e, sobretudo, oportunidades que devem ser tiradas do papel e aplicadas na vida real, sem espaço para o preconceito.

“Acredito que a falta de política pública e aportes diretamente ligando o esporte à educação é um problema que prejudica o desenvolvimento homogêneo social em qualidade também esportiva”, explica Fernando Aranha, triatleta e o primeiro brasileiro a disputar os Jogos Paralímpicos de Inverno e Verão, em 2014, na Rússia, entre outros campeonatos internacionais e nacionais.

Além disso, ele diz que “na grande maioria dos esportes observa-se uma sazonalidade. O Paralímpico, mesmo sendo um conjunto de modalidades, está vinculado a um nicho social. O ideal é que não haja por parte da própria estrutura paralímpica brasileira um afastamento da sociedade durante o período que vai além dos grandes eventos, algo que também ocorre com o olímpico”, finaliza.  

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Rafael
2 anos atrás

Parabéns pela reportagem, Tatiane. Excelente!

Sandra Carpi
Sandra Carpi
Reply to  Tatiane Sampaio
2 anos atrás

Parabéns pela reportagem, Tatiane.

Tatiane Sampaio
Tatiane Sampaio
Reply to  Sandra Carpi
2 anos atrás

Muito obrigada, Sandra!!

fabiano pereira
fabiano pereira
2 anos atrás

Muito bom seu trabalho João você é demais continue assim. Fazendo esse show de explicação e cobertura sou seu fã