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O mês de Agosto foi marcado por polêmicas na área da educação. No dia 09, durante a participação do ministro da Educação Milton Ribeiro no programa Sem Censura da TV Brasil, o país ouviu, com surpresa, a fala de que crianças com deficiências atrapalham os demais alunos sem as mesmas condições, quando colocadas na mesma sala. A opinião repercutiu nas redes sociais e gerou revolta nas famílias de crianças com deficiência, que lutam por políticas de inclusão.  

O pedido de desculpas, feito no dia seguinte, parece não ter promovido reflexões. Na semana seguinte, o ministro, na tentativa de contextualizar sua declaração, acabou reforçando uma série de preconceitos e de desconhecimento na luta por inclusão nas escolas. 

Segundo ele, “nós temos cerca de um milhão e trezentas mil crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que torna impossível a convivência. O que o nosso governo fez: ao invés de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo inclusivismo, nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam”, afirmou. 

“A única palavra que define esse discurso do ministro é capacitismo. Foi uma fala preconceituosa dizendo que nós atrapalhamos! Uma vergonha nacional vinda de um líder que deveria conduzir bem a educação do nosso país”. Essa é a análise do palestrante e escritor Vinícius Streda, autor do livro “Nunca Deixe de Sonhar”, lançado em 2010. 

Aos 34 anos e tendo Trissomia do 21, ele, que estudou e se formou no ensino regular, tornou-se um ativista pela educação inclusiva.

“A educação é uma arma poderosa de transformação social e cultural na vida de um indivíduo; é um dos pilares mais importantes na construção de um mundo melhor. Nós aprendemos juntos com todas as pessoas, compartilhando o mesmo espaço, convivendo socialmente”, afirma. 

Vinícius Streda – arquivo pessoal

A declaração do ministro da Educação vai de encontro ao Decreto 10.502, instituído pelo governo federal em setembro de 2020, que altera a Política Nacional de Ensino (PNEE) de 2008, mas foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no final do ano passado. As polêmicas geradas por Milton Ribeiro aqueceram o debate no mês em que o STF realizou uma audiência pública sobre a educação de pessoas com deficiências. A organização internacional Humans Right Watch, que participou da audiência, lançou um alerta para a ameaça à educação inclusiva no Brasil. 

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE) foi elaborada pelo Ministério da Educação em 2008 com o objetivo de assegurar a inclusão escolar e garantir acesso ao ensino regular de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Ela criou as diretrizes para uma atuação inclusiva nas escolas regulares, com a disponibilização de programas de enriquecimento curricular, ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização, ajudas técnicas, tecnologia assistiva e projetos arquitetônicos adequados, além da proposta pedagógica do ensino comum. 

NOVA POLÍTICA, ANTIGOS PRECONCEITOS

O Decreto 10.502 preocupa pais e especialistas em educação que consideram a proposta um retrocesso. Isso porque ele abre espaço para que as escolas comuns não aceitem a matrícula do aluno com deficiência ou que orientem os responsáveis pelas crianças a buscarem instituições especializadas, causando segregação social. 

Mariana Rosa, mãe da Alice de 8 anos, conta que a filha – que tem paralisia cerebral – foi alfabetizada em uma escola comum, mas encontrar uma instituição que a recebesse não foi fácil. “Só para conseguir matricular a Alice em uma escola foram seis negativas de matrícula. Isso porque temos uma lei que define que isso é crime. Imagina com um decreto estimulando a segregação das pessoas com deficiência”, afirmou em entrevista ao Jornal Nacional sobre o assunto. 

Também em entrevista para o Jornal Nacional, Rodrigo Mendes, fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização sem fins lucrativos que há mais de 25 anos atua com a missão de colaborar para que toda pessoa com deficiência tenha uma educação de qualidade na escola comum, considera que a nova PNEE é uma política de exclusão disfarçada de proteção. “Não existe fundamento pedagógico que respalde a alteração, é uma visão assistencialista de que a criança não vai poder se desenvolver ou conquistar independência”. 

Outro ponto de grande discussão que está previsto na nova Política é a educação bilíngue para surdos e a criação de escolas e classes especializadas para esse público. O tema é um dos mais debatidos, pois o Congresso Nacional aprovou uma alteração na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), criada para garantir o direito a toda população de ter acesso à educação gratuita e de qualidade, para valorizar os profissionais da educação, estabelecer o dever da União, do Estado e dos Municípios com a educação pública.

Por meio da Lei Federal 14.191, sancionada em 2021, a inclusão da educação bilíngue em Libras para surdos é considerada uma modalidade de ensino apartada da educação regular. O entendimento de especialistas na área é que a nova lei incentiva ainda mais a segregação de pessoas da comunidade surda por priorizar um modelo educativo que as direciona para o estudo em instituições especializadas. 

Em entrevista para o site da ONG Diversa, Joaquim Barbosa, surdo de nascença, afirma que o ensino bilíngue para surdos tem êxito somente na escola comum. “A educação bilíngue para funcionar deveria ser inserida na educação inclusiva, onde todos, surdos e ouvintes aprendem Libras, estudam em Libras e português. Surdos e ouvintes se relacionarão mais podendo conhecer e saber da cultura de um e do outro. Sendo assim, o surdo não dependerá do intérprete para se comunicar, pois os ouvintes já estarão imersos nessa comunicação”.

AVANÇOS E RETROCESSOS

Nívea Silveira, advogada especializada em causas de pessoas com deficiência afirma que as escolas são as instituições que mais recebem processos por não inclusão, depois dos planos de saúde. “A LBI (Lei Brasileira de Inclusão) exige das escolas monitores, cuidadores direcionados para pessoas que têm necessidade de locomoção, higiene e alimentação, mediadores com formação pedagógica para atuarem como intermediários entre os professores e a criança, intérpretes de Libras e Braille, além da acessibilidade física em todos os espaços. Isso demanda investimento e vontade em ressignificar o conceito de inclusão de acordo com a Convenção: a deficiência não está na pessoa, mas no meio que não possibilita acesso para todas as habilidades específicas”, explica. 

A convenção ao qual a advogada se refere é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, promulgada pelo governo federal em 2009. O documento, que tem status de emenda constitucional, obriga o Estado a garantir nacionalmente um sistema de educação inclusivo em todos os níveis do ensino. Ele também reconhece que:

“A deficiência é um conceito em evolução e que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao meio ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidade com as demais pessoas”. 

Esses dois documentos – o PNEE e a Convenção – aceleraram a visão de uma política pública cada vez mais inclusiva e o Brasil seguiu avançando nesse aspecto, com a implementação do Plano Nacional de Educação em 2014 que, na meta quatro, trata da universalização do acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, além da LBI, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.

Em 2017, o Brasil ocupava a 30° posição entre 79 países analisados no “Relatório sobre Desenvolvimento e Crescimento Inclusivos” do Fórum Econômico Mundial (WEF) de Davos, na Suíça. O ranking se propõe a medir o desenvolvimento econômico de um país, considerando, além da distribuição de renda entre a população, aspectos como acesso das pessoas à educação, serviços, emprego, intermediação financeira, proteção social e patrimônio. Dois anos depois, o país caiu para 60° posição entre 82 países analisados, sendo o 74° no comparativo sobre instituições inclusivas. 

O crime de capacitismo cometido pelo ministro, somada à proposta apresentada no Decreto 10.502, demonstram o pensamento preconceituoso e eugenista do atual governo. Essa é a visão de Nívea Silveira, que atuava no Direito mesmo antes do nascimento da filha com Trissomia do 21.

“Não são as crianças que atrapalham, são as atitudes da sociedade, o meio em que ela está. Um cadeirante em Porto Alegre é mais cadeirante do que em Amsterdã”, comenta a especialista. 

Silveira sabe que muitas escolas não são realmente inclusivas, mas se surpreende com os pais que concordam com a nova PNEE. “Ela retira direitos conquistados com muita luta. Entendo que, na prática, a escola inclusiva não funciona bem, mas é melhor ter direito do que não ter nenhum”. 

Ela aponta ainda outras ações do governo que têm impacto no desenvolvimento de um país mais inclusivo. “O governo adiou o Censo Demográfico do IBGE. Como vai pensar em política pública? Vai fazer o quê, para qual público, para atender a qual necessidade? O que ele quer é uma política de invisibilidade. Se não é visto, não é tratado”, sentencia.

CINCO MITOS SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

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