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Criada em 24 de julho de 1991, a Lei de Cotas Nº 8.213 impõe que as empresas reservem, pelo menos, entre 2% a 5% de seus cargos para pessoas com deficiência. No artigo 93, a diferença do percentual é explicada: se a empresa possui até 200 empregados, aplica-se a necessidade de, ao menos, 2% serem pessoas com deficiência; de 201 a 500 empregados, a proporção sobe para 3%; de 501 a mil, 4%; e acima de mil, 5%.

Ainda, no Art. 1º, estipula-se que a Previdência Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

Apesar do respaldo legislativo, muitos questionamentos são feitos acerca de cotas e inclusão, como seus progressos, quais relações existem entre elas, quais medidas de políticas públicas foram adotadas até então e qual o impacto das leis na vida de uma pessoa com deficiência.

A advogada e especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB, CEDPD do Rio Grande do Sul e da comissão de Direito à Saúde da Associação Brasileira dos Advogados, Nívea Cristina Santos da Silveira, reforça que a Lei de Cotas é afirmativa. Ou seja, foi sancionada para combater a discriminação e possibilitar o acesso das pessoas com deficiência ao mercado formal de trabalho.

“Essa lei tira do ‘status’ das pessoas com deficiência a incapacidade enquanto consumidoras e pagadoras de tributos. Dentro disso, elas passam a ter autonomia, podem ser protagonistas da própria vida, e mostrar que a deficiência não é impedimento”, afirma.

APLICAÇÃO DA LEI DE COTAS NAS EMPRESAS

Lei de Cotas garante inclusão e pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho.
Lei de Cotas garante inclusão e pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho. Foto: Antonio Cruz/ABr

Apesar dos benefícios impostos pela lei, de acordo com Lucia Figueiredo, profissional em inclusão, neuropsicopedagogia, educação inclusiva/especial e integrante da Escuta Ativa do GRAM, para o Brasil ser um país mais inclusivo, é preciso que as leis sejam tratadas com mais seriedade, pois a causa é responsabilidade de todos.

“A cultura da inclusão virou modismo, mas precisamos alertar que a inserção da pessoa com deficiência  deve ser vista detalhadamente: acessibilidade, comunicação assistida, programa de saúde, atenção da justiça, moda, diversão e o respeito em relação a se cumprir leis e projetos. Muitas coisas já foram conquistadas, mas a visibilidade inclusiva precisa ser em conjunto, e sem retrocesso”, diz ela.

Além do mais, “as empresas precisam ter o cuidado ao admitirem pessoas com deficiência, como respeitar o que cada funcionário necessita para exercer a função para a qual foi contratado, acessibilidade nos ambientes, uniforme, alimentação, e outras coisas. Isto é, pensar nas adaptações necessárias nos programas de atenção aos colaboradores. Neste caso, rever as ações discriminatórias como não colocar uma pessoa surda na ala mais barulhenta da empresa, pois ela capta sons em diversas frequências e isso pode ocasionar irritabilidade”, completa.

Em 2019, de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), as ações de fiscalização realizaram em todo Brasil mais de 12 mil inspeções para analisar o cumprimento da Lei de Cotas, um recorde desde 2003. Com isso, identificaram um aumento na contratação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, que passou de 42,6mil em 2014, para 46,9 mil em 2018.

Também, foram computados 4.725 autos de infração e 506 termos de compromisso. Apesar das melhorias em contratações, foi registrado que somente 53% das empresas cumprem as normas previstas. Dentre as empresas cumpridoras da lei, algumas se destacam como exemplos de inclusão, como Natura e Magazine Luiza, apontadas pela plataforma Hand Talk como tais.

Já para as empresas que descumprem a Lei de Cotas, no artigo 8º da Portaria 477 do Ministério da Economia, Secretaria Especial e Previdência e Trabalho 2021, descreve-se que a multa aplicada varia conforme a gravidade da infração e outros reajustes, podendo ser entre R$ 2.656,61 a R$ 265.659,51.

APÓS 30 ANOS, POR QUE AINDA É DIFÍCIL PARA UMA PESSOA COM DEFICIÊNCIA CONSEGUIR VAGA NAS EMPRESAS?

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, a enfermeira Maíza Claudia Vilela Hipólito, que defendeu a sua tese de doutorado sobre a “Inclusão de pessoas com deficiência em empresas do setor industrial”, no ano passado, observa que “existe um desconhecimento em relação à legislação. É algo que deveria ser instituído nos cursos de graduação. As pessoas precisam conhecer a lei para aumentar a adesão das empresas”.

Seu estudo analisou a perspectiva de 19 gestores e profissionais do setor de recursos humanos em três campus de uma empresa de grande porte de metalúrgica e mineração. A intenção foi mensurar as práticas, as medidas implementadas e a permanência de pessoas com deficiência no mercado.

Durante a pesquisa, Maíza enfrentou alguns obstáculos ao coletar os dados, “pois a instituição não dava abertura. Foi extremamente difícil conseguir essa empresa. Fica subentendido que alguns empregadores não cumprem as cotas e têm receio de serem denunciados”, explica.

O resultado da tese confirma que existe uma desinformação dos gestores e profissionais de RH envolvendo as leis: há uma falta de treinamento para os profissionais em relação à inclusão e conservação das pessoas com deficiência na empresa. Além disso, a enfermeira conta que a maioria deles declara que as pessoas com deficiência devem ser inseridas na área administrativa.

Para o journal48, Maíza revelou que escolheu este tema por causa de suas tias, que têm deficiência visual e que nunca conseguiram uma vaga no mercado de trabalho formal. Com isso, sentiu o desejo de realizar a pesquisa mais a fundo e percebeu que, na época, a temática era pouco falada.

“A lei é de 1991, precisa ser atualizada. À vista disso, não fica claro a porcentagem de tipos de deficiência que as empresas precisam contratar, assim, elas optam pelas necessidades de pouca ou nenhuma adaptação, isto é, pessoas com deficiência leve”, ressalta.

Há 13 anos atuando no mercado de consultoria sobre diversidade e inclusão no Brasil, com soluções estratégicas para a promoção da equidade nas relações humanas das empresas, a Talentos Incluir foi fundada por Carolina Ignarra, eleita duas vezes pela revista Forbes uma das mulheres mais poderosas do país, e autora dos livros “INCLUSÃO – Conceitos, histórias e talentos das pessoas com deficiência” e “Maria de Rodas – delícias e desafios na maternidade de mulheres cadeirantes”, dentre outros trabalhos.

Carolina explica entender que a Lei de Cotas é funcional embora haja divergências do cumprimento pleno. Ela diz, também, que as empresas precisam rever seus sistemas de contratação, considerando fatores como idade avançada, visto que, possivelmente, candidatos ficam muito tempo afastados, fazendo tratamentos em hospitais, ou porque pausaram suas carreiras depois de adquirirem a deficiência.

“De modo geral, as exigências são as mesmas que valem para os demais profissionais. E isso, talvez, seja a razão para essa dificuldade de cumprimento das reservas. Na prática, as empresas flexibilizam muito pouco, a gente percebe isso. A régua é alta em termos de cobrança. Elas não entendem que existem ‘linhas de largada’ diferentes por conta do impacto da deficiência na hora de contratar. Também costumam selecionar pessoas que têm deficiências minimamente perceptíveis”, afirma Carolina.

Outro desafio apontado pela gestora é fazer com que as pessoas com deficiência sejam reconhecidas, com a carreira e inclusão garantidas no dia a dia, para que consigam estar de igual para igual e evoluam suas habilidades como os demais profissionais.

“É necessário que a inclusão vá além das cotas e da acessibilidade e foque em resultados. É muito comum não haver ascensão nas carreiras entre as pessoas com deficiência, por exemplo: ficam na mesma função por 10, 12 anos, sem perspectivas de crescimento; começa júnior e fica júnior. Trata-se de uma questão que muito tem nos desafiado”, completa a especialista.

A equipe da Talentos Incluir é composta por 16 funcionários, dos quais cinco são pessoas com deficiência; dentre elas, Carolina, que ficou paraplégica após um acidente de moto, em 2001.

“Gostaria de ter mais pessoas e com deficiências variadas. Isso, por vezes, tem a ver com a demanda do mercado. Todas as pessoas que eu atraio, geralmente, acabam sendo direcionas aos nossos clientes, mesmo assim, temos uma relação muito próxima e constante com as pessoas com deficiência, aperfeiçoando nossos projetos. Além do mais, temos cinco profissionais negras e acreditamos muito no poder da diversidade, buscando ser mais plural. Tenho certeza que a expansão que nossa consultoria vive é resultado disso”.

CANAL DE FORTALECIMENTO DA LEI DE COTAS

O pleno cumprimento da Lei de Cotas está longe de acontecer, mas a luta dos movimentos pela inclusão é constante. O site pcdonline.com.br está no ar há 14 anos e é a primeira plataforma independente que disponibiliza gratuitamente vagas de emprego destinadas 100% para pessoas com deficiência, inclusive com acessibilidade web, adaptado para as pessoas com deficiência visual.

Construído por Kelli e Claudio Tavares, o site surgiu porque, na época, o casal trabalhava em uma agência na qual praticamente 80% do funcionários tinham alguma deficiência.

“Esse tipo de serviço não existia. Eu e Claudio trabalhamos por mais de um ano sozinhos, dado que no começo não tivemos nenhum apoio. Chamavam-nos de loucos. Questionavam por que estávamos desenvolvendo emprego para pessoas com deficiência, pois isso ninguém fazia. Foi um grande desafio”, diz Kelli.

Atualmente, o pcdonline tem uma quantidade expressiva de inscritos, com 102.395 pessoas de todos os níveis de escolaridade, sendo que 30% delas declaram estar cursando ou ter finalizado algum curso superior.

Temos pessoas com esperança e muita vontade de voltar ao mercado de trabalho. As empresas devem ter atenção em buscar o melhor perfil profissional, a deficiência é particular de cada um e o local deve estar preparado”, afirma.

NÃO AO RETROCESSO

As conquistas e os efeitos causados pela Lei de Cotas proporcionaram frutos de décadas de batalha não somente das pessoas com deficiência, mas de todos os apoiadores da ação. Atualmente, está em curso o Projeto de Lei 6159, subordinado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional em novembro de 2019, que tenciona mudanças na Lei de Cotas.

O documento tem gerado muita crítica por flexibilizar a obrigatoriedade das empresas em contratarem pessoas com deficiência desde que efetuem o pagamento de uma taxa mensal para União, e, também, por estabelecer um critério de deficiência severa, no qual o candidato ocuparia duas vagas previstas em lei para as pessoas com deficiência.

Em janeiro de 2020, a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (AMPID), juntamente com dezenas de associações, assinou e publicou uma carta para atentar que o PL pode diminuir as chances de contratação e remover direitos das pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho. Em apoio, no site da AVAAZ, também foi criado um abaixo-assinado NÃO AO PL6159-2019!

Após o manifesto, o presidente Jair Bolsonaro solicitou ao congresso nacional o cancelamento do regime de urgência por meio da mensagem Nº 649, publicada no Diário Oficial da União em 9 de dezembro de 2019, mas o Projeto de Lei continua tramitando, agora, em regime de prioridade.

LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO (LBI): DIREITO À CIDADANIA

Lei de Cotas e LBI são fundamentais para garantir inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal.
Brasília – DF, 06/07/2015. Presidenta Dilma Rousseff durante cerimônia de sanção do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

A Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência Nº 13.146, sancionada há seis anos, em 6 de julho de 2015, foi fundamentada por meio de uma conferência da ONU em 2006, e estabelece que é preciso:

Assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando sua inclusão social e cidadania.

Além disso, o Art. 8º institui que, dentre outros deveres, o Estado, a sociedade e a família devem assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes ao trabalho.

Desse modo, a Lei Brasileira de Inclusão, assim como a Lei de Cotas, aconteceu por meio de uma coletividade entre as pessoas com deficiência e demais representantes por equiparação de igualdades, para que sejam amparadas em qualquer estágio da vida, em todos os meios sociais, sem nenhuma distinção.

Segundo Nívea Cristina, a criação da LBI é qualificada e bem completa em relação às necessidades de uma pessoa com deficiência, dado que abrange todos os direitos reservados por lei, “permitindo que ela consiga acessar todos os benefícios, porque tira toda a possibilidade dela não poder realizar algo em função da deficiência”.

No entanto, a advogada menciona que, ao longo da profissão, as dificuldades que mais enfrenta são acerca da inserção das crianças com deficiência na educação; especialmente, a criança com deficiência intelectual, como a trissomia 21 e o autismo. Geralmente, cada criança apresenta uma particularidade específica, com o seu próprio tempo de aprendizado, tornando o seu desenvolvimento único.

Assim como todas as normas estabelecidas, a LBI deve ser revista. Por exemplo, o Capítulo IV, Art.28 e Inciso XVII, diz que a presença de profissionais de apoio nas unidades escolares é garantida, mas dessa maneira não fica claro que são duas modalidades diferentes: profissional de apoio pedagógico e o profissional de apoio de higiene, locomoção e alimentação.

Nívea Cristina explica que, nas escolas, falta o profissional pedagógico e que este artigo precisa ser regulamentado, entrar em vigor. “Principalmente nos municípios, já que são os responsáveis pelo ensino primário e fundamental. A lei proporciona isso, porém as prefeituras, com a verba pública escassa, acabam fornecendo somente o auxiliar de higiene e as crianças com deficiência intelectual ficam prejudicadas”, diz.

Em termos gerais, paulatinamente, o Brasil evoluiu em questão de políticas públicas e legislação, porém, o preconceito cultural é um dos motivos pelo qual a cidadania não é exercida completamente pelas pessoas com deficiência. É preciso um envolvimento mais ativo dos governantes de cada estado, adotando medidas de conscientização da população e criando entidades voltadas para os direitos das pessoas com deficiência.

O grande problema é a aplicabilidade da lei e isso não tem a ver com o sistema jurídico, tem a ver com a cultura do país. O simples fato de ter que cumprir a lei não tira o preconceito. A maior barreira tanto da pessoa com deficiência e de todos os envolvidos com a causa é a falta de atitude. A deficiência não é o cartão de visita, a pessoa tem um nome e não quer se destacar, ela quer ser conhecida por suas habilidades. A sociedade tem que entender que as pessoas são qualificadas e não precisam ser pormenorizadas só porque não estão no ‘padrão’”, complementa Nívea Cristina.

DA RUA AO VIRTUAL: ACESSIBILIDADE EM TODAS AS ESFERAS

A implementação da LBI foi um grande marco instituído no país, entretanto, os brasileiros estão longe de morarem em um país-modelo, que seja totalmente acessível, com sistema de saúde decente, educação, transporte e muito mais. Para a arquiteta e especialista em acessibilidade e desenho universal, Silvana Cambiaghi, um dos motivos é a “falta de vontade política, investimento, movimento organizado e penalidade em não fazer a acessibilidade que já é obrigatória desde a Constituição”. 

Silvana descreve que, na cidade de São Paulo, além dos locais públicos e transportes adaptados, há a acessibilidade prevista pelo código de obras, no qual estipula-se que todos os edifícios precisam obter este certificado. Caso contrário, estão sujeitos a uma multa vultosa. Já em Curitiba (PR), é possível notar as mudanças em parques e áreas externas. Para ela, isso significa que “os municípios têm apenas soluções pontuais, não acessibilidade integrada que garanta plena cidadania às pessoas com deficiência”.

Em texto publicado, a senadora, publicitária, psicóloga e ativista dos direitos humanos, Mara Gabrilli, diz que as campanhas e inclusão nas cidades não devem ser apenas promessas e que ano de eleição é o momento oportuno para lembrar a dívida histórica com a pessoa com deficiência.

“Falamos de um segmento que, quando é olhado e respeitado, garante um upgrade na vida da cidade como um todo. Candidatos que pleiteiam cargos na municipalidade precisam se comprometer com a Lei Brasileira de Inclusão. Mais que isso: precisam ter essa legislação construída com grande parte da sociedade civil, como um norte em suas gestões”, escreveu.

Na política, Mara participou da fundação da Secretaria das Pessoas com Deficiência de São Paulo, a primeira do país e que foi inspiração para o surgimento de instituições similares em outros estados brasileiros, além de outros projetos.

Finalmente, é importante lembrar que, além de todos os direitos garantidos pela lei, outra questão a ser melhorada pelos estabelecimentos e governos é a acessibilidade digital. Recentemente, A BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web Para Todos, estudou mais de 16 milhões de sites brasileiros, e descobriu que apenas 0,89% deles são acessíveis a pessoas com algum tipo de deficiência, sendo visual, auditiva ou motora.

Não há como negar que o mundo está cada vez mais conectado virtualmente e, por este motivo, fornecer uma navegação em plataformas de mídia que atenda as peculiaridades das pessoas com deficiência é indispensável. A inclusão é dever, é cidadania. É um direito imposto por lei para todos e por todos.

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