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Nos últimos tempos, as grandes indústrias de brinquedos, cinematográficas e de desenhos em quadrinhos vêm desempenhando um papel importante na sociedade ao desenvolverem personagens diversos, que garantem representatividade de múltiplos públicos de crianças e adultos ao redor do mundo.

Por exemplo, em apoio à igualdade de Direitos, em 1968, a Mattel, considerada a maior fabricante de brinquedos do mundo em questão de faturamento, com vendas anuais de mais de cinco bilhões de dólares, lançou Christie, a primeira boneca negra. Entretanto, somente em 1980, a primeira Barbie negra de fato surgiu, assinada pela designer Kitty Black Perkins.

Décadas depois, em janeiro de 2020, a empresa aumentou o leque de produtos diversos ao estrear a linha Barbie Fashionista, com bonecas de tons de pele, proporção de corpos e cabelos variados, além de outras identidades de gênero e com deficiência. 

Mattel cria linha de brinquedos inclusivos, com gêneros variados e pessoas com deficiência, garantindo maior representatividade.
Linha de bonecas Barbie Fashionista. Foto: divulgação/ Mattel

Em nota, Lisa McKnight, vice-presidente executiva e chefe Global de Barbie e Bonecas da Mattel, disse: “a Barbie acredita no poder da representação e, com a linha de bonecas mais diversificada do mercado, estamos comprometidos em continuar a representar, para refletir a diversidade que as crianças veem no mundo ao seu redor. É importante que elas se vejam no produto e sejam encorajadas a brincar com bonecas que não se parecem com elas, a fim de ajudá-las a entender e celebrar a importância da inclusão”.

Na visão de Simone Colucci, arte-educadora e co-fundadora do Grupo Educart, “ações de representatividade relacionadas à inclusão, seja com personagens, histórias ou jogos acessíveis, mostram um movimento ‘tendência’ da nossa sociedade a se tornar cada dia mais abrangente”.

Ela ainda complementa que “isso gera na criança e na família que vive a deficiência conforto e autoimagem positiva. Com isso, esse movimento se fortalece, por exemplo: existo com mais alegria e confiança para mim mesmo. Então, agora, mais do que nunca, eu posso ser o que quiser e do jeito que sou!”.

A EDUCAÇÃO TRANSFORMA AS PESSOAS

Maurício de Sousa. Foto: Caio Galluci

Embora seja notável determinados progressos em áreas fundamentais, as deficiências existem há séculos e construir uma sociedade sem preconceitos ainda é uma trilha que segue caminhos vagarosos. Logo, para formar um país digno e justo de direitos sociais para qualquer cidadão, a empatia, o respeito e a partilha precisam começar desde a infância para que sigam sendo semeados por todas as fases da vida de uma pessoa. 

Simone Colucci entende que o olhar das crianças sem deficiência é verdadeiro, pois “elas estão preparadas para lidar com brinquedos que representem a gama de inclusão presente. Desde o avanço do decreto das leis internacionais e nacionais relacionadas à inclusão, a realidade aos poucos se altera nas escolas”, explica.

“Mais do que estar preparado, é permitir que esta realidade seja desmistificada e acolhida. Todos somos diferentes e de perto não somos normais. Não existe perfeição absoluta. Temos algo que o outro não tem e vice-versa em capacidades e vários potenciais”, completa.

Além de brinquedos, outro produto bastante conhecido e aliado ao aprendizado, desenvolvimento e desmantelar da intolerância, são os gibis ou as chamadas histórias em quadrinhos (HQs), que passam de geração à geração. Maurício de Sousa, considerado o maior cartunista de HQs e cultura pop brasileira, e tido por criar personagens na maioria das vezes inspirados em pessoas reais, lançou nos anos 80 o primeiro garoto que anda de muletas, Amyr, e Humberto, que tem dificuldade na fala. 

Com o passar dos anos, a turminha ganhou outros protagonistas com deficiência, como André, com autismo; Luca, que anda de cadeira de rodas; Tathi, com síndrome de Down; Dorinha, garota cega; Edu, com Distrofia Muscular de Duchenne; Sueli, menina surda e, recentemente, Bernardo, com nanismo. 

Maurício conta que a Turma da Mônica é um grupo de personagens que vive e age como qualquer grupo de crianças, e que, naturalmente, convive em algum momento com alguém com deficiência.

“Aprendemos as regras da inclusão aí. Consequentemente, não poderíamos deixar de apresentar no universo das nossas personagens amiguinhos da turma que também tivessem algum tipo de deficiência. Até acho que demorei muito para perceber esse vazio nas nossas histórias”, declara ele.

INCLUIR PARA REPRESENTAR

Tathi Piancastelli, atriz e modelo que inspirou personagem da Turma da Mônica. Foto: Divulgação

No ano passado, uma pesquisa denominada “Cadê Nossa Boneca?”, divulgada pela organização social Avante, mostrou que apenas 6% de todas as bonecas fabricadas no Brasil são negras, ou seja, a cada 100 modelos produzidos na indústria brasileira, somente 6 representam pessoas negras.

Ao contactar a instituição para saber se haveria uma pesquisa sobre brinquedos que representassem as pessoas com deficiência, o journal48 foi informado que “ainda não existe um estudo sistematizado”. A Avante percebeu que, ao longo dos anos, tem recebido mais comentários em suas redes sociais de bonequeiras questionando a presença de bonecas com essas características. “Infelizmente, a falta desse tipo de bonecas ou brinquedos no mercado é visível”. 

Na Turma da Mônica, Maurício de Sousa diz que os personagens com deficiência aparecem com mais frequência nos gibis de linha, e que o mercado editorial (que trabalha no modelo de licenciamento), tem requisitado mais histórias com eles, por exemplo, do André, da Dorinha e do Luca. 

“Já sobre haver brinquedos com estas características é algo que consideramos muito positivo e pode acontecer ao passo que surjam empresas interessadas em produzi-los. Conforme os personagens vão tornando-se mais populares, acreditamos que aumentará a demanda por outros produtos além de revistinhas e livros com eles. O público já pede bastante”, esclarece ele. 

Segundo Fernando Heiderich, consultor e presidente do MetaSocial, e pai da atriz Tathi Piancastelli, que tem síndrome de Down e foi homenageada com a personagem Tati da Turma da Mônica, “na infância [da filha], final dos anos 80, não existia quase nada em que ela se sentisse representada, seja em brinquedos, em meios de comunicação, na escola, na literatura ou nas artes em geral”.  

Então, “quando ela se viu nos quadrinhos, em meados dos anos 90, ficou emocionada e muito feliz. Agradeceu bastante e divulgou o tempo todo. Aliás, divulga até hoje aos seus milhares de seguidores nas mídias sociais, assim como em palestras, entrevistas, etc. Tathi tem orgulho de ser parte da Turma da Mônica, além da consciência da importância dessa personagem na formação de uma sociedade mais inclusiva”, comenta.

Fernando reforça que as grandes empresas têm uma parcela fundamental de responsabilidade sobre o combate ao preconceito, e que esses projetos são necessários para as mudanças de paradigmas.

Inclusive, essas organizações “caíram na real, porque esse segmento é o maior das minorias, mas normalmente não tem visibilidade. Com o aumento da exposição dessas pessoas através da arte e do trabalho, houve esse despertar de parte das indústrias que souberam reconhecer as oportunidades. Expandem os mercado-alvos dos seus produtos e agregam valor aos negócios”, finaliza ele. 

Ainda que, aos poucos, tanto o mercado internacional quanto o brasileiro estejam se tornando mais diversos, o caminho para que as prateleiras em lojas de brinquedos ou as páginas de gibis sejam, de fato, uma representação da realidade é longo e a luta pelos direitos à igualidade e representatividade segue.

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