Ouça esta publicação

Atenção: o conteúdo dessa reportagem pode ser sensível para algumas pessoas. Recomendamos a leitura cuidadosa.

O termo “Guerra às Drogas” tem origem estadunidense e ganhou forças em 1971 na campanha de repressão, liderada pelo então presidente, Richard Nixon, que contou com o apoio da mídia. Além de ser uma expressão exagerada, é também uma forma de legitimar qualquer ação do Estado em nome da segurança pública, já que “na guerra, vale tudo”.

A Guerra às Drogas se tornou indispensável para criminalizar um grupo específico de pessoas, objetivo tal que foi exposto por John Ehrlichman, ex-chefe de política doméstica de Nixon:

“Na campanha presidencial do Nixon em 1968, e depois na Casa Branca, nós tínhamos dois inimigos: a esquerda anti-guerra e as pessoas negras. Sabíamos que nós não podíamos criminalizar quem era anti-guerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim”, afirmou ele.

Presidente foi responsável pela popularização do termo Guerra às Drogas / Foto: Montagem/ Richard Nixon durante uma roda de imprensa
Presidente foi responsável pela popularização do termo Guerra às Drogas / Foto: Montagem/ Richard Nixon durante uma roda de imprensa

Essa fala foi dada por Ehrlichman em uma entrevista para o jornalista Dan Baum, em 1994, e publicada no ano de 2016, na Harper’s Magazine: Legalize Everything: Como ganhar a guerra contra as drogas. Mas, infelizmente, a confissão não causou nenhum tipo de revolta, afinal, para encarcerar e matar pessoas pretas, a Guerra às Drogas é altamente eficaz. Ao longo dos anos, vários países da América Latina aderiram à política de militarização da segurança pública, incluindo o Brasil, que se tornou uma vitrine de pior exemplo.

O primeiro Índice Global de Políticas sobre Drogas, publicado em 2021, é um estudo comparativo entre 30 países para mostrar qual tem o melhor desempenho nas políticas anti-drogas. A Noruega lidera o ranking e o Brasil ocupa a última posição, comprovando a ineficácia desastrosa da guerra.

MACONHA: A PAVIMENTAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS NO BRASIL

Uma política de grande porte que envolve as forças policiais e os sistemas judiciário e carcerário não acontece do nada. Ela deriva de movimentos realizados ao longo da história que contribuem para o cenário atual; sendo o começo da proibição das substâncias e a classificação de periculosidade delas.

No Brasil, o ponto de partida mais expressivo dessa política se dá com a perseguição da maconha. Foi nisso em que focou a pesquisadora Luísa Saad, em seu livro “Fumo de Negro: a criminalização da maconha no pós-abolição”, no qual ela detalha a história da cannabis em território brasileiro e mostra como o racismo se tornou um fator determinante para a criminalização da planta.

Como começou a pavimentação da Guerra às Drogas?
Como começou a pavimentação da Guerra às Drogas? / Foto: Capa do livro “Fumo de Negro”

Durante seu estudo, Saad descobriu que a maconha se trata de uma substância menos corrosiva e que, inclusive, conta com benefícios medicinais, apesar de ter sido classificada pela ONU como uma das drogas mais perigosas até 2020. Além disso, ela se surpreendeu ao constatar que, por muito tempo, a planta não apareceu na mídia, vinculada ao crime, e nem em processos criminais.

“O primeiro texto sobre maconha foi escrito e publicado em 1915 pelo médico Rodrigues Dória. Ele dizia que a maconha era uma planta de origem africana, portanto degenerada, que já estava se alastrando pelo país, causando diversos problemas como violência, crime, suicídio e estupro. A proibição da maconha aconteceu 17 anos depois, em 1932. Nesse meio tempo, você não encontra notícias de jornais, processos criminais, ou, qualquer material historiográfico que comprove o que esse médico falou. Ou seja, a maconha não aparece como, de fato, um problema de ordem pública. Ele é criado”, diz a pesquisadora.

A partir daí, com o tempo, a perseguição da substância ganhou uma personificação, sendo vinculada ao estereótipo do negro selvagem, reforçando o foco excessivo na repressão que existe no debate da política de drogas. E, assim, outras visões históricas e complexas sobre a maconha foram deixadas de lado: “A maconha fez e ainda faz parte de alguns cultos de religião afro brasileira. Como uma planta que, como todas as outras, tem seu canal com o sagrado, com o divino, com o mágica e com o religioso”, explica Saad.

Começo da Guerra às Drogas | "Propaganda chama a atenção para o uso da maconha no tratamento de problemas de saúde – Imagem: divulgação"
Começo da Guerra às Drogas | “Propaganda chama a atenção para o uso da maconha no tratamento de problemas de saúde – Imagem: divulgação”

O RASTRO DE SANGUE QUE A GUERRA DEIXA

A Guerra às Drogas e a narrativa que ela cria é causa de um genocídio da juventude negra no Brasil. Débora Maria da Silva perdeu o filho, Edson Rogério Silva dos Santos, em maio de 2006, em um dos episódios mais sangrentos da história de São Paulo, que ficou conhecido como os Crimes de Maio.

Naquele ano, a comemoração do dia das mães foi escolhida pelos integrantes do PCC, maior facção do Brasil, para decretar um ataque comandado de dentro dos presídios. O “salve geral” tinha como objetivo mostrar a força da quadrilha, e como consequência escancarou as falhas no sistema de segurança pública no país.

Segundo o estudo “Análise dos Impactos dos Ataques do PCC”, coordenado em 2009 pelo sociólogo Ignácio Cano, pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), ao todo, foram assassinados 59 agentes públicos. Dos 505 civis mortos, 118 foram assassinados em confronto com a polícia, 50 foram vítimas de execução sumária individual, 35 de execução sumária por grupo não encapuzado, 53 por grupo encapuzado, 4 foram executados sumariamente por policiais, 10 morreram em ataques a delegacias, 6 em conflitos interindividual, 2 em acidente ou bala perdida, 21 por “outros motivos” e 206 por razões desconhecidas

Foram 8,6 mortes de civis para cada agente público. Entre as vítimas estava Edson, que trabalhava como gari e foi assassinado em São Vicente, município da Baixada Santista, depois de uma batida policial.

A LUTA DE MÃES DE LUTO

Perder um filho é medo constante das mulheres que vivem sob a tensão da guerra. São as mães que choram na partida precoce dos jovens; elas são as que ficam para tentar limpar o nome e honra deles e sabem a dor da solidão.

Mesmo de luto, Débora decidiu batalhar e criou o Movimento Mães de Maio, que acolhe parentes que tiveram seus entes queridos mortos pelo Estado.

“Em 16 anos de luta, a dor de ver uma mãe ou um ente querido perder alguém nas mãos do Estado permanece a mesma. O abraço é a forma de acolhimento. Estamos juntas, não há discriminação alguma, mãe não pari traficante nem ladrão”, diz ela.

A luta contra a Guerra às Drogas| Débora Maria da Silva, co-fundadora do Mães de Maio.
Débora Maria da Silva, co-fundadora do Mães de Maio. Foto: Reprodução/Conectas

Além da dor do luto, muitas famílias ainda lidam com a desonra na memória de seus amados. Para justificar ações não oficiais, ou excesso de força, são emitidas notas sobre confrontos e mortes de “traficantes” sem fichas criminais. No fim, todos são colocados na mesma categoria, reforçando a ideologia da pena de morte.

O boletim da Rede de Observatórios da Segurança, divulgado no final de 2021, com dados referentes ao ano de 2020 , apontou que a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em ações policiais em seis dos sete estados monitorados: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

“A Guerra às Drogas é uma falácia para exterminar e encarcerar o povo preto favelado, a gente não vê isso nos condomínios. O povo preto faz a manutenção da segurança pública, da cadeia e do cemitério. Em um sistema racista, só existe a perseguição da camada negra e periférica. A favela é a senzala e a cadeia o navio negreiro,” relata Débora sobre o que constatou o boletim.

E esse sistema ao qual ela se refere envolve vários pilares estruturais no Brasil. Os policiais não matam e nem morrem sozinhos, pois a violência é alimentada, também, pelo sistema judicial e carcerário.

LEI DE DROGAS: USUÁRIO POBRE É O MESMO QUE TRAFICANTE

Atualmente, a Lei de Drogas, nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (que foi alterada pela Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019), faz parte do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e estabelece que a diferença entre usuários e traficantes não se dá pela quantidade de substâncias e sim por uma análise judicial, que começa primeiro com o agente de segurança.

O projeto em si poderia ser muito bem empregado, porém, na prática, a Lei de Drogas é falha. Na opinião do advogado criminalista e defensor dos Direitos Humanos, Dr. Marcelo Barcelete, a eficácia da legislação varia conforme a classe social de cada indivíduo.

“Temos excelentes leis em nosso ordenamento jurídico, a Lei é perfeita, mas nas periferias ela oprime e criminaliza, sendo que na alta sociedade é tolerada como questão de saúde pública. O judiciário pune o usuário, pune o pobre, mas na verdade deveria combater o tráfico”, explica o especialista.

Para a ativista Débora, isso é apenas mais uma manobra para seguir o curso da morte e do encarceramento.  “Essas pessoas, os juízes brancos, a favor de pena de morte, são os que nos julgam. A justiça tem aquela venda porque é paga para não enxergar, e a polícia protege o patrimônio. ”

O CIRCO MIDIÁTICO DA GRANDE GUERRA

Apelidar uma política pública de Guerra às Drogas é definir um estado de alerta constante e proclamar um inimigo. Com isso, cria-se um enredo de filme hollywoodiano, no qual a luta do bem contra o mal é sempre atrativa para o público. Os produtores desse filme, no caso, seriam os veículos de comunicação.

A jornalista, Cecília Oliveira, especialista em Segurança Pública e Política de Drogas, acredita que ao longo dos anos houve uma transformação brusca na hora de cobrir o tema; o jornalismo com o viés investigativo perdeu espaço para virar um caderno policial.

Jornalista Cecília Oliveira fala sobre a cobertura da Guerra às Drogas
Jornalista Cecília Oliveira fala sobre a cobertura da Guerra às Drogas | Foto: Reprodução/Instagram

“É nítida a mudança da cobertura – para pior. As matérias eram mais narrativas, você entendia quem eram as pessoas envolvidas, vitimadas, como aconteceram as coisas. Hoje, o jornalismo de cotidiano está dependente da assessoria de imprensa da polícia. As polícias não são vistas como um lado da história, mas como o lado oficial, a verdade”, explica.

Ela também menciona como o sensacionalismo é um aliado na construção da narrativa bélica, além de que o próprio jornalismo enfrenta uma crise de produção. “As redações estão encolhidas e os profissionais têm que dar conta de produzir mais volume e mais rápido. Ir para as ruas demanda muito tempo e um tempo que geralmente os repórteres não têm, já que têm que trabalhar por dois ou três. Você pega então uma notinha por e-mail ou WhatsApp e pronto”, completa Oliveira.

Esses são alguns dos fatores que alimentam o conceito de bem versus mal, transformando o contexto em algo muito simples, resumindo a segurança pública em conflitos armados, e ignorando a falta de estabilidade social e desenvolvimento da população. No meio disso, lemas como “bandido bom é bandido morto” são reforçados.

Segundo a jornalista, no meio dessa guerra, as pessoas decidem criar seus próprios heróis, com aquele empurrão básico dos telejornais sangrentos. Os homens de farda são figuras inabaláveis e por isso nem sempre pagam pelos seus crimes, além de também entrarem para a estatísticas de mortes.

“Muitos dos problemas na segurança pública são decorrentes de corrupção e não a corrupção relativa apenas a desvio de dinheiro. Mas corrupção dos agentes públicos, dos gestores públicos, dos formuladores de políticas públicas”, diz ela. E a solução, ela completa, é bastante complexa:

“Para melhorar, primeiramente, é preciso vontade política em relação a enfrentar problemas estruturais. Com muita frequência se vê a questão relativa ao tráfico de armas e munições onde agentes públicos de segurança estão sempre presentes. É preciso falar também sobre governadores de estado que têm interesse em manter as coisas como estão porque é lucrativo desse jeito. É preciso ter vontade política para isso e essa é a grande questão. Há vontade política?”, questiona.

GUERRA ÀS DROGAS COMO UMA FERRAMENTA RACISTA

Em um país como o Brasil, ignorar o racismo é vendar os olhos para a realidade. Tudo tem relação com a raça, principalmente em um lugar que se beneficiou com a mão de obra escrava e até hoje colhe os seus frutos. Nesse contexto, a Guerra às Drogas é apenas mais um mecanismo.

Matar e aprisionar corpos negros ganha legitimidade pelo discurso de segurança, sendo que moradores de favelas e jovens negros também são cidadãos do Estado que merecem igual proteção e segurança.

Parentes das vítimas da chacina no Jacarezinho (RJ), durante protesto contra violência policial Imagem: Fabiana Batista/UOL
Parentes das vítimas da chacina no Jacarezinho (RJ), durante protesto contra violência policial Imagem: Fabiana Batista/UOL

“A desigualdade que estrutura a sociedade brasileira pode ser vista ainda mais explicitamente no perfil dos mortos no país. De cada 10 brasileiros, 6 são negros. Mas a cada 10 brasileiros mortos, 8 são negros. E isso piora muito quando analisamos a evolução das estatísticas de morte no Brasil e notamos que a morte de pessoas negras cresceu 11% em 11 anos, enquanto a chance de morte dos demais cidadãos caiu 13%”, afirma a jornalista Cecília Oliveira, citando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Com isso, a política de segurança pública se torna mais um controle social, onde as forças policiais trabalham para proteger uma parcela da população. A marginalização dos “outros” aguça o imaginário das pessoas, que se sentem ameaçadas pelos seus semelhantes. Nessa Guerra, crianças perdem pais, mães enterram filhos, o poder miliciano cresce e a as armas de fogo seguem disparando balas perdidas em alvos muito bem escolhidos.

Um levantamento produzido pela Rede de Observatórios da Segurança mostrou, por exemplo, que 86% dos mortos em ações policiais no RJ em 2020 eram negros, apesar de grupo representar 51,7% da população. Na capital, o índice de pessoas negras mortas chega a 90%.

Oliveira também relata que os próprios policiais são treinados para combater pessoas pretas, que estão sempre na posição de suspeitos. “Anos atrás o Jornal Extra, de grande circulação no Rio, revelou um slide apresentado nos treinamentos da PMERJ: ele mostrava uma pessoa branca identificada como usuário e uma pessoa negra apresentada como ‘suspeito’. Esse pensamento condiciona as abordagens e tem impacto direto na aplicação da lei de drogas, que por si só já é criticada por suas falhas.”

Finalmente, a jornalista chama atenção para o armamento, que é um ponto importante da guerra. Policiais, civis e equipes paramilitares estão cada dia mais bem armados, com pouquíssimo controle e mecanismos de segurança. “Crianças de 0 a 14 anos morrem muito por arma de fogo, mas as crianças negras morrem 2x mais que as não negras: 6 em cada 10”, conclui ela.

VALE INVESTIR CINCO BILHÕES EM UMA POLÍTICA FALIDA?

De acordo com o relatório produzido pelo projeto “Drogas: Quanto custa proibir? ”, uma iniciativa vinculada ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), no ano de 2019, foram gastos mais cinco bilhões de reais em combate às drogas, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Guerra às Drogas: Será que vale investir 5 bilhões em uma política falida?
Guerra às Drogas: Será que vale investir 5 bilhões em uma política falida? / Foto: Reprodução do site “Drogas: Quanto Custa Proibir?”

De acordo com Mariana Siracusa, socióloga e pesquisadora do projeto, a meta sempre foi fazer com que ele saísse da bolha acadêmica e chegasse ao debate público. “Nosso objetivo é, de fato, fazer da pesquisa um instrumento de transformação da realidade que a gente vive. A gente produz dados que têm que chegar nas pessoas que estão na ponta, que são alvo dessa política do Estado.”

Em resumo, o Brasil escolhe gastar 5,2 bilhões em repressão para viabilizar ações que quase nunca dão um resultado positivo.  “Ou seja, o Estado brasileiro gasta para matar, reprimir e prender a população negra no Brasil, então é uma política muito ineficaz e muito cara. Poderia investir esse dinheiro em promoções de vida, na saúde, na educação, na população. Ao invés de investir numa política que causa tanta dor, sofrimento e morte, ” completa Mariana

Também partindo do ponto mencionado pela pesquisadora, o relatório “Tiros no Futuro: uma análise do reflexo da Guerra às Drogas na Educação”, analisa como as crianças serão afetadas academicamente e profissionalmente pela falta de um ambiente de estudo seguro.  

Só no ano de 2015, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que grande parte das operações policiais com mortes acontecem em horários escolares. As unidades sofreram com interrupções de aula, sem contar os traumas causados em relação ao eterno estado de alerta.

A pesquisadora Rachel Machado, que produziu o relatório com Mariana, analisa isso como um sintoma de uma sociedade discriminatória. “As escolas fecham, as aulas são suspensas, os alunos não conseguem chegar. Isso tem um impacto brutal, não só no que o aluno consegue aprender, mas principalmente no que ele deixa de aprender. Isso mostra mais uma vez, a escolha política do Estado de criminalizar determinado território e pessoas”, afirma.

A metodologia usada pelas pesquisadoras foi comparar escolas municipais, que tinham perfis de alunos parecidos, em localidades diferentes, onde um grupo pertencia ao território da guerra e o outro em não. O resultado foi mais uma vez alarmante:

“Conseguimos determinar que esses alunos expostos à violência no presente vão ter uma perda de 4% da sua renda no futuro, o que é cerca de 24.000 reais, ” afirma a socióloga Mariana, que discorre sobre como essa quantia é capaz de salvar famílias da vulnerabilidade. A guerra às drogas impede a educação, dificulta a mudança de vida e aprisiona as pessoas em um ciclo violento. “Ao falarmos no enorme orçamento público de 5,2 bilhões também devemos olhar para o impacto disso na vida das pessoas”, completa ela.

QUEM SAI GANHANDO?

Nessa guerra, a força policial enfrenta sobrecarga de trabalhos, salários baixos, corrupção dentro da corporação, além de mortes e ameaças constantes. A população se sente cada vez mais insegura, sofrendo com intervenções bélicas, chacinas, tiroteios e perda de inocentes. Esse combo não beneficia ninguém, e comprova o fracasso sistemático dessa política de segurança.

Além disso, o tráfico de drogas não se abala. Desde a implementação da Lei de Drogas e intervenções militares, o PCC se estabilizou ainda mais e segue sendo uma facção com movimentações bilionárias. Segundo os dados da Operação Tempestade e da Operação Sharks, a quadrilha mantém operações para movimentar dinheiro do tráfico entre a Holanda, o Paraguai e o Brasil, chegando de R$ 3 bilhões.

A guerra ás drogas combate muito mais a vida do que tráfico. “Quem quer usar drogas usa. O problema é essa forma de combate que traz dor e morte, especialmente para o povo preto”, afirma a pesquisadora Raquel Machado.

Em uma visão mais ampla, a socióloga Mariana confirma que o grande vilão não é a substância:

Não é o consumo que fortalece o tráfico de drogas. O consumo sempre existiu em várias sociedades ao longo do tempo, o que fortalece e promove o tráfico é a proibição. Porque as pessoas veem uma oportunidade extremamente vantajosa economicamente e um mercado que movimenta bilhões por ano”, diz ela.

Ao mesmo tempo, o vício em drogas é uma situação real, muitas vezes carregada de traumas, e completamente desatendida, uma vez que não há o devido espaço para que a saúde pública cuide da sociedade nesse sentido.

Para a jornalista Cecília Oliveira, o cenário da Guerra às Drogas é mais um acordo que beneficia uma parte pequena da população.

“Quem alimenta o tráfico de drogas e consequentemente a Guerra às Drogas são as autoridades que definiram a política e ainda insistem nela, mesmo sabendo de seu alto custo e fracasso. O Brasil importou as políticas proibicionistas de drogas e seus reflexos no sistema carcerário, na construção de políticas públicas que ignoram a saúde pública e apostam no belicismo, bem como todos os países que assinaram os tratados sobre drogas da ONU”, explica.

EXISTE UM AMANHÃ NA GUERRA?

Para Edson Santos, assim como para muitos outros, a chance de viver um amanhã foi roubada por um tiro. A ideia de futuro é deturpada pela ação violenta, e chegar em casa vivo é um privilégio, assim como passar um ano sem enterrar um conhecido é motivo de comemoração.

A mudança parece estar bem distante da realidade brasileira. Em uma sociedade onde existe perdão para os crimes de tortura e escravidão, é difícil vislumbrar uma saída. As transformações acontecem aos poucos e geralmente são encabeçadas pelos cidadãos, mas falta vontade política para criar um cenário menos excludente.

“Para mudar isso seria preciso repensar toda a nossa história, admitir erros e reparar danos – o que infelizmente está muito longe de acontecer”, relata a jornalista Cecília Oliveira.

No período de construção desta reportagem, Cauã da Silva, de 17 anos, morreu pelas mãos da polícia do Rio de Janeiro com tiro no peito. O vassoureiro, Diego Lima, de 30 anos, também perdeu a vida indo trabalhar. Jhonatan Ribeiro de Lima, de 18 anos, foi alvo de um disparo vindo de um policial militar, sendo uma das vítimas mais recentes . Além deles, a pequena Heloysa, de 6 anos, também faleceu em Pernambuco durante uma operação policial.

Esses foram os casos que ganharam alguma repercussão na mídia, sobretudo independente. Porém, com a ação de esquadrões da morte e ocultação de cadáveres, é mais difícil ter um número exato e saber a origem de cada um.

A Guerra às Drogas continua seguindo seu curso e espalhando o seu rastro de sangue da população preta pelas ruas. Nessa guerra, não há trégua ou acordos de paz que possam garantir o amanhã.

5 7 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments