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Você já perguntou a algum homem qual método contraceptivo ele usa? Muito provavelmente não e deve ter até um certo estranhamento com essa pergunta. Isso porque a sociedade atribui à mulher a responsabilidade de fazer uso de algum tipo de anticoncepcional, já que a gravidez não acontece no corpo do homem cis gênero (que se identifica com o gênero atribuído no nascimento).

Dentre os 20 tipos de contraceptivos catalogados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas dois são masculinos: o preservativo e a vasectomia. Enquanto para a mulher existem métodos hormonais, de barreira, intrauterinos e permanentes.

A HISTÓRIA DOS CONTRACEPTIVOS

O papiro de Ebers é um documento do Egito antigo datado por volta do ano de 1.550 a.C. que já continha registros de meios para evitar a gravidez, como é o caso do preservativo feito de linho, pele e materiais vegetais.

Segundo a cientista social e mestranda em antropologia social pela Universidade de São Paulo, Juliana Wahl, até o século 19 os métodos contraceptivos eram focados nos homens, sendo que o preservativo e o coito interrompido eram as principais formas de evitar a gravidez, e a ginecologia não existia como nos dias atuais.

“As mulheres utilizavam o que podemos chamar atualmente de ‘tabelinha’ e entendiam que determinados períodos do ciclo menstrual as deixavam mais propensas a engravidar do que outros, mas majoritariamente o que se entendia por contracepção era direcionada ao corpo do homem.”

Ao longo do tempo a ginecologia nasce como uma ciência para estudar o corpo da mulher, considerado desconhecido a partir da percepção de neutralidade do corpo masculino. Esse ramo da medicina se constituiu no entendimento de que a estrutura física e o papel social femininos eram determinados pela função de reprodução e de que o comportamento era pautado pela sexualidade.

Essa visão sobre o controle do corpo da mulher sofreu modificações significativas a partir do movimento feminista e da união da enfermeira Margaret Sanger com a bióloga milionária Katherine McCormick a fim de encontrar uma pílula contra a gravidez. Em 1960, a pílula anticoncepcional chegou ao mercado e as mulheres americanas passaram a ter uma liberdade sexual maior.

Porém, de acordo com a antropóloga Juliana, para que isso acontecesse, os testes do medicamento foram realizados de uma maneira considerada antiética em mulheres porto-riquenhas, que sofriam com os efeitos colaterais das altas doses de hormônio aplicadas.

A partir desse momento, tudo que era associado ao controle de natalidade foi direcionado às mulheres que, por um lado, encontraram maior liberdade sobre o corpo, mas, por outro, se tornaram as principais responsáveis pela contracepção. Segundo a Universidade de Harvard, atualmente no mundo mais de 100 milhões de pessoas utilizam a pílula anticoncepcional para evitar a gravidez. Com o tempo, novos métodos surgiram para as mulheres, contudo as pesquisas para contracepção masculina não acompanharam este avanço.

O QUE HÁ HOJE NO MERCADO PARA HOMENS

Como mencionado no início da matéria, existem dois métodos, a camisinha masculina e a vasectomia, na qual os canais deferentes que levam os espermatozoides até a vesícula seminal são cortados. Nesse caso, o homem continua produzindo o sêmen, apenas não há a presença dos gametas masculinos. É necessário que a decisão seja tomada considerando que o procedimento possui uma taxa de reversibilidade muito baixa.

Também são necessários alguns critérios para realização da cirurgia. O governo federal recém sancionou a Lei 14.443/2022 que libera a vasectomia sem o consentimento do cônjuge, com isso os novos critérios que começam a valer em seis meses são:

  • Ter capacidade civil plena;
  • Ter mais de 21 anos ou pelo menos dois filhos vivos;
  • Ter documento escrito e firmado sobre a manifestação de vontade;
  • Ser feita por meio de procedimento dentro da legislação;
  • Se submeter à cirurgia somente 60 dias depois da manifestação de vontade.

Antes do procedimento, o paciente passa por uma espécie de triagem, na qual diversos profissionais da saúde (enfermeiro, psicólogo, assistente social e médico responsável) avaliam e dão o consentimento para realização da vasectomia.

ESTUDOS

Segundo Erick José Ramo da Silva, professor do Departamento de Biofísica e Farmacologia do Instituto de Biociências de Botucatu da Unesp, a indústria farmacêutica ainda prioriza os estudos sobre contraceptivos femininos. “As pesquisas ao redor de métodos masculinos estão mais concentradas em universidades e pequenas indústrias farmacêuticas, o que dificulta a fase total de testes por problemas de financiamento.

Os contraceptivos em estudo podem ser hormonais e não hormonais. Os hormonais têm o objetivo de inibir a produção de espermatozoides, denominada espermatogênese. Nesse caso, duas questões entram em evidência, a presença de efeitos colaterais como acne, dor de cabeça, variações de libido e humor (como no caso das mulheres) e que são desconhecidos a longo prazo.

Além disso, o homem produz cerca de 1000 espermatozoides por minuto e armazena no órgão epidídimo centenas de milhões de espermatozoides que estão prontos para serem liberados, com isso, é preciso cessar a produção e esgotar todas as reservas. Esse processo leva de 3 a 4 meses, uma vez que o eixo hormonal seja inibido, afirma o professor.

Já os contraceptivos não hormonais, além do objetivo de impedir a espermatogênese, podem também trabalhar no bloqueio de alguma função do gameta já formado, como na motilidade, isto é, em sua capacidade de movimentação. Há, ainda, o objetivo de bloquear a saída dos gametas dos canais deferentes. Neste caso, o risco é o período de latência, ou seja, o tempo que o produto demora a surtir efeito.

Um grupo de cientistas americanos da Universidade de Minnesota está trabalhando no desenvolvimento de uma pílula anticoncepcional não hormonal de uso diário. Eles apresentaram que o contraceptivo conseguiu prevenir a gravidez em camundongos, sem apresentar efeitos colaterais. Os pesquisadores desenvolveram o anticoncepcional a partir de uma proteína denominada receptor alfa do ácido retinóico (RAR-α), a qual faz parte de uma família de três receptores nucleares que, ao se ligarem ao ácido retinóico, formam um tipo de vitamina A que possui várias funções, entre elas a formação de espermatozoides. Nos testes em camundongos, ao eliminar o gene RAR-α, os machos se tornaram estéreis. Os testes em humanos devem começar ainda este ano.

Recentemente um grupo de cientistas do Instituto Indiano de Tecnologia divulgou um produto não hormonal que promete chegar ao mercado em 2023, tornando-se o primeiro anticoncepcional masculino. O RISUG (Inibição Reversível do Esperma Sob Controle) apresentou 97% de eficácia em 300 voluntários na Índia e seria aplicado em forma de vacina nos canais deferentes o que além de bloquear a passagem dos espermatozoides, ainda possuiria ação espermicida, sem impedir a ejaculação. Se aprovado, o produto terá ação por até 10 anos e poderá ser revertida a qualquer momento. Como o método não é hormonal, os efeitos colaterais seriam reduzidos, como dor na virilha e inchaço escrotal, sumindo após um mês de aplicação.

Existe ainda um produto similar chamado de Vasalgel, a diferença é que, neste caso, o gel não teria ação espermicida, apenas de barreira.

Um outro produto chamado COSO foi desenvolvido pela cientista alemã, Rebecca Weiss e também se encontra em fase de testes. Ele neutralizaria a ação dos espermatozoides temporariamente a partir de estímulos de ultrassom.

PESQUISA BRASILEIRA SOBRE CONTRACEPTIVOS MASCULINOS

O professor Erick Silva coordena pesquisas da Unesp sobre proteínas espermáticas, em especial a EPPIN, responsável pela capacidade do espermatozoide se mexer. A ideia central de seus estudos é desenvolver uma molécula que se ligue à EPPIN e bloqueie a motilidade do espermatozoide. Nessa situação, a fecundação não acontece devido à incapacidade de ele chegar até o óvulo. Os desafios da criação de um medicamento como esse são vários, conforme relata o professor, pois ele precisa cair na corrente sanguínea, se espalhar pelo corpo e chegar até o sêmen em quantidade suficiente para inibir a mobilidade dos gametas.

As pesquisas são realizadas em nível experimental, por meio de estudos in vitro, modelos computacionais e animais de laboratório, e não há o desenvolvimento de medicamentos. Os estudos podem, futuramente, facilitar na criação de um tipo de anticoncepcional masculino e são financiados pela Fapesp, Capes e CNPQ. Considerando isso, o coordenador enfatiza a importância de investimentos nas pesquisas brasileiras:

“Nós recebemos investimentos através de bolsas e auxílios à pesquisa e ao projeto. Se não fosse o apoio financeiro, não teríamos feito nada. Em uma época de tanto corte científico, os nossos resultados só enaltecem a importância de seguir apoiando o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil”, conclui Erick.

OBRIGAÇÃO FEMININA

Apesar dos estudos e testes que estão sendo realizados, ainda não há nada concluído e a responsabilidade de evitar a concepção segue com a mulher, desde a escolha e compra do método, o compromisso em utilizá-lo da maneira correta a fim de não ter nenhum tipo de falha, até sofrer com as consequências do uso.

A antropóloga Juliana Wahl afirma que os contraceptivos se tornaram um êxito de vendas pois encontraram espaço nas demandas do movimento feminista, como por exemplo a autonomia sexual, mas lembra que para uma gestação acontecer são necessárias duas pessoas, e que as dinâmicas de poder e desigualdade não se modificam somente com a inserção das tecnologias de contracepção.

“A contracepção não é pensada como um tema para homens. Ao pensar em saúde sexual e reprodutiva, os homens não estão inseridos no debate e nem na responsabilidade, ainda que as queixas masculinas tenham um valor muito maior na sociedade do que as das mulheres”, reitera Juliana.

Ela também diz que sob o ponto de vista farmacêutico, é preciso ter em mente que para que haja um anticoncepcional masculino, ele precisa ser lucrativo. “Primeiro de tudo, as pessoas têm que querer usar, e a partir daí entra a questão de quem vai querer usar ou não. Nós temos no Brasil uma queda no uso do preservativo e, por outro lado, tecnologias como o DIU e o implante hormonal que poucas pessoas usufruem. A questão não é somente a tecnologia, mas como a sociedade vai incorporá-la e em quais corpos”, conclui.

O pesquisador Erick Silva acredita que hoje o cenário está otimista em relação a efetividade da entrada de um contraceptivo masculino no mercado, de forma efetiva.

“Eu vejo que existe atualmente o momento para isso. A gente percebe a sociedade se movimentando no sentido de que não podemos mais deixar a mulher carregar sozinha esse fardo. Precisamos ter a participação do homem dividindo os riscos do uso desses medicamentos”, finaliza ele.

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