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A palavra vacinação deriva do latim vaccinus, que significa “derivado da vaca”. O nome faz referência à descoberta do médico inglês Edward Jenner, que inventou a vacina contra a varíola em 1796, que consistia no líquido de pústulas de vacas doentes.

Aqui no Brasil, ela chegou em 1804 pelas mãos do Marquês de Barbacena e, em 1837, com o intuito de combater a doença, ela se tornou obrigatória para crianças e, em 1846, para adultos. Essa resolução, contudo, não era cumprida, até porque a produção da vacina em escala industrial só começou em 1884, no Rio de Janeiro.

Em 1904, o número de internações chegava a mais de 1.800 no Hospital São Sebastião. (Ao todo, não por dia, como estamos acostumados a acompanhar durante a pandemia da Covid-19). Mesmo com as internações hospitalares em alta, as camadas populares rejeitavam a vacina, afinal, era estranha a ideia de ser inoculado com esse líquido e ainda corria o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas. Existia um medo generalizado sobre a segurança e a eficácia da vacina.

Infelizmente, 117 anos depois, ainda temos que lidar com os mesmos medos e boatos. A diferença é que, em 2021, temos informações precisas sobre como agem as vacinas no organismo e conhecimentos científicos que comprovam sua eficácia.

Outra diferença é que, desta vez, os boatos partem do próprio governo federal, por meio de falas oficiais do Presidente da República, como a divulgada em dezembro de 2020: “tem lá no contrato da Pfizer ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um jacaré é problema de você (…) o que é pior: mexer no sistema imunológico das pessoas. Como você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a terceira fase, ainda é experimental?”.

Voltemos a 1904. A retomada da obrigatoriedade da vacinação, estimulada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz resultou, em novembro daquele ano, na conhecida Revolta da Vacina, alavancada pela criação da Liga Contra a Vacinação Obrigatória (qualquer relação com o atual movimento antivacina não é mera coincidência). Mais tarde, em 1908, quando o Rio foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história, a população buscou a vacina, mesmo sem a obrigatoriedade por lei, em um episódio avesso à Revolta da Vacina.

Desde então, nos tornamos referência mundial no controle e erradicação das chamadas doenças imunopreviníveis. Erradicamos a varíola em 1972, sete anos antes da Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar oficialmente sua erradicação em todo o mundo. Fizemos o mesmo com a Poliomielite em 1994, com o Sarampo em 2000 e com a rubéola em 2009.

POR QUE FICAMOS TÃO BONS EM ERRADICAR DOENÇAS EPIDÊMICAS?

A resposta está na atuação do Ministério da Saúde, que em 1973 formulou e, dois anos depois, institucionalizou o Programa Nacional de Imunização (PNI), criado com o objetivo de “coordenar as ações de imunizações que se caracterizavam, até então, pela descontinuidade, pelo caráter episódico e pela reduzida área de cobertura”, conforme consta no site datasus do próprio Ministério.

Em 1980, foi criada a 1ª Campanha Nacional de Vacinação Contra a Poliomielite, com a meta de vacinar todas as crianças menores de 5 anos em um só dia. Em 94, o Brasil recebeu da Comissão Internacional para a Certificação da Ausência de Circulação Autóctone do Poliovírus Selvagem nas Américas, o certificado de que a doença e o vírus foram eliminados de nosso continente.

O PNI é, hoje, parte integrante do Programa da OMS, com o apoio técnico, operacional e financeiro da UNICEF e contribuições do Rotary Internacional e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

O Programa foi tão bem sucedido que somente em 2004 – por meio da portaria n° 597, publicada em 08 de abril, que estabelece normas sobre o PNI – é que a vacinação tornou-se novamente obrigatória para as vacinas que fazem parte do calendário nacional de vacinação. Hoje, temos 28 imunizantes para o combate à diferentes doenças sendo ofertados gratuitamente pelo SUS, ou seja: todas as vacinas recomendadas pela OMS são disponibilizadas pela nossa rede pública de saúde.

E A VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19 NO BRASIL, TAMBÉM É OBRIGATÓRIA?

Sim. No julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (DIs) 6586 e 6587, que tratam unicamente de vacinação contra a Covid-19 e do Recurso Extraordinário com Agravo (Are) 1267879 em que se discute o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020.

No parecer da decisão, o Estado pode impor medidas restritivas previstas em lei (como multas, impedimento de frequentar determinados lugares, matrícula em escolas, entre outros), mas não pode fazer a imunização à força. Essa decisão se pauta na supremacia do direito coletivo sobre o direito individual, uma vez que as decisões individuais, nesse caso, prejudicam o coletivo, colocando em risco a saúde da população.

IMUNIDADE COLETIVA NÃO É O QUE DEFENDE O GOVERNO FEDERAL?

Novamente a resposta é sim. Mas a imunidade coletiva pode ser atingida de duas formas: com programas amplos de vacinação – e, historicamente, fomos muito bons nisso – ou por meio da infecção direta da população, que foi a escolha do governo federal e cujo resultado da decisão gerou os mais de 560 mil óbitos.

Em julho de 2020, o governo foi avisado de que buscar a chamada imunidade de rebanho contra a Covid-19 não teria eficácia para proteger a população. O site poder360 teve acesso a documentos que foram enviados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado para investigar irregularidades do governo federal na contenção da pandemia. Eles dizem respeito aos telegramas enviados por embaixadores ao Itamaraty com orientações da OMS de que a melhor solução seria a vacinação em “quantidade suficiente de pessoas para quebrar a cadeia de transmissão”.

Ainda hoje não está claro qual porcentagem de pessoas imunes à infecção gerará um nível que freie a disseminação do novo coronavírus. E, para além da discussão sobre o patamar a ser alcançado para a imunidade de rebanho, existe uma questão moral.

“A imunidade coletiva existe e também chegará para a Covid-19. Contudo, ela não deve ser alcançada naturalmente, porque a custo disso viria uma quantidade alarmante de mortes. O ideal é atingir esse número artificialmente, com uma vacina eficaz”, pontuou o epidemiologista da USP, Paulo Lotufo, em matéria para a Veja Saúde em agosto de 2020, quando ainda contabilizávamos 121,5 mil mortos.

Vale lembrar que agosto foi o mês em que a Pfizer iniciou o cronograma de negociações para a compra de lotes da vacina junto ao governo brasileiro, tendo enviado, até dezembro de 2020, mais de 50 e-mails que ofertavam a compra dos imunizantes.

Tínhamos um Programa Nacional de Imunização que é referência global, um histórico bem sucedido de erradicação de doenças imunopreviníveis, a confirmação da OMS de que a imunidade coletiva natural não era eficaz no caso de uma pandemia e a oferta de mais de 100 milhões de doses de vacinas nas mãos.

POR QUE, ENTÃO, CHEGAMOS A MAIS DE MEIO MILHÃO DE MORTOS?

Mais uma vez, a resposta é direta: porque foi “uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”. A conclusão foi publicada no boletim especial Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, organizado pela Faculdade de Saúde Pública da USP e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, após analisarem 3.049 normas federais produzidas em 2020.

O documento que a jornalista Eliane Brum chamou de “a linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil” em sua matéria para o El País sobre o assunto, “demonstra a relação direta entre os atos normativos federais, a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública promovida pelo governo federal”, segundo o editorial da publicação.

Deisy Ventura, jurista e professora de saúde pública da USP, responsável pela pesquisa, afirmou em entrevista para a Rede TVT, no início do ano, que os estudos foram integralmente baseados em documentos oficiais e levantamento das declarações do presidente Jair Bolsonaro em entrevistas públicas.

Segundo ela, o posicionamento do presidente “caracteriza propaganda contra a saúde pública porque encoraja a população brasileira a não respeitar as recomendações de saúde pública, a buscar a exposição ao vírus, busca desacreditar as autoridades sanitárias e promove o descumprimento das medidas de saúde pública e, particularmente, as medidas quarentenárias com uma intenção claríssima de disseminar o vírus”.

Ventura afirma, ainda, que os vetos presidenciais, especialmente no mês de julho, foram utilizados como “uma verdadeira arma”. “Ele (o presidente) veta a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos, a obrigação dos estabelecimentos comerciais de oferecer máscaras para os seus trabalhadores, a obrigatoriedade de afixar em local público os avisos sobre o uso correto das máscaras. Ele veta a elaboração de cartilhas, de instrumentos de comunicação com os indígenas para explicar a gravidade da doença”.

QUAIS AS CONSEQUÊNCIA DAS DECISÕES TOMADAS PELO GOVERNO FEDERAL?

A morte de mais de 560 mil brasileiros coloca o Brasil em 2° lugar no ranking de número absoluto de vítimas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, e na 8° posição dos países com mais mortes por milhão. Para Ventura, optamos por uma “política de morte”. Não é por acaso que temos uma CPI instaurada para apurar a responsabilidade do governo no enfrentamento à pandemia.

Além disso, a desinformação sobre as vacinas que leva à desistência das pessoas em se vacinarem ou tomarem a segunda dose, o surgimento dos “sommeliers de vacina” e os questionamentos sobre a procedência dos imunizantes, são alguns dos outros resultados graves gerados pelas decisões do Estado e que acarretam atraso imenso no processo de imunização coletiva que pode conter a doença.

DESINFORMAÇÃO E MEDO

Temos hoje quatro vacinas disponíveis contra a Covid-19, com intervalos diferentes entre as doses. Para a AstraZeneca/Oxford da Fiocruz e da Pfizer, o período é de 12 semanas, para a CoronaVac da Sinovac/Butantan, o intervalo é de 28 dias. Já a Janssen, é dose única. Elas entraram em circulação em momentos diferentes e a falta de uma campanha nacional que uniformize a comunicação e explique a atuação de cada uma no organismo pode causar desinformação sobre a doença tanto para a população quanto para os profissionais que atuam na linha de frente da vacinação.

Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), disse em matéria à CNN, publicada em junho, que ela mesma teve problemas com a desinformação. Ela conta que precisou tomar a primeira dose da ConoraVac no Rio de Janeiro e a segunda, em Campos do Jordão (SP), para onde tinha se mudado. Lá, foi barrada pela equipe de vacinação. O profissional da saúde informou que ela só poderia tomar a segunda dose no mesmo estado onde recebeu a primeira, o que não procede.

A vacinação é a única medida eficaz para conter a pandemia. Veja a procedência, diferenças e intervalos entre as doses, para cada uma das vacinas disponibilizadas no Brasil.

TAXA DE ABANDONO E OS ‘SOMMELIERS’ DE VACINA

Segundo divulgado pelo Ministério da Saúde, cerca de 1,5 milhões de pessoas não compareceram aos postos de vacinação para tomar a segunda dose e esse movimento tem algumas razões. A confusão entre os calendários de retorno dos diferentes tipos de imunizante somada à falta de vacinas nos postos em todo o país, são alguns dos fatores. O medo dos possíveis efeitos colaterais e a própria crença de que uma única dose é suficiente para garantir a imunidade, também são pontos levantados pelos especialistas. Vale ressaltar que somente a Janssen é aplicada em dose única, todas as demais precisam do reforço da segunda dose para garantir a eficácia.

Existe ainda um outro motivo para que essa taxa de abandono seja mais alta do que o esperado: o surgimento dos “sommeliers” de vacina; pessoas que, frente às diferentes marcas disponíveis, buscam escolher aquela da sua preferência, recusando-se a receber outro imunizante.

Rebeca Melo, vacinadora de um posto de saúde de Seabra, na Chapada Diamantina, relatou recentemente ao jornal Correio que já chegou até a ser ameaçada por um “sommelier”. No último fim de semana de julho, cerca de 60 pessoas se negaram a ser vacinadas no posto em que ela trabalha, pois não queriam receber o imunizante disponível. A situação se repete por todo o país e gerou, em vários estados, a mobilização de campanhas reforçando que “a vacina mais eficaz é aquela aplicada no seu braço”.

Em São Paulo, estado em que mais de 500 mil pessoas ainda não retornaram para tomar a segunda dose da vacina, conforme divulgado pelo próprio governo estadual, o prefeito da capital sancionou, no último dia 27, uma lei que coloca no final da fila de vacinação as pessoas que se recusarem a tomar a primeira dose por causa da marca do imunizante.

PANDEMIA EM ONDAS

O conjunto das medidas acima citadas acarretou na chegada de novas ondas de contaminação, como aconteceu no primeiro trimestre de 2021, e no aumento da ocupação de leitos de UTI em todo o país, como vimos acontecer novamente agora em maio. Especialistas apontam que o Brasil pode estar na iminência de uma terceira onda, considerando a circulação de novas variantes e o ritmo lento da vacinação.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Assim afirma o Art. 196 da Constituição Brasileira. Um país que enterra os mais de 560 mil cidadãos que deveria proteger não realiza uma política pautada na dignidade humana, mas sim, uma política de morte.

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